Prof. Dr. Walcir S. Junior (Dabliu)
O mundo vem, recentemente, enfrentando uma grande onda conservadora e economicamente liberal – simbolicamente representada pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, ou o movimento do Brexit, no Reino Unido – que tem se alastrado por muitos países. Um dos últimos capítulos dessa novela teve como resultado mais recente no Brasil a eleição para presidente da república de Jair Bolsonaro do PSL.
Dentre diversas polêmicas, a reforma da previdência tem sido um dos tópicos mais alardeados (além das aventuras do presidente pelas redes sociais afora). Mas antes de adentrar a esse assunto, e discuti-lo do ponto de vista econômico e social, é preciso entender do que estamos falando quando no Brasil defende-se tanto a tal diminuição estatal e ampliação das liberdades de mercado, o falso brasi-liberalismo que por muitas vezes se transfigura para ser conveniente àquela ou essa conjectura.
A doutrina liberal, baseada na defesa das liberdades individuais, seja no campo econômico como no político, religioso e individual parece conflitar, enquanto conceito, com esse liberalismo pregado pelo partido eleito: um partido que, ao contrário, defende ceifar diversas liberdades individuais com opiniões e decisões retrógradas que não fariam sentido nem se discutidas há vinte anos. Seguindo o conceito de justiça social do filósofo americano John Rawls (1921-2002), liberdade significa dar condições para o indivíduo ter mobilidade social, e para isso se faz necessária a justiça social. Para ele, só poderá haver justiça a partir de dois princípios: liberdade (neste sentido amplo) e igualdade.
No aspecto econômico, que é o foco deste texto, a cartilha liberal era o paradigma clássico estabelecido antes dos anos 1930: diante de uma crise ou qualquer problema de ordem econômica, o Estado nada deveria fazer. A mão invisível do mercado, citando Adam Smith (1723-1790), considerado pai da economia, trataria de ajustar os mercados e resolver uma crise automaticamente. No entanto, não foi isso que aconteceu no advento da crise de 1929, uma das piores crises econômicas da história.
De 1929 a 1937 a crise continuou a se aprofundar numa aparente contradição: prateleiras abarrotadas de mercadorias, deflação (preços abaixo do custo) e grande parte da população desempregada sem poder consumir. Foi a partir de 1938 com as ideias de John Maynard Keynes (1883-1946) e o que se convencionou chamar de Estado de Bem-Estar Social é que se começou a traçar uma solução: ao contrário do que se esperava, diante de uma crise o Estado teria a função de gastar e criar as condições para estimular a procura, que acionaria a engrenagem do crescimento econômico.
De uma grande ascensão das ideias keynesianas, a partir da década de 1970 e o grande inchaço do Estado surge um novo conceito, o do neoliberalismo. Neste, assume-se novamente a ideia clássica de Estado mínimo, mas agora o Estado tem uma função muito importante, a de regular a economia e manter os mercados funcionando.
Adam Smith sem dúvida foi um gênio. Muitos filósofos como David Ricardo e Karl Marx escreveram suas obras a partir da leitura, aprofundamento e crítica de sua análise. Realmente, sua obra “A Riqueza das Nações” encontra na gênese do autointeresse humano a motivação para o crescimento econômico. Explico-me: segundo Smith, o padeiro fará o melhor pão que pode, não porque é benevolente e deseja gerar satisfação para sua clientela, mas porque é autointeressado e deseja ganhar mais para poder comprar, por exemplo, o melhor sapato.
Já o sapateiro, não fará o melhor sapato que pode, especializando-se a vida inteira, para oferecer ao padeiro o melhor: ele deseja fazer o melhor para ganhar mais e poder comprar o melhor vestuário. E assim por diante. Desse modo, da liberdade humana, e da ambição de querer o melhor para si, cada ser humano se especializaria em fazer o seu melhor, gerando um ciclo virtuoso em que todos dariam o melhor de si e disponibilizariam ao mundo as melhores mercadorias.
Acontece que Adam Smith é inglês e não conheceu o Brasil. Um país em que, segundo dados do IBGE, os 10% mais ricos ganham 17,6 vezes mais que os 40% mais pobres, e concentram 43,1% da renda do país. Nesse contexto, antes de qualquer ideia virtuosa de deixar os mercados dizerem quem serão os vitoriosos na corrida econômica, o mais importante é garantir essas liberdades individuais. A liberdade de que qualquer ser humano que almeje uma posição possa, com igualdade de oportunidade, competir para consegui-la, o que fantasiosamente dizem existir no Brasil os defensores da meritocracia (parcela deles acredita também que a terra seja plana).
Eu acredito na individualidade. Acredito que a ambição humana – leia-se aqui não a ambição pejorativa de passar por cima de outro ser humano para se ter o que quer, mas a ambição da ação e reação, do indivíduo saber que está trabalhando mais para garantir uma vida melhor para si e para os seus. Eu também acredito na meritocracia, o grande problema é que ela não existe. É nesse contexto que a política pública social, principalmente no Brasil, tem importância fundamental. Enquanto não resolvermos nossos problemas sociais nunca poderemos falar de Estado mínimo.
Liberdade é mais do que o direito de ir e vir: é o direito de ter comida na mesa, ter acesso à educação formal e além isso, capacidade do indivíduo de ter mobilidade social e poder fazer essas escolhas. Significa que todas as pessoas pobres se tornarão doutoras no futuro? Não, mas garantir que todas aquelas que queiram possam fazer essa escolha e lutar por ela. Hoje, milhões de brasileiros nascidos num ambiente desfavorável já possuem seus destinos escritos: como mostram as estatísticas, muitos deles nem sobreviverão seus primeiros vinte anos para contar a história.
E é nesse contexto que uma política dita assistencialista tem sua função: grande parte das pessoas que trabalha nove horas por dia para conseguir se alimentar com um salário mínimo (ou menos) não conseguirá competir igualmente com quem não precisou passar por isso. Grande parte das pessoas que precisa cuidar de suas crianças e cuidar para que elas frequentem a escola, não conseguirá estudar também e melhorar sua vida porque não terá oportunidade para isso. Os direitos humanos deveriam vir antes de qualquer ideia liberal, porque essa liberdade fundamental de sobreviver é a única acima de qualquer crítica.
À luz desses argumentos, podemos analisar a proposta deste governo para a reforma da previdência social. E essa reforma terá efeitos muito importantes de serem levados em conta, principalmente no que concerne ao aumento da pobreza no médio e no longo prazos. Os argumentos a favor da reforma são sempre os mesmos: algum governo deve dar o passo dolorido de uma política econômica austera, a fim de equilibrar as contas. O que esses argumentos não respondem é o viés dessas políticas, sempre impactando muito mais forte àqueles em que o efeito destas acaba sendo sentido na comida sobre a mesa, ou no acesso aos únicos meios de mobilidade social.
Vista como uma despesa, os gastos com a previdência, do ponto de vista social, são resultado de um investimento feito pelos trabalhadores, que contribuíram por muitos anos e agora, por um processo de envelhecimento da população média, acabarão por não conseguir se aposentar nas condições em que a previdência estava quando começaram a contribuir. Do outro lado, as receitas públicas, que poderiam também ser uma das soluções possíveis – mas que mexeria no bolso dos gananciosos empresários – o viés é contrário: o Brasil é campeão em renúncias fiscais e desonerações, privilegiando o setor empresarial sob o argumento da empregabilidade, que num momento de crise, desagua em cortes de mão-de-obra a título de redução de custos.
Excluindo-se toda a discussão dos valores pelo novo cálculo da aposentadoria, todos abaixo dos que são direito hoje, um dos pontos mais polêmicos desta reforma é o período mínimo de contribuição. E nesse ponto, mais uma vez, a balança pesa para os lados dos mais pobres. Vinte anos de contribuição levando em conta que a maioria das pessoas de baixa renda, ou com pouca escolaridade, passa anos trabalhando na informalidade, em trabalhos autônomos ou mesmo desempregadas, leva-nos à constatação de que muitos nem conseguirão atingir esse período mínimo.
Outros dos grupos desfavorecidos são os trabalhadores rurais – componentes importantes da pobreza, principalmente na região norte e nordeste – também em pior situação nessa nova reforma, e o das pessoas acima dos 50 anos que, desempregadas em momentos de contração, não conseguem mais se alocar no mercado, dificultando ainda mais o processo de atingir o tempo mínimo de contribuição.
Alguém precisa informar ao senhor presidente e seus representantes que se a frase do governo é “a previdência será justa para todos, sem privilégios”, como é amplamente alardeado nos meios midiáticos, é preciso entender antes que justiça social e o princípio constitucional de igualdade é tratar iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade. Portanto, “unificar idades e colaborações mínimas” é reproduzir essa desigualdade antes de tudo, e não gerar equidade.
É preciso mais do que coragem para estar do lado daqueles que acabam com sua saúde e passam a maior parte de suas vidas sob sol e chuva em um trabalho que na maioria das vezes, não paga nem esse desgaste. Nossos trabalhadores não são máquinas apesar de ainda serem a engrenagem mais importante deste sistema. E apesar das forças do outro lado serem desumanas e extremamente potentes, nós continuaremos puxando do lado de cá.
Dabliu é economista e compositor.
É professor de Economia da Universidade Positivo e da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP-PR).