Terra sem males

Adalberto Fávero*

O tigre azul romperá o mundo.

Outra terra, a que não tem mal, a que não tem morte, vai nascer da aniquilação desta terra. Ela pede que seja assim. Pede a morte, pede o nascimento, esta terra velha e ofendida. Ela está cansadíssima e, de tanto chorar por dentro, ficou cega. Moribunda, atravessa os dias, lixo do tempo, e quando é noite inspira piedade às estrelas. Logo, logo, o Pai Primeiro escutará as súplicas do mundo, terra querendo ser outra, e então soltará o tigre azul que dorme debaixo da rede.

Esperando esse momento, os índios guaranis peregrinam pela terra condenada.

 – Você tem alguma coisa que dizer para nós, colibri?

Dançam sem parar, cada vez mais leves, mais voadores, e cantam os cantos sagrados que celebram o próximo nascimento de outra terra.

– Lança raios, lança raios, colibri!

Buscando o paraíso chegaram até as costas do mar e até o centro da América. Rodaram selvas, serras e rios, perseguindo a terra nova, a que será fundada sem velhice nem doença nem nada que interrompa a incessante festa de viver. Os cantos anunciam que o milho crescerá por sua conta e as flechas voarão sozinhas na floresta; e não serão necessários o castigo e o perdão, porque não haverá proibição nem culpa. ”

(Eduardo Galeano em Memória de Fogo)

            Não diga ou pense que o amanhecer dessa nova terra seja apenas sonho, pois andamos vagueando pela casa e pelas ruas à procura de sonhos, com vontade de viajar em novo mundo ou desembarcar numa outra vida, não é verdade? A hora de deixar de esperar na estrada e fazer o caminho não parece imperativo?

Quando morre uma mulher ou um homem que sonha, a terra fica triste, viúva de esperança. Por isso é importante e necessário ser sonhador de lembranças e inventor de verdades; deixar da empáfia do saber tudo, pois quem tem certeza demais já nasce equivocado; perceber como é bom ensinar alguém a sonhar, a duvidar, a encruzilhar a vida e a cruzalhar as esperanças…

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Talvez estejamos sendo como alguém que saiu de sua casa, de um lugar pequeno, e ao voltar percebe que mesmo voltando nunca retorna; olha-se os lugares, as fotos, as imagens do passado e são apenas revivências, relembranças; porque tantas vezes parecemos pessoas muito velhas com medo de cair sobre as próprias pernas e, por isso, soletram cada passo.

Sonhar impede que se envelheça quando o sonho é realizado com outros que também aprenderam que viver sem amigo, é como viajar sem bagagem. Por essa razão importa tecer rios por onde possa viajar a esperança, pois isso acalma as feridas da terra. Os rios costuram destinos dos viajantes e os levam a duvidar e fazer boas perguntas: será o mar o último lábio da terra? Como a água do mar não escapa? Seria a morte uma dimensão de Deus? Por essa razão (a morte) é tão magnífica e misteriosa, nos atrai e nos faz ter medo, mesmo que ela sempre ganhe, porém nos dê uma vida de vantagem? Por que esse é um tempo em que se perdeu a vontade de brincar?  Para onde foi nossa crença e certeza duvidosa/ranheta da nova terra, na qual todos serão iguais e felizes?

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Não andamos pela terra, andamos através de lembranças e sonhos. Alguém recebe ordem para sonhar? O que farão as estrelas durante o dia? Por que nos reunimos à noite com as estrelas e nunca dá tempo de contá-las? Somos um pouco viajantes que não viajam para chegar, viajamos para ir? Quando mataremos a saudade de voltar a contar mentiras com os amigos em um boteco qualquer, pois o lugar não importa tanto?

A terra nova virá substituir a velha e todos saberão que mesmo não permitindo que todas as crianças saibam ler não conseguirão impedir que toda criança saiba rir. Nunca mais teremos a sensação de que quando o sol se põe fecharam-se as portas do céu ou que sem perceber alguém tenha apagado a lua.

Neste dezembro, festa dos nascimentos e das colheitas para os povos diversos, precisamos voltar a falar do abraço do mar ou das florestas; falar daquela casa antiga, simples e cheia de raízes de nossas vidas; falar dos amigos que são a bagagem de nossas vidas e nos salvam da solidão; rememorar as distâncias tecidas pela implicância e ódio ao plural e diverso. Pois quando alguém nasce, na verdade, vem ao mundo nos ensinar tudo de novo.

Neste dezembro em que se festeja o natal/nascimento seria necessário que nascêssemos e fôssemos o peregrino que faz parte de um lugar e traz e constrói com ele a identidade de viver a reciprocidade com o outro; que eliminássemos em nós o turista que visita o lugar, mas não faz parte dele, o lugar é que deve se adaptar a ele. Assim nasceria uma nova terra, sem males e grávida de sonhos.

Entre outras coisas, apagaríamos a luz da escuridão que assola e acossa o futuro e as esperanças; voltaríamos a ser desumilhados, brincantes, brincandeiros e inventores de boas novas.

Nesse dia, quando ele chegar, como se sabe na África negra e na América indígena, a sua família e a sua aldeia completa, com todos os seus vivos e seus mortos… se falará na crepitação do fogo, nos rumos da água que corre, na respiração do bosque, nas vozes do vento, na fúria do trovão, na chuva que briga e na cantoria dos homens, mulheres e pássaros que saúdam os seus passos, que a terra velha se foi e nasceu a terra sem males (parágrafo final adaptado de Galeano).

2018

*Adalberto Fávero é licenciado em Filosofia, Teologia e História. Mestre em Educação. Área de atuação: professor e gestão escolar.
Ilustrações: Montagens sobre foto de Leandro Melito Fonte / EBC.

 

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