Um teste para a democracia brasileira

Clóvis Gruner*       

No começo de outubro de 2017, pesquisa realizada pelo instituto DataFolha revelava números preocupantes: em um universo de 2.772 entrevistados, 56% dos brasileiros consideravam a democracia “sempre melhor que qualquer outra forma de governo”, contra 21% que não viam diferença significativa entre democracia e ditadura e outros 17% para quem, em certas circunstâncias, uma ditadura era melhor que a democracia.

A pesquisa perturba mesmo considerando que a maioria ainda prefere a democracia à outra forma de governo. E não apenas porque quase metade dos entrevistados tolera ou julga a ditadura desejável em algumas circunstâncias, mas também porque, em relação a pesquisas anteriores, a aprovação da democracia caiu sensivelmente: em 2014, era de 66% e, em 2016, apenas um ano antes, de 62%.

DRAGAO

Dragão – Maurício Nascimento – Domínio Público

No final daquele mesmo mês, outra pesquisa, realizada em dezoito países da América Latina pela ONG Latinobarómetro, lançava outras luzes sobre o problema: somente 13% dos brasileiros responderam “muito satisfeitos” ou “satisfeitos” com a democracia, índice muito abaixo da média da região, que foi de 30%. – no Uruguai, primeiro lugar na pesquisa, o índice foi de 57%.

Uma das diretoras do Latinobarómetro e responsável pela pesquisa, a socióloga chilena Marta Lagos, disse em entrevista à BBC que o “mal-estar dos brasileiros com a democracia é antigo”, mas que a avaliação estava sensivelmente pior. De acordo com ela, por pelo menos duas razões: a piora na qualidade de vida e um grave problema de liderança política decorrente, em certa medida, das denúncias de corrupção que assolam o país.

As eleições de outubro acontecem em um ambiente em que a democracia, mesmo a mais formal, surge desacreditada. Essa fragilidade não é resultado apenas de contextos mais imediatos, embora a instabilidade política desses últimos anos tenha, certamente, contribuído para ela. Nesse sentido, a crise política que começou com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, é parte de um processo mais longo e complexo, que tento sumariar nos parágrafos seguintes. 

Uma democracia pouco democrática – Em artigo anterior, falei da herança da ditadura e do quanto a escolha pela conciliação e a anistia travou, entre nós, a constituição de uma cultura democrática mais efetiva. O grande pacto conciliatório que recebeu o nome de “Nova República”, forjado nos estertores da ditadura, não foi suficiente para consolidar mesmo a democracia formal, que avançou nessas três décadas, sem dúvida, mas que esteve constantemente ameaçada.

Não me refiro ao funcionamento das instituições e ritos que são, por assim dizer, a face visível da democracia. Desde o fim da ditadura, os partidos cresceram e se multiplicaram; as associações e entidades de classe, como os sindicatos, atuaram sem restrições; os meios de comunicação não enfrentaram mais a censura; eleições transcorreram dentro da chamada normalidade. Mas é preciso levar em conta as estruturas frágeis sobre as quais ela foi construída.

Na abertura de seu “Imobilismo em movimento”, Marcos Nobre chama a atenção para o fato de que à consolidação da democracia formal não correspondeu, necessariamente, “uma vida política substantivamente democratizada”: “A democracia no país, tudo somado é ainda muito pouco democrática de fato. Porque democracia não é apenas funcionamento de instituições políticas formais, não é apenas um sistema político regido formalmente por regras democráticas. Democracia é uma forma de vida que se cristaliza em uma cultura política pluralista, organizando o próprio cotidiano das relações entre as pessoas”.

O pacto que fez o parto da “Nova República” foi insuficiente para superar as muitas experiências de repressão sistemática a movimentos sociais e populares, que há décadas convivem com um “um sistema político montado de maneira a marginalizar a grande massa da população”, ainda de acordo com Nobre. A ampliação de uma cultura pública pluralista e democrática não correspondeu à ascensão social de grupos mais fragilizados. A chamada participação política seguiu sendo privilégio de poucos. 

O colapso da “Nova República” – O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, foi também o fim da “Nova República”. Em meio a uma crise sem precedentes na história recente, as principais forças políticas que a sustentaram se decompuseram premidas, de um lado, pelas inúmeras denúncias e escândalos de corrupção, que em graus variados atingiram a maioria dos partidos e, de outro, pelas manifestações populares que, também de modos muito diversos, pelo menos desde junho de 2013 sinalizavam a corrosão da política tradicional.

Em uma democracia consolidada, a crise e as manifestações, como sintomas de um desgaste até certo ponto “natural”, abririam caminho para o surgimento de alternativas que reivindicariam o seu aprofundamento e sua radicalização. Em resumo, para uma democracia em xeque, porque até certo ponto esgotadas as possibilidades e arranjos que a forjaram, a solução seria construir os meios para que, dessa exaustão, emergisse justamente uma democracia renovada e ainda mais fortalecida. Não foi o que aconteceu.

Nos últimos anos tem se tornado mais ou menos comum responsabilizá-la pelas nossas muitas mazelas. Uma desconfiança traduzida em números nas pesquisas mencionadas no começo desse texto, mas que ensejou outras demonstrações igualmente perturbadoras, tais como os pedidos de “intervenção militar democrática” em manifestações recentes, como as passeatas pelo impeachment em 2015 e a greve dos caminhoneiros, no primeiro semestre desse 2018.

As eleições acontecem em um momento em que o discurso antidemocrático e autoritário surge como escolha para uma parcela significativa dos eleitores, que identifica nele uma opção antissistêmica. A ausência de uma cultura política capaz de, entre outras coisas, fortalecer a confiança na democracia mesmo em um contexto de crise – e como uma alternativa a ele –, criou as condições para o seu contrário: independente de quem seja o vencedor em outubro, há o risco de que a democracia seja a grande derrotada.

*Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da UFPR.

 

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