Saber Português

Paulo Venturelli

 

Não se trata de entupir o cérebro do aluno de

nomes, datas, fatos, regras e fórmulas: trata-se simplesmente

de ensinar-lhe a observar, pesquisar e descobrir, dando-lhe as primeiras

noções indispensáveis, e que se reduzem, em definitivo, a um pequeno número.

Pierre Denis

 

Não tenho a pretensão de apresentar nenhuma novidade no que segue. Tudo o que escrevo neste artigo já foi dito e redito, escrito, publicado de mil maneiras diferentes por grandes especialistas em língua portuguesa (o que não sou). Por falta de tempo, não tenho como ir atrás de fontes e nem seria o caso. Aliás, como diria Bakhtin, se colocássemos por escrito nosso discurso, este deveria estar entre aspas, pois vivemos citando. É isto, esqueço em grande parte as vias pelas quais cheguei aqui, esqueço as aspas, assumo uma fala que vem enfronhada pelo sangue vivo e pulsante de outras falas e assim exponho meu dizer para alertar sobre os problemas que encaro e para os quais quero chamar a atenção nestes tempos de obscurantismos medievalescos, quando as humanidades são desprezadas em nome do mercado, como se este não fosse constituído por grupos que procuram a qualquer custo enriquecer mais e mais, não importam as vítimas que ficam no rastro da ganância.

Vamos ao(s) ponto(s). Estou cansado de ler, ouvir, assistir a reportagens afirmando que o brasileiro não sabe português. As empresas alegam que têm vaga. Estas não podem ser preenchidas porque nos testes de admissão os candidatos demonstram inaptidão com a língua. Olhando de perto tais testes, eles estão concentrados em problemas de gramática e, em especial, de ortografia. Ou seja, em questões supérfluas. Sabemos que a ortografia é convencional, muda com o tempo, a favor de ventos que não importa destrinchar aqui. Faz pouco, passamos por uma reforma. Quando eu era jovem, assim se escrevia: admiràvelmente êle (pronome), ele (letra). Quantas pessoas ou gerações foram reprovadas, sacrificadas por “não saber” seguir estas normas. Um belo dia, tais acentos foram mandados para o baú. E os estudantes/trabalhadores que ficaram pelo caminho? Alguém irá resgatá-los? Até um tempinho atrás: lingüiça, agora, linguiça ­– estréia, agora estreia e uma infinidade de outros “retoques”. Por que nossos alunos devem ser massacrados por detalhes desta natureza? Se em lugar de casa, alguém escreve caza, o céu vem abaixo, mil dedos apontam a acusar esta criatura ignorante: NÃO SABE PORTUGUÊS!!! Será que estas picuinhas concretas não são suficientes para a escola, os professores, a sociedade perceberem o que há de secundário em todas estas reviravoltas? As dúvidas que alguém tiver quanto à ortografia/acentuação podem ser sanadas com consultas aos dicionários. Eles existem para isto. Por que perder meses e meses de ensino martelando em pontos que não levam a nada, fazendo provas a respeito e reprovando alunos?

Gostaria de trazer uma vivência pessoal: na época em que corrigia as famigeradas redações do vestibular, às vezes encontrava textos crivados de erros de português, mas eram textos a apresentar conteúdo, bom encadeamento de ideias, clareza de exposição, postura pessoal. Eu valorizava tais escritos, julgando-os muito melhores do que aqueles certinhos, com introdução, desenvolvimento, conclusão, saídos da fôrma dos cursinhos, ocasião de lavagem cerebral, massificação, decoreba em lugar de raciocínio. Uma fórmula fora dada ao aluno. Este, esperto, a absorve. A obra produzida vem escorreita, sem nenhum problema grave. Mas qual o valor? Não há ideias além do senso comum, não há posição pessoal, não há visão de mundo além de clichês, em suma, a língua está lisa como está ausente o pensamento, tudo previsível, tudo bonitinho como o professor e a mamãe gostam. E daí? A obra é um amontoado de frases feitas, sopa de isopor sem cheiro nem gosto, moldada pela indústria cultural presente nos tais cursinhos. Com certeza texto deste feitio será aprovado, o outro, com erros, será mandado para a ilha dos deserdados. Só um exemplo real: em certo ano o tema a ser desenvolvido rodava em torno de questões de terra, interior, vida no campo. Um eleito dos deuses escreveu mais ou menos o seguinte: No campo todos vivem felizes, vestidos de branco, por que ali reina a paz, a vida natural, todos se conhecem e blá-blá-blá. No campo todos vestem branco? Ali há paz? Reinam os deuses da solidariedade? Este fulano nunca ouvir falar de conflitos de terra, de UDR, de fazendeiros com suas milícias matando índios, caboclos, missionários, da exploração ilegal de minérios, dos rios poluídos, da mata estuprada…

Me referi acima aos textos dos trabalhadores e deslizei para o vestibular. Noves fora, é tudo o mesmo embaraço, o mesmo circo, a mesma confusão de não-valores, a mesma visão míope do que seja saber português. Todos são lançados no espaço sem rede protetora sob os corpos que voam para lá e para cá.

Aliás, os jovens em geral sofrem a pecha: não sabem a língua mãe, têm dela domínio fraco. O que significa isto? Sem dúvida: não sabem gramática – conjunção, preposição, verbos defectivos, oração subordinada objetiva direta etc. Trago um paralelo: se alguém for aprender a dirigir e lhe ensinam a teoria do motor sem que o dito cujo entre no carro e assimile a sua parafernália, os códigos de trânsito e quejandos, ele estará de fato aprendendo a dirigir? Estar em contato com “teoria da língua” é saber a língua? Os jovens entre si se comunicam muito bem. Em situações outras ficam travados porque intuem que estão em contatos com o poder: o professor, o pastor, o padre, o pai… Quando namoram, tudo vai bem, não creio que fiquem em silêncio absoluto por desconhecerem a gramática. E com todos os penduricalhos tecnológicos de hoje, eles não vivem afogados em mensagens? Ah, isso é internetês. Não importa, a escola só está preocupada com o gramatiquês. Perceberam, por acaso, as passeatas que a meninada organiza, leram os expressivos cartazes que carregam? Isto é língua viva, pulsante, reavivando a esperança. Saber a língua é saber falar, ouvir, escrever e ler. Aqui o nó – falar, ouvir, escrever, ler implicam pensamento, leitura, visão de mundo, consciência dos direitos, cidadania, ideologia, então a porca torce o rabo. A escola/família/sociedade ensina tais desenvolturas? Sabemos que não. Alunos são massa de manobra, devem ser cordeirinhos, se assujeitar, se preparar para o nefando vestibular, aprender para o mercado, ser mão-de-obra barata para as empresas. A propósito, leitor, você já leu o livro A escola não é empresa, do sociólogo francês Christian Laval? A Boitempo o relança no final de julho. Nesta obra o autor discute a crise de legitimidade da escola em tempos de avanço neoliberal e põe em cheque os valores embutidos em termos correntes na educação, como inovação e eficiência. O sociólogo mostra como órgãos internacionais – Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio e Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – pressionam as instituições de ensino e os profissionais da área a se moldarem às necessidades do capitalismo contemporâneo (Maria Fernanda Rodrigues – sessão Babel – Caderno 2 – Estadão, de 22.6.19). É preciso dizer mais? Notar: os conservadores se unem em grandes corporações para impor seus interesses à escola: conseguir alienados robotizados na narcose do salário baixo, auferir lucros astronômicos, impor sua ideologia de mercado e todos esses trastes que devíamos conhecer. Por que nós, que pensamos no ser humano como tal não nos reunimos para forçar a escola em outra direção? Claro que o leitor já ouviu falar de grupelhos que batalham contra a escola sem partido. Qual partido? O partido do ser humano despojado das mínimas condições de vida, de saúde, de saneamento, de moradia, de oportunidade de trabalho, educação, lazer. Quanto ao partido das referidas entidades de alienação e exploração, aí tudo bem, pois gera lucro com as cabecinhas colonizadas para irem a baias de trabalho e produzirem o lucro visado. Saber português é saber destas tramoias. Quem conhece uma língua pensa, critica o mundo, critica os privilégios desses que se dizem autoridades e comandam uma republiqueta das bananas sugando dela o que tem de melhor e o resto que se dane com o salário mínimo ou o desemprego. Alguém, num manifesto famoso que revirou o mundo pelo avesso, percebeu a tragédia: trabalhador ganha apenas o suficiente para sobreviver e gerar filhos que por sua vez entrarão no círculo vicioso. Em lugar de enfatizar estes desmandos, a escola insiste no gramatiquês porque, enchendo a cabeça da garotada de regrinhas sem serventia, não há perigo deste pessoal se tornar comunista, como se apenas estes tivessem em pauta a preocupação com a solidariedade e a luta a favor dos despossuídos e marginalizados. Saber uma língua, é saber de si, saber se colocar no mundo em interação com o outro. O tal sistema educacional rejeita tal coisa. É mais frutífero que os educandos se angustiem com regras e provas que irão cobrá-las do que leiam bons livros, façam boas pesquisas e entre eles discutam a situação da escola, da rua, do bairro, da cidade. Os magnatas (há rótulos melhores) não querem incômodo. Afinal, são empreendedores, dão emprego, são o PIB do país, precisam faturar alto. E faturam. Por que não reinvestem o lucro nas próprias empresas só para diminuir um pouquinho a desgraça do desemprego que não é obra dos deuses? Já pensou a estudantada descobrindo o que há por trás deste desemprego, dos lucros que as multinacionais enviam para o exterior a cada minuto, da baboseira que afirma que o Brasil é pobre, enquanto as elites desfrutam do que há de melhor na vida? Conhecer a língua é saber destrinchar esses horrores econômicos/políticos e saber de onde brotam as periferias e os massacres que elas sofrem no cotidiano, saber por que há gente embaixo de pontes e viadutos, nas favelas volta e meia devoradas por incêndios. Enquanto o jovem viver preso a regrinhas de gramática e enforcado na noção de língua padrão, ele é facilmente manipulado, bovinizado, acordeirado e conduzido pelas artimanhas da burguesia e, em especial, levado a confirmar no poder certas figuras retrógradas, anti-humanas, anti-direitos, figuras que visam entregar o país mais ainda à fome de lucro escondida sob o rótulo de privatizações. Milhares e milhares de garotos e garotas discutindo acerca disto fariam o que do Brasil? Saber a nossa língua é entender que a corrupção maior não é a que a imprensa mostra todo dia, mas está nos bilhões de reais mandados a paraísos fiscais, como alerta Jessé Souza, dinheiro que “deveria” ficar aqui para os investimentos em áreas vitais para a sobrevivência do povo trabalhador. Já estou velho. Há muito tempo ouço dizer que o Brasil é o país do futuro. Por que este futuro nunca vem? Uma das respostas está no fato das oligarquias se perpetuarem no poder concentrando mais poder e riquezas. Uma certa ministra do novo governo pertence a família que está entronizada no Estado desde a época do império.

Convido a pensar num tema bem debatido desde os anos 70 do século passado e que parece ter engatinhado para debaixo dos cobertores: a língua é um conjunto de variantes. É mais ou menos como a roupa: para cada ocasião, para cada espaço a vestimenta adequada. A chamada norma culta ou padrão é apenas um modo de falar/escrever – o modo dos “vencedores”. Para você ter uma ideia clara: isto que hoje é o certo, o padrão já foi a língua do zé-povinho no tempo em que a cultura usava o latim. Aquele zé-povinho era triturado como ignorante. A História é dinâmica, a língua é dinâmica. O falar daquela gente hoje está entronizado e, por sua vez, serve de marreta para marginalizar/oprimir os falantes populares de hoje. Ou seja: nóis vai é tão legal quanto nós vamos. Não há nenhum critério científico para condenar a primeira forma e prestigiar a segunda. Qual o papel da escola? Deixar a criança usar o nóis vai e a gente foram e ensiná-la a usar a outra forma em ocasiões em que ela se faz necessária. Lembremos da roupa. O que estou tentando dizer? Devemos incutir no aluno a peripécia de ser esperto, camaleão social. Se ele fizer uma petição à prefeitura com o nóis vai, provavelmente terá pouca chance de ser atendido. Sírio Possenti: talvez deva repetir que adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico. Mais que óbvio. Desde que a escola tenha maleabilidade ideológica para não excluir de sua área aqueles que usam outro dialeto. A questão é somar, não dividir.

Estas linhas de trabalho parecem estratosféricas. Vamos à prática: durante quase 11 anos trabalhei no Colégio Medianeira (Curitiba). No início, fui um professor comum: livro didático com o qual só retransmitia conhecimento sintetizado por outros; aula de redação; análise sintática e baboseiras tais. Ficava estampada no rosto dos meninos e das meninas a chatice, o enfado, o tédio de tudo aquilo. Eu me sentia desconfortável dentro de minha pele – um papagaio falador repetindo ad nauseam o que não interessava a ninguém. Minha angústia me motivou a buscar outros caminhos. Li, fiz cursos, investiguei em busca de resposta à fatal pergunta: o que fazer? O que fazer para eles aprenderem e eu aprender com eles? De tanto quebrar a cara, de tanto atravessar o deserto inóspito daquelas aulinhas, fui esboçando uma resposta e ela mudou tudo: estou em sala de aula para tornar meu aluno leitor. A partir daí, alternativas radicais – eliminei o livro didático, eliminei o horror que levava o nome de redação que deixa sempre a gurizada num beco-sem-saída. Em lugar disto, debates. Tomava questões candentes do que ocorria no país, líamos um texto a respeito. Um exemplo: o pai estupra a filha; a filha mata o pai a facão. Legítima defesa? Assassinato? Pedia que cada um colocasse sua opinião no papel. Depois escolhia três alunos de uma posição e três da outra. Debate. Normalmente acalorado e com bons fundamentos. Isto feito, chegava o segundo momento: quem mudou de opinião e por quê; que argumento levou à mudança etc. Eles escreviam, reescreviam, argumentavam com base nessa ou naquela visão, tinham ideias novas. O resultado me era entregue. Lia cada um. Escolhia o problema mais presente. Concordância verbal? Nominal? Pontuação? Com um texto no quadro, atacávamos em conjunto o desacerto. Os adolescentes estavam escrevendo/corrigindo sem o nome traumático de redação, estavam aprendendo a norma culta sem o sarampão vermelho da caneta do professor, estavam aprendendo a discutir e ouvir a opinião de outro, sem melindres. Nada impedia a consulta a compêndios e dicionários (que aprendiam a usar). E a aula deslizava viva e pulsante.

Outra postura: criei pequena biblioteca em sala de aula, livros indicados pelos alunos ou por mim. Uma vez por semana, leitura. Sem prova, sem teste para “verificar quem está lendo”. Aluno que fala, argumenta, escreve é a comprovação de que vem lendo de modo adequado. Em minhas pesquisas, percebi: o professor adota livros, em sua maioria, sem os ler. A obra vem indicada pela editora para tal e tal série. O professor vai no embalo. Qual o critério para conduzir o livro por idade? Ah, este livro é para crianças de 8 anos. Todos os de 8 anos são iguais? Suas histórias, famílias, experiências, seu próprio ser pensante não trazem diferenças abissais? Claro que sim. Mas há o interesse na massificação. Arrasar pelo denominador comum mais baixo. Lembra o caro leitor da bovinização citada antes, dos objetivos das grandes corporações que querem todos passivos? Começa assim.

Em lugar do livro didático, usava material da imprensa, com abordagens diferentes para fatos marcantes; contos – uma narrativa curta oferece facilidades de trabalho em sala; piadas, idem; poemas; idem. Pedia que trouxessem fotos antigas da família, que pesquisassem as histórias dessa – como os pais se conheceram e começaram a namorar, por exemplo. Os alunos faziam um texto a partir de tal pesquisa no qual se incluía. Em suma, estavam o tempo todo lendo, escrevendo, absorvendo regras da língua sem eu as impor goela abaixo e descontextualizadas.

Trabalhar com reportagens e resenhas e entrevistas e editoriais do mundo atual torna a aula vivíssima porque todos estarão lidando com o contexto em que estamos inseridos. E hoje, com todas as facilidades que as muitas mídias oferecem, como o caminho ficou amplo e pode ser produtivo. Nos anos 80 eu não dispunha desses confortos. Então me voltava para a TV, o cinema, o teatro, HQ, pichações. Lembro de uma peça dirigida por Édson Bueno – “Um rato em família”, posso estar enganado, cito de memória. Mas seja qual for a peça, foi o mote para eu trabalhar com A metamorfose, de Kafka. Leram, assistiram à peça, fizeram relatórios, discutimos à exaustão. Criaram a própria metamorfose. Qual seria na real o inseto em que Samsa se transforma? Resultado: alunos empenhados, entusiasmados, querendo outros livros do autor. Entusiasmados? Mais: críticos, criativos, produtores de conhecimento e histórias, com possibilidades de fazer n analogias com outras linguagens. Extrapolamos o sentido escolar de leitura: eles passavam a escrever a sua história com ou sem a família. Isto, a meu ver, é tornar o estudante autônomo, criativo, curioso, aberto ao diferente, sem medo de esbarrar no desconhecido, aplicado em várias linguagens que revelam a grande arena de conflitos que é o mundo, conflitos essencialmente carnalizados na língua.

Tenho adoração pelos clássicos. Mas não são autores para a sala de aula – isto se não houver uma mediação muito bem feita pelo professor. Creio, todavia, que estes autores não são próprios para a sala de aula. Em primeiro lugar, a língua deles é estrangeira para a garotada. É mais humano ler autores atuais, que quebram as normas da própria língua, que chafurdam na medonha realidade brasileira, que desvendam o véu de todos os templos, que desmistificam as falsas seriedades do mundo, que mostram os bastidores do que vem mostrado no primeiro plano do palco, que levantam bandeiras cruciais para o nosso tempo – feminismo, negritude, vidas gays, novos modelos de família, robôs, as novas formas de escravidão, o estupro, a violência contra a mulher, idosos, crianças, animais, meio ambiente, os imigrantes, as religiões e suas verdades prontas que são causa de tantas mortes, as políticas, os índios, os gêneros identitários, os ciganos, o nacionalismo… A literatura rompe todos os paradigmas. E é para romper paradigmas que educamos, não para confirmá-los. O mundo é tão rico e tão devastador, tão complexo e tão mesquinho, tão diverso e tão impositivo. Por que deixá-lo de lado? Por que debruçar a cabeça sobre o livro didático e esquecer a paleta de cores incríveis que acontecem fora de nossas janelas e em especial dentro de nossas salas com os alunos ansiosos por respostas a suas ansiedades. Quem trabalha com adolescente: já experimentou usar um texto que expõe qualquer tipo de sexualidade? Eles são carentes de informações e discutir os aspectos variados deste tema leva inclusive o professor a outros patamares, quebra ilusões e verdades pré-concebidas, abre uma pletora de questões que dão matéria para um currículo completo. E a linguagem torneando este mundo fica ainda mais viva e atraente. Liberta.

O que alinhavo aqui não vem apenas de minha cabeça. Ninguém pensa só por si. Como diz Harold Bloom (vejam só, cito um conservador), precisamos ler, deglutir ideias dos outros para produzir as nossas. Melhor fez Bakhtin: a língua não é instrumento de comunicação, é espaço de interação. Minha fala vem carregada pela do outro com suas intenções, entonações, modulações, histórias, ideologias. Sendo assim, venho abrindo meu caminho pelos discursos que me construíram por meio de grandes professores: Eurico Back, Carlos Alberto Faraco (UFPR), João Wanderley Geraldi, entre outros. As possíveis falhas conceituais, entretanto, são minhas.

Como afirmei no início, nada do que estampo aqui é novidade. Mas é preciso relembrar, enfatizar tudo outra vez diante do retrocesso geral do país e, em especial, do descalabro a que foi submetida a educação. Agora que ignorantões vêm a público arrotar seu desprezo pelas humanidades, sociologia, filosofia, artes, letras; agora que Chico Buarque recebeu o Camões e nenhuma autoridade teve uma palavra a respeito, enquanto a golden shower mereceu tanto espaço; agora que filmes brasileiros são premiados em Cannes e se faz silêncio; agora que a pedagogia de Paulo Freire vem ameaçada de ser linchada, quando ela é nosso caminho mais luminoso; agora que astrólogos fajutos ditam direções a seguir, não podemos perder de vista tudo o que se vem discutindo/praticando desde os anos 70. Os conservadores de plantão a danificar tudo com o propósito de emburrecer as novas gerações e colocá-las sob a canga do capitalismo mortal (só se fala de mercado), nos acusam de pregar ideologias e não ensinar – se tivéssemos feito isto ao longo das últimas décadas, com certeza as eleições de 18 teriam um resultado menos desastroso.

Então, saber português é saber ler todo tipo de texto e tirar deles as armas das ideias para nos fortalecer no bom combate. Cecília Meireles escreveu que a vida só é possível reinventada. Os milhões inclinados sobre celulares estão recriando a vida? Ou absorvendo mais preconceitos, senso comum, verdades cimentadas por vozes de pastores arrogantes e milionários? Esse pessoal enfrenta visões contrárias, discursos diversos, diálogos com gente de outra esfera? Com uma leitura consistente, em especial do literário, vamos formando nossa teia, pois somos rede de falantes leitores, em que o contraditório e o provisório se fazem presentes. Sabemos que as verdades são históricas, por isso mutáveis e a língua, organismo vivo que é, nos sensibiliza para tal fato, a língua em perpétua mutação e não o fóssil enterrado entre as capas/normas da gramática.

Volto ao tema. Não há português certo ou errado. Estes conceitos visam oprimir, castrar, alienar, colonizar os que já são desfavorecidos e a pobre gente introjetando a ideologia do não-saber-português se torna estática, não encontra direção a seguir. Ainda bem que a cultura hip-hop, o rap, a street-dance e assemelhados estão movendo a roda das estruturas que se querem paradas e silenciadoras das assim consideradas periferias. A exclusão é social e econômica. Não pode ser também linguística. Um problema gravíssimo está embutido no não-saber-português – ignorância, incapacidade, não dispõe de vocação para isto ou aquilo. Então, salário mínimo nele. Com tal argumento, tentam justificar pela biologia problemas de ordem eminentemente político-social. Ninguém nasce com vocação para nada (até poucos anos atrás, quando a informática não pulsava, ninguém tinha tendência, talento para ela, agora que ela ferve na crista das ondas todo mundo vem à luz impregnado pela vocação cibernética? – já notaram quantas crianças querem ser youtubers? Vocação ou fato histórico?). Meu possível leitor: procure ler a biografia de grandes homens e mulheres. Note o quanto há de luta e esforço disciplinar para se tornar o que se tornaram. Até Einstein foi considerado um incapaz intelectual. E se ele tivesse aceitado esta carapuça? Quando na escola o Joãozinho é considerado desprovido de capacidades de aprender e muitas vezes relegado a “salas especiais” o que este menino está aprendendo? Terá forças, clarividência para se opor a esta canga?

Por isto insisto: ler é um ato político de redenção, de resistência, de assunção – o sujeito pode aprender quem é e quem pode ser e se recusar ao papel de marionete nas mãos de grupos hegemônicos. Todos temos competência. Caberá à escola, por meio da língua/leitura promover o desempenho que leve cada estudante a um patamar em que vislumbre um horizonte mais amplo. Ninguém é nada pela natureza. Desde Aristóteles aprendemos que somos animais sociais. Animais gregários. Eu me vejo como acho que o outro me vê. O ser humano é o que aprende a ser. O ser humano é ser de linguagem e aí a língua é primordial para consubstanciar sua mente.

Diante de uma paisagem social como a nossa, por que perder tanto tempo martelando em regrinhas que só levam ao aborrecimento e à espantosa evasão escolar. O aluno, em especial o pobre, chega à escola e percebe que seu modo de falar, aprendido com a família, é desprezado como errado, falho, vai ficar nesta escola a troco de quê. Ele irá fugir daquilo que o esmaga, daquilo com que não tem nenhum laço emocional, afetivo, existencial. Serão necessários muitos seminários para se estudar a evasão escolar?

Graciliano Ramos dizia mais ou menos o seguinte: começamos oprimidos pela gramática e acabamos oprimidos pela delegacia de ordem social. É isto. Gramática no módulo tradicional de ensino é opressão, manobra repressiva para não deixar o aluno se expandir em sua criatividade. O que fez Guimarães Rosa com a gramática e um Mário de Andrade? Quantos Guimarães e Mários estamos sufocando todo dia? Não apenas no texto escolar, mas, em especial, no texto da vida?

Ler, escrever, ouvir, falar são oficinas nas quais aprendemos a burilar nossas ferramentas para distinguir verdades de mentiras. Apesar dos paspalhões afirmarem que as ideologias acabaram, língua é em essencial ideologia – o mirante social do qual descortino o mundo e com ele entro em contato. Nascemos dentro de uma língua e com ela aprendemos todos os valores. O EU é linguístico.

O andar de cima não quer saber nada disto – você nasceu tonguinho, meu filho, fique aí na tua e não incomode. Marx já advertiu: de quatro em quatro anos temos o direito de escolher quem nos vai explorar.

Se o aluno perceber que seja qual for seu jeito de falar/escrever ele é tão culto quanto outro qualquer, este aluno aprenderá a plasticidade da língua: vou usá-la segundo a situação. Ele estará aprendendo a ser livre. E quem é livre esperneia. E quem é livre chegará às obras substanciais da literatura para dali sugar o óleo mais espesso para lubrificar suas asas. A maior invenção humana é a língua. Ela não pode ser uma cilada para a opressão. Língua é teatro. Teatro para divertir e pensar. Língua-teatro. Língua-máscara. Em cada ocasião social se usa a mais adequada.

Né, mano?

Para concluir, um convite a mais à reflexão: Pelloutier sabe que a miséria não é o adubo do saber; ele entende igualmente que as ocupações, os divertimentos concedidos às massas desviam-nas do esforço da cultura de si mesmo. Denunciando a arte fácil jogada como pasto ao povo, ele demonstra tão bem os mecanismos dessa manipulação ideológica quanto explica as razões que levam o operário esgotado a buscar reconforto e relaxamento em seus fúteis divertimentos. E vejam que ele ignorava tudo dos poderes hipnóticos do cinema e da televisão.

Grégory Chambat

Nosso grande Antonio Candido alertou, anos atrás, sobre a necessidade que o humano tem de ficção. Ninguém aguenta ficar 24 horas por dia com a cara metida na realidade. O que faz o brasileiro comum? Em geral vê novela, lê Caras e ouve sertanojo, crente que está aliviando os ombros do peso do cotidiano. Não percebe que esta é a “arte” fácil acima citada. Arte? Tão somente indústria cultural, o modo de produzir droga em série para encher os bolsos dos mesmos de sempre.

 

Inverno/19