“Profetizar é extremamente
difícil…sobretudo em relação
ao futuro.” (Provérbio Chinês)
Fico pensando com meus botões, o que dizer sobre estes tempos pós modernos, pós repúblicas, pós capitalismos, pós TVs, pós educação, pós política e pós imaginação. Essas vozes ecoam e/ou insistem em setores acadêmicos, grupos de esquerda e, sobretudo, ex-esquerdas, se é que se pode dizer existirem esses personagens ex. São partes de um certo credo “ostra” (data vênia às ostras), escondidos sob a carapaça protetora de suas análises aleatórias e autorrealizantes.
Dizem que o capitalismo é sempre o mesmo ou que este tempo pós apenas tirou a cafeína de sua ação mistificadora ou, ao contrário, que tudo perdeu o sentido e não é mais a mesma coisa. Passou!.
São ineficazes politicamente e formam pessoas ineficazes para seu tempo. Isto porque, o neocapitalismo tem se mostrado autossuficiente e autorrefundante, enquanto se cultiva sonhos dos anos 60 e 70, sem muita imaginação. A esquerda anda sem imaginação e a direita tornou-se capaz de falar e fazer da ignorância a expressão de uma nova sabedoria coletiva; capaz de falar e vender “merda” como se fosse ouro. E há muitos clientes fervorosos!
A crise de 2008 oportunizou uma reorganização das classes dominantes, mostrando que o neoliberalismo não é apenas uma ideologia ou tipo de política econômica. Como insiste Chistian Laval, trata-se de” um sistema normativo que ampliou sua influência no mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esfera da vida.” (Laval, 2019). Em outras palavras, implica em que todos os assalariados e a população em geral esteja em constante competição com os demais e sua função seja se constituir em um empreendedor individual, diante de tudo e de todos.
Nesta rota, desarticula-se a solidariedade e a cidadania, corrompe-se o jogo democrático e se aperta o nó da corda na garganta da população de maneira cada vez mais forte e sistemática. Isto quer dizer que o atual momento político não é apenas de ignorância profunda e de fascismo como se conhecia até então e sim uma maneira estrutural de desmantelamento das regras e direitos conquistados nos últimos 200 anos na convivência, no trabalho e na democracia. Não é casual e nem apenas ignorância!
Tudo isto não aconteceu por acaso e a saga dos cidadãos que são ou já foram de esquerda ou bem pensantes merece ser relembrada, ao menos em alguns elementos de sua trajetória, pois os reinos e repúblicas desses tempos ultramodernos, sombrios, escusos e obscuros perderam suas fronteiras e identidades. Há pouco tempo (nos anos 90, mais ou menos) passou-se a falar no fim de tudo: das ideologias, das grandes narrativas, dos sonhos, dos partidos, dos sindicatos, dos direitos trabalhistas, das lutas coletivas, dos modelos políticos, dos heróis, das religiões tradicionais, dos deuses, da esperança… Tornou-se corriqueiro anunciar que o Deus antigo, a política e os sonhos morreram.
Parece imperar soberano, na nova ordem local e/ou nessas novíssimas repúblicas, o indivíduo solitário, insensível, impotente, incapaz de passos altruístas, seguro entre muros e alarmes, autônomo em ter sem ser e à mercê dos poderes corporativos. A nova onda se firma/afirma na eficiência, competência e resultados. Em ser eficaz e produtivo, empreendedor e pró-ativo. Protagonista, dizem seus profetas!
As repúblicas do sul entraram rápida e submissamente nesse novo mundo, nessa “nova” ordem mundial. Na verdade, uma pequena parcela de sua população experimenta os sabores e contradições desses incompreensíveis tempos como atores de admirável mundo novo, enquanto a imensa maioria dos demais pobres mortais vai a reboque e à mercê dos dilemas e incongruências dos contratempos de cada crise em que as elites nativas mergulham suas nações.
Há cidades dos reinos do sul que primam pelo orgulho de serem assim globalizadas e apresentarem sinais inequívocos de sua modernidade e beleza. Elas têm parques esplendorosos para visita e exercícios matinais ou vespertinos, a fim de manter a forma daqueles que se alimentam bem; ostentam faróis que são símbolos do saber; constroem ruas onde se pode sentir cidadão; ruas para comércio vinte e quatro horas; shoppings para os homens e mulheres de bem; quase todas as raças possuem parques, casas, símbolos arquitetônicos e são apresentadas na mídia como expressão de tendência universal; há misturas arquitetônicas que falam do passado ou tão futuristas quanto possa ser uma arquitetura gélida em arame ou cimento. Em tudo impera o olho atento do grande irmão!
Embora não se insista muito, nelas vivem pessoas comuns: trabalhadores braçais, catadores de lixo, estudantes, equilibristas de limões no sinal de trânsito, moradores de ruas, vigias noturnos, polícia, advogados e professores. Afinal, como diria (diria?) Brecht, Cezar venceu a guerra, mas nem um cozinheiro existiria com ele? Napoleão foi à guerra, mas nem seu cavalo branco estava lá?
Uma parte de tais cidadãos cresceu num ambiente de discussões políticas acirradas, sob a inspiração socialista. Os seus sonhos de um mundo melhor sempre foram acalentados em vista de um mundo igualitário, justo e fraterno, mas nessa capital, certamente, não são maioria. Apesar das críticas ao chamado socialismo real do leste europeu (União Soviética/Rússia), Cuba, Moçambique, Angola e China, sempre viram essas experiências como possibilidades de mudança, até mesmo pelo viés da revolução armada.
Suas juventudes foram profundamente marcadas por homens como Che Guevara, Camillo Torres, Mao, Fidel Castro, Allende, Marighella, Oscar Romero, Gandhi e Mandela. São nascituros da classe média e formados, ainda, com sonhos altruístas. Alguns, ainda continuam ressuscitando alguns desses personagens em seus movimentos e coletivos, como fazem as ordens religiosas com seus fundadores.
No seu trabalho ou formação, foram fortes as inspirações da educação libertadora (Paulo Freire), da teologia da libertação (Leonardo Boff…), da filosofia da libertação (Dussel), da dialética marxista e de outras vertentes progressistas. Sempre trabalharam e lutaram em empresas públicas e privadas para que a honestidade e o dia a dia de trabalho não fossem excludentes ou um mero aparelho do mercado.
Politicamente participaram direta ou indiretamente de seus sindicatos, de associações de bairro e militaram em partidos de centro e esquerda, crendo que a análise crítica do mundo capitalista, a necessidade de mudança era necessária e a luta dos trabalhadores conseguiria esse passo qualitativo. Para eles parecia uma questão de tempo e de condições, mas sempre uma possibilidade.
Esse viés de cidadão padrão dessa faixa etária e dessas cidades ao sul do equador sempre buscou ser muito bem preparado pessoal e profissionalmente. Muitos deles, possuem curso superior, pós-graduação e outros estão com projetos de continuidade em seus estudos A prática reflexiva foi, por isso mesmo, elemento constante nos seus passos profissionais e pessoais.
Chico Buarque, Caetano, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Vandré, Crioulo (mais recente) frequentaram sempre seus coros musicais de protesto e/ou de sensibilidade própria. Como tantos, evoluíram do disco vinil aos cd’s e da rádio AM para a FM, das fitas VHF aos DVD’s, do Pendrive ao USB, do DVD ao YOUTUBE do aplauso à luta armada às mobilizações pelas “Diretas já”, da experiência democrática ao Estado Prisional e/ou ao Estado de Ocupação e participaram de muitos outros movimentos reivindicatórios.
Hoje, muitos destes cidadãos, sentem-se na encruzilhada ou perderam a imaginação. Estão achando o mundo atual bastante insano, sombrio e sem nenhum sentido. Seus motivos são diversos, mas cresce neles a sensação de que tudo mudou, que o mundo parece não ter mais jeito e que essa geração atual passou da geração coca-cola para a geração do “não estou nem aí”. Sobretudo que as suas cidades ou ex companheiros vivem em outra dimensão e ameaçam optar em andar com armas na mão como vigilantes.
Parece-lhes que o rei está nu, descalço, indiferente e indecentemente exposto aos olhares alheios atônitos. Quem terá coragem, como a criança da fábula, de alertar para a nudez do rei? Além do grito, com “essa palavra presa na garganta”, que mais se pode, de fato, fazer? De onde vem essa sensação? O que estaria acontecendo para desencadear mudança tão profunda? Será que envelheceram e cansaram de lutar? Os arroubos da juventude já andam distantes e sem sentido? Seria apenas alguns casos particulares de decepção e desencanto? Estarão eles, concordando com José Saramago, quando diz que os jovens não sabem o que podem e os velhos já não podem o que sabem?
No entanto, eles não se sentem sozinhos nessa desilusão. Muitos de seus companheiros queixam-se da mesma coisa. Outros, e cada vez mais outros, estão procurando psicólogos, psiquiatras e autoajuda. Os livros de autoajuda fazem o maior sucesso entre eles. Alguns dizem que o discurso socialista é para o tempo de escola e universidade; coisa de adolescentes e eles já cresceram.
Já encontraram velhos companheiros de militância, lendo e adorando as milícias, saudando juízes justiceiros e lendo Paulo Coelho, o que os chocou profundamente e abalou ainda mais suas crenças. Pior que isso, foi trombar com alguns outros, rancorosos com o passado e ressuscitando preconceitos contra negros, gays, nordestinos, argentinos, palestinos, iraquianos, chineses. Chegam a apoiar o descalabro verborrágico da ignorância oficial de plantão.
Na verdade, andam acontecendo coisas estranhas e difíceis de entender e/ou de aceitar. Se por um lado percebe-se uma radicalização do individualismo e despersonalização do indivíduo, crescem as manifestações de racismo, xenofobia, desprezo ao mais pobre, ao que tem carro velho, ao motoboy, ao flanelinha, ao vendedor ambulante do semáforo, ao gay, ao quilombola e aos movimentos reivindicatórios. Indivíduos, quando não solitários, enclausuram-se em bolhas estanques com pessoas que pensam igual a eles. A diversidade e a diferença que enriquece é vista como inimiga, e, na onda bélica que invade a república, deve ser eliminada.
Aparentemente as lutas atuais vão se reconstituindo por questões de gênero, em lutas por questão de cor ou raça e isso vai separando e desviando as mobilizações coletivas de classe. Há uma sensação de que a luta real esteja, por exemplo, entre os homens e as mulheres e não por ambos em vista de um mundo mais justo e igual, ainda que seja real a revitalização do machismo e a defesa da submissão da mulher.
Muitos desses cidadãos vivem um momento crucial de suas vidas, porém não conseguem se livrar do jeito antigo de ser. Sentem crescer neles mesmos a tentação de um discurso conservador (e se assumir conservador agora já nem é mais chato, está na moda e no poder), embora não combine com o passado deles, o que faz nascer saudades dos tempos de outrora. Sentem correr o sonho e a imaginação!
Estão ficando com saudades e insatisfeitos com o jeito dessas admiráveis repúblicas. A impressão que se tem é que o tempo presente é algo indecifrável, é outro, é totalmente descafeinado. Há aqueles que insistem na mudança de como se produz e não do modo de produção, que continua capitalista com formas sempre novas de explorar, acumular, individualizar, precarizar o trabalho e excluir. Fala-se, inclusive, de uma tal sociedade do conhecimento que ninguém sabe quem é!
Nesse contexto, costumeiramente, ainda se insiste em pátria, trabalho, produção e educação para o futuro. Trata-se de uma metáfora que manifesta descontentamento com o presente e a dificuldade parece estar exatamente nesse ponto e lugar: entender quem governa o presente e qual a opção a fazer nesta atual encruzilhada. O trabalhador de hoje é desafiado ou será capaz de fazer um cansativo exercício contextual constante e insaciável?
“O mundo atual é insano e sem sentido!” pensam com mais insistência tais personagens das repúblicas do sul. Até chegam achar que a mudança das pessoas deve estar vindo do uso do computador, do atual acesso à informação e da mal regrada internet com seus jogos e redes sociais. Agora, dizem, basta clicar no “salvar”, no “enter”, no “delete”, no “page down” ou no “page up”, no “esc”, no “ctrl alt”, no “ctrl c” e no “ctrl v”… Não é mais preciso dizer sim ou não, apagar ou fazer o exercício de ir até o fim da página cognitiva e manualmente. Algo no cérebro deve estar mudando com essas habilidades novas, mais motoras e menos reflexivas.
Não fosse somente isso, estão com a impressão de não existir ética nenhuma no uso das comunidades e espaços de conversas dessas novas tecnologias. As pessoas que trabalham nas empresas ou em casa acabam perdendo um tempo enorme em resolver problemas oriundos desse uso sem ética ou autoria e não se possui uma disciplina no dia a dia ou o conjunto das informações e que não se está dando conta de trabalhar tais questões. Parece-lhes que o problema esteja em determinar o que esteja gerando todo esse torpor e estado de coisas, achar um livro que explique ou dê uma receita de saída para a crise.
O futuro parece invadir suas vidas de uma maneira repentina e permanente. Isso tem causado queixa e sentimento de impotência não poucas vezes, pois não conseguem fixar o presente e o futuro bate na porta a todo instante, o que subtrai a referência do passado. A cada dia sentem-se obrigados a viver mais depressa, sem aquele tempo tranquilo com que se estava acostumado a resolver as coisas. A sensação é de estar sempre à beira do abismo ou debruçado nos muros do futuro… e o futuro é apenas uma metáfora.
O que ou quem controla os passos das mudanças? Há tentáculos movimentando passado, presente e futuro? Existem conspirações permanentes a desencadear essas desconhecidas sensações? Quem e como são tramados os fios do presente e de suas vidas?
Eles, como cidadãos comuns, já não têm as respostas de antigamente. Suas categorias de análise e suas crenças parecem já ser incapazes de responder e oferecer saídas. Quase sempre estão insatisfeitos ou em crise permanente e nessa situação não há movimento e sim paralisação. Invariavelmente, essa insatisfação é repassada para a nova geração, para seus pares no trabalho, para suas casas e familiares, para fora de si mesmos, num movimento que impede a autorreflexão e empurra para os outros, todas as culpas e maldições.
Essa sensação gera impotência social e política, pois a inexistência de utopia ou mesmo a distopia imperante em seu entorno impede de andar, romper e reconstruir, enfim superar a crise. A grande questão estaria, por isso mesmo, na falta de visão de futuro? Entender isso e reconstruir utopias podem ser os primeiros, os mais difíceis e intransferíveis dos passos. Ou não?
Tais cidadãos comuns, é bom que se diga, têm muito boa vontade; muitos deles buscam ler bastante sobre esses novos tempos, sobretudo em relação à educação de seus filhos, sobre a globalização e sobre as mudanças desenfreadas. Mesmo assim, o sentimento de que nada pode ser feito parece ir aumentando a impotência e funcionar como a maior e melhor arma do sistema atual para evitar o renascimento da cidadania e o compromisso com o mundo melhor com que sempre sonharam.
O rei está nu enquanto modelo de mundo, enquanto ideologia sociopolítica, enquanto modelo educacional, enquanto profissão, enquanto adultos transmissores e modeladores, enquanto juventude submissa, tarefeira, estudiosa, educada e focada no seu futuro profissional, enquanto referencial de cidadania seguro. O rei está nu, quem vai botar a roupa no rei? Não parece bastar arriscar alguns remendos sobre a roupa esfarrapada que resta, pois o remendo de pano novo tende a aumentar o estrago na roupa e aumentará a nudez do rei.
Os cidadãos destas repúblicas, não poucas vezes, sentem-se como que acordados depois de um longo sonho/sono. Já não encontram os mesmos companheiros de crença, o mundo mudou profundamente, seus atuais companheiros parecem possuir ideias e ideais estranhos, mas mesmo assim precisam lutar por um futuro melhor, sem uma arma poderosa que lhes dê segurança e sirva de alternativa para a batalha de cada dia e de todos os dias.
Não basta gritar: “o rei está nu”, é preciso vesti-lo ou depor o rei?:
O problema está no fato de o momento atual não ser, necessariamente, de inclusão e nem mesmo de pura exclusão, o que significaria poder incluir as maiorias famintas e desnutridas na atual ordem mundial. Os pobres continuam dormindo em caixas de papelão; comendo o que sobra do lixo; o emprego é cada vez mais raro e/ou informal para o tipo de mão de obra que podem oferecer; mesmo aqueles mais preparados já estão experimentando a diminuição de salários e as ofertas de emprego apenas nas áreas de serviços. No momento, o que mais se multiplica são os empregos de salário mínimo, o trabalho informal e o desemprego.
O atual movimento do capital, da política, da infotecnologia é de maior descartabilidade de nações, continentes e pessoas. Falou-se muito da vitória do ocidente e de seu modelo econômico, político e social; porém, os problemas de miséria, de fome, de morte por epidemias primárias, da falta de condições de viver com dignidade aprofundaram-se.
A impressão é que a educação, por exemplo, mais parece uma estação fantasma no meio de um mundo e de pessoas esquizofrênicas a correr contra o tempo e contra a vida. Vende-se a educação instantânea, “fast food”; educação à distância, educação familiar em casa… como se vendem os promotores da educação formal.
Creditam, em momentos de inspiração iluminada, que muitos pensadores ajudaram a matar as grandes narrativas e os grandes discursos que eram referência e amparo para viver e trabalhar e não se consegue encontrar uma outra menos absoluta que as anteriores, mas que lhes devolva o ímpeto da luta e da vida. Assim, muitos vão reeditando teorias de outros tempos e outros mundos como as mais novas possibilidades de viver sonhos, nem sempre novos.
O rei continua nu! Envelheceu! Nu e sem chance de conseguir roupa decente! Há que se mudar o rei. O rei está nu e falta imaginação para inventar um novo!
Mesmo assim, têm-se percebido novidades estranhas no trabalho, na mudança de profissões, nos telejornais e nas conversas com os companheiros. A tal desregulamentação e flexibilização está acabando com a segurança e proteção do trabalho e tantos parecem indiferentes a essa desgraça que chamam de desburocratização do país.
A educação, a pesquisa nas universidades, a formação política… foram reduzidas a subsetores da economia e do mercado. O rei e a rainha das ciências é a economia e a prática parece ser a criação de cibercidadãos de consumo; o conhecimento só tem importância como forma de produção. Competência, eficiência e resultados são as máximas atuais, sedimentadas na educação para as competências e habilidades. Os novos currículos são todos centrados nelas!
No caso das escolas, se diz que é muito importante para ser deixada nas mãos de educadores e educadoras e a tendência será sempre mais insistir que o conhecimento é estritamente individual. A penúltima moda é a escola bilíngue a ensinar que o brasileiro para ser culto deve ser um bom estadunidense, já que toda língua vem grávida de cultura, costumes, modos de viver, ser e pensar. A última “novidade” é a escola em casa!
O fato é, sentem eles, que aquele sujeito iluminista, a velha guarda revolucionária e a esquerda tradicional com seus heróis, já não são simpáticos nesses tempos atuais. São peças do passado… saudosos, é verdade, mas distantes peças do passado. Por isso estaria em crise o antigo e revolucionário cidadão? Esta é a razão da falta de imaginação?
Era costume conversar tudo isso com amigos e companheiros de trabalho, mesmo percebendo que muitos deles viviam a mesma estupefação, Mas até mesmo conversar sobre política ficou impossível, seja na família ou no trabalho. Todos parecem entrincheirados em campos opostos e irreconciliáveis. Sentar à mesma mesa já não é opção!
Incomoda-lhes o jeito como a atual geração lida com a linguagem. Sempre aprenderam que ela era a expressão do sujeito, da pessoa, do cidadão… Lembram do tempo que a palavra valia mais que qualquer documento. Isso tinha a ver com ética, honra, respeito e sentido de vida. Parece-lhes que a linguagem desprendeu-se da identidade das pessoas. Não há mais correspondência entre o que se pensa, fala, faz ou escreve. Nasceu daí a epidemia de “fake news”?
Refletem que na insanidade do momento presente, impera a impressão de que trabalhadores, pensadores, educadores e crentes estejam profundamente perdidos. Como pode um cidadão trabalhador ou alguém que crê em Deus ir agindo assim de maneira tão insalubre e submissa? Como podem pensar em defender sua ultramodernidade, aceitando rechear seus caminhos de cadáveres? Ou será que essas atitudes merecem outro nome e sejam expressões de novos tempos?
Será necessário reconstruir o sentido do ser, de aprender, de viver e conviver e fazer tudo isso mergulhados no tempo atual? Viver com reciprocidade não pode significar apenas saber como foi o mundo ou como vai ser, sem que haja um esforço para realimentá-lo? Seria apenas uma espécie de discurso acadêmico e não existiria interferência dos novos espaços e tempos?
Os atuais cidadãos dessas repúblicas ao sul do equador estão começando a desconfiar que estejam há muito tempo “mordendo o próprio rabo”, pois sentem-se patinando numa mesma situação de catarse permanente e cada vez mais incapazes de novas estratégias de ação. Nessa desconfiança, algumas vezes, parecem ter insights acerca de possibilidades e caminhos não totalmente novos, os quais seriam capazes de ressignificar suas vidas e seu trabalho.
Por outro lado e para começo de conversa, aumentou e ganhou corpo o número daqueles em quem o discurso conservador cresce e os preconceitos de raça, gênero e cor estejam cada dia mais fortes.
A crise política dos reinos do sul tem gerado desilusões acerca do Estado, da cidade e dos políticos. A população vai confirmando um imaginário coletivo de que todos são ladrões, os partidos todos iguais, as pessoas de bem não se metem nesse mundo e que a corrupção seja coletiva. Se é assim, cada qual deve buscar sobreviver, levando a vantagem que puder e que se lixem os demais, até que surja um messias salvador. O tal mito?
Isso significa uma desconstrução de relações de alteridade, solidariedade e reciprocidade, o que é capaz de matar qualquer nação e condenar à dependência qualquer povo.
Como reconstruir utopias? Por qual caminho reescrever uma narrativa “de fundo” que seja referência para educação, formação e ação? Quem, afinal, será capaz de botar a roupa no rei? Quem se aventura a mudar de rei?
Uma das ideias que passa por cabeças dos que ainda pensam é que a leitura e a escrita com autoria na realidade vivida precisam ser reconstrutoras dos sujeitos e isso lhes parece um começo porque essas práticas geram reconstrução cultural; o leitor sente-se possuidor do passado e se capacita a participar da esfera do público, o que é decisivo na formação do sujeito cidadão.
Assim, a tessitura de novas possibilidades precisaria se situar no seu tempo e pensar o que os rodeia, de tal forma que emende e enriqueça as experiências do passado. Isso porque nenhuma tecnologia poderia substituir o espaço da pessoa, do trabalhador ou do educador nesses papéis. Trata-se de um espaço direto de reflexão, ação e comunicação interpessoal cada vez mais disforme na convivência diária e, por isso mesmo, insubstituível.
Outra sensação mais recente de alguns cidadãos dessas repúblicas é que seja necessário recuperar o tempo das profecias. Sentem saudades dos bons tempos de protesto e denúncias, mesmo sabendo que precisam unir, agora e mais do que nunca, a denúncia ao anúncio na direção de novas utopias. Entretanto, parece não adiantar mais ir às ruas a repetir que ”não passarão”, pois vão passando ou já passaram sobre eles aqueles que detêm o poder de excluir e matar esperanças.
Recuperar o tempo de profecias implicaria estar com os pés no chão e a cabeça erguida; profetizar é quase sempre doloroso como foi para todos que ousaram denunciar as injustiças e a miséria. Porque profetizar é estar também à frente de seu tempo, apontar estratégias de compromisso, transformação e revolução; ultrapassar fronteiras, sem deixar de viver profundamente o tempo presente. Profetizar implica, quase sempre, incompreensões, solidão reflexiva e interpessoal.
Sentem que, se o atual cidadão não recuperar o controle sobre seu trabalho e seu tempo com crença num projeto que o inspire, não haverá possibilidade de sair da letargia do momento atual e nem de profetizar. Para isso, novas formas de linguagem crítica seriam necessárias. Mais que isso, parece necessário perceber que qualquer sociedade tem seu diferencial num projeto de constituição dela própria e no processo a ser tecido, é verdade, porém não menos verdadeiro é dizer que somente nascerá um projeto e processo além de embates individuais internos e sofridos se houver ação pessoal e coletiva de seus cidadãos.
Talvez fosse necessário uma melhor percepção sobre as preocupações presentes no início do século vinte e um: preocupação ética no sentido de pessoa e sociedade que se deseja e que qualidade de vida seja necessário garantir para todos; preocupação política, rediscutindo as formas de poder, de participação social e de interesses comuns que aglutinam em torno de um projeto de pessoa, de nação e de mundo; preocupação epistemológica, capaz de elaborar um pensamento crítico de ruptura e superação do estado atual de coisas, capaz de compreender a realidade para encarnar novas formas de transformação e capaz de gestar um novo dispositivo teórico para uma nova grande narrativa aberta às novas exigências e possibilidades, necessidade da mudança da metáfora do construir (sociedade industrial) para a metáfora da tessitura (sociedade de rede).
Por que isso parece importante? Porque nos dias atuais e para as minorias opulentas interessam sujeitos sem consciência histórica autônoma, a manutenção das diferenças sociais e tecnológicas já estabelecidas, o cinismo ético como instrumento de aparência, algo como ciência com anomia e sem ética e a fragmentação de tudo e de todos como forma de gerar impotência pessoal e social.
A distopia do contexto atual gerou vazio, desconstruiu identidades nacionais, sociais, sindicais, institucionais e pessoais. Por isso, pensam eles, seria essencial superar a pretensa e propagada neutralidade frente a tudo que acontece. Na verdade, não se é neutro e nem é possível se contentar em reproduzir o modelo ditado pelos discursos preponderantes nos meios de comunicação, na política, nas formas propostas para o uso das novas tecnologias e na corrida angustiante do tempo presente e contra o tempo que se esvai. Nada é sem partido!
O caminho dessa nova tessitura passaria, certamente, pela recuperação do poder de imaginação e sonho, da reflexão-ação-reflexão dialógica sob vários aspectos: diálogo aberto por questionamentos; inteligência cultural que leve em conta toda a interação cultural e não apenas a cognitiva; transformação do meio e a relação entre as pessoas; dimensão instrumental no sentido de englobar a técnica e a tecnologia do aprender; criação de sentido, transitando da interação entre as pessoas para a interação pessoal; solidariedade e alteridade; unidade na diversidade; tessitura de novos caminhos e opções de conversar entre opostos.
Enfim, como cidadão, vive-se numa encruzilhada – no torpor da sensação de impotência e falta de imaginação frente a um mundo insano – as possibilidades e a necessidades de tecer novo ideário. Não parece haver jeito de fazê-lo sem a tessitura de utopias e enfrentar a impertinência do tempo presente, sempre mais comprimido, mais rápido, mais angustiante e mais insalubre.
Eis, de volta, a questão: O rei continua nu? Será caminho colocar roupa no rei? Já não seria hora de mudar o rei? Não passou do tempo da recuperação do sonho, da profecia, da criatividade e da imaginação?
Adalberto Fávero