Martinha Vieira*, sobre a obra de Chico César (música) e Carlos Rennó (letra)
A “vocês que se elegem e legislam” ou o pacto sinistro e o impacto nefasto
Disse o poeta um dia: “Só é cantador quem traz no peito o cheiro e a cor da sua terra, a marca de sangue de seus mortos e a certeza de luta de seus vivos” (François Silvestre – poeta/ escritor nordestino).
Poeta cria e diz palavra. Cantador veste a palavra de música e a leva adiante. Criar, dizer, cantar, para não esquecer e também denunciar toda forma de injustiça. A palavra entoada se estufa de força, como a vela estufa ao vento impulsionada mar adentro. A coragem de adentrar o mar e navegar, navegar… mesmo contra a maré.
Com força de música a poesia enraíza e cresce. Palavra e canto se erguem em coro, potencializando-se mutuamente. Carlos Rennó, poeta paulista, letrista em incontáveis parcerias musicais da MPB (como Arrigo Barnabé, Chico César, Lenine, Paulinho Moska e muitos mais), cultiva em seus versos o olhar agudo e a palavra pontiaguda na denúncia do que fere a dignidade humana. Chico César, músico, cantor e compositor paraibano, sempre engajado em movimentos sociais e políticos que buscam o fim da opressão e da injustiça, faz da voz também um instrumento de luta por causas coletivas. Em tal parceria se soma a função do cantador, lembrada aqui nos versos de François Silvestre, à função do poeta, e nasce a canção que discute as grandes questões do seu tempo, a canção que embala e encoraja, que embeleza e que sacode estruturas. E Chico veste de música e leva adiante em seu disco e pelos palcos e movimentos populares a denúncia poética de Rennó contra aqueles que fazem da desgraça coletiva o seu grande negócio, e por seu lucro devastam, poluem e envenenam. E que se organizam em nome da manutenção dos seus privilégios, e na instituição democrática se validam pelo voto dos incautos, dos ingênuos e das ignorantes vítimas de um sistema de manutenção da não compreensão das estruturas de opressão. E fazem lobbys nas bancadas de deputados e senadores, como se representassem seu povo. Mas só representam aos seus próprios interesses destrutivistas de toda forma de vida, do humano, do boi, da mata, do ambiente.
Grandes corporações agropecuárias, religiosas, empresariais e industriais, aliadas às grandes redes midiáticas, se articulam fortemente para garantir que seus interesses não sejam derrotados pelas necessidades básicas de sobrevivência da maioria empobrecida, e apostam suas fichas para engrossar o caldo da ingenuidade e da ignorância de muitos “cordeiros” que acabam elegendo os “lobos” vorazes, vestidos em pele de ovelha com suas posturas veladas ou, ainda, que apostam no incremento da maldade de outros, com posturas despóticas e cínicas declaradas. Assim se elegem as bancadas famigeradas daqueles que se tornam reis do agronegócio ou de quaisquer outras máfias que engendram o enredamento do povo nas suas ciladas que prometem alimentar, curar, dar conforto espiritual e emprego, mas devolvem o sarcasmo e a tirania, estimulando o trabalho escravo, o subemprego, a morte no campo por veneno ou bala, a indigência nas cidades e as tragédias ambientais. E banqueteiam-se com seu astronômico lucro à custa da desgraça daqueles que não lhes interessam mais, tão logo apite a urna eletrônica no aperto do “CONFIRMA”.
Esse é o recado da canção, uma denúncia corajosa contra aqueles que parasitam a democracia, criando e alimentando um círculo vicioso de miséria e submissão. E “na mansão o fato não sensibiliza”, e quem sempre paga a conta do banquete de privilégios dos gigantes devoradores do país nessa história de mais de 500 anos é o que não tem mais com que pagar, hipotecando a própria vida e das gerações seguintes na conta impagável do que não desfrutou. Quem fica à margem da mesa é aquele que raras vezes teve um prato de comida, é o que prepara tudo e no final nem pode sequer recolher os restos, pois, segundo as bocas fartas de comida de quem sempre recebeu o peixe pescado, limpo, assado ou frito, temperado e acompanhado de tantos outros requintes gastronômicos, permitir a migalha ao miserável seria “dar o peixe em vez de ensinar a pescar”.
Vimos no Brasil, em 2002, não apenas uma alternância de poder, mas de classes, o que despertou a ira dos sempre donos do banquete. E hoje assistimos a um jogo com juiz comprado, em que um drible sem tira-teima leva de volta ao poder uma elite defensora de um projeto neoliberal responsável pelo aprofundamento das desigualdades em vários países e no Brasil. Assistimos a esse jogo xingando o juiz e comendo pipoca, talvez sem perceber que o próprio jogo é uma estratégia para o desencanto com a democracia.
O voto como um direito de todos é uma grande conquista, é uma das formas de se ter voz nas decisões coletivas, mas não é a única. Revoluções precisam ser gestadas. Revoluções culturais e educacionais, já que posicionar-se no debate político e somar forças pelo voto exige antes discernir os projetos embutidos nos atos políticos, midiáticos e em candidatos a cargos eletivos de representação popular. É preciso discernir os que se pautam apenas no crescimento econômico de oligarquias, pois são eles os donos da bola desse jogo sujo que envenena a democracia. Revolução é transformação verdadeira e efetiva de estruturas, das econômicas às sociais, de distribuição justa de terras e de riquezas entre os que de fato a constroem. Então é preciso identificar quais projetos políticos trazem em si esse potencial de promover ações transformadoras, que somente são efetivas se emanam da força popular organizada em movimentos legítimos e por ela são respaldadas.
Então vem essa canção, como uma flecha de um guerreiro da mata, de um índio ferido na sua dignidade quando expulso de suas terras, como uma foice do pequeno agricultor sem terra para plantar o alimento, como o punhal da violência urbana resultante da exclusão de toda e qualquer forma de dignidade necessária a um humano, como um disparo de favela encurralada pela força militar, como o gemido do negro açoitado até hoje nos pelourinhos da desigualdade, como o grito dos feridos pela intolerância. A canção com sua força de revolução vem dizer que ainda há horizonte, já que “por sorte” eles “não destruíram o horizonte… ainda”, e ele é o que desenharmos com nossas escolhas e é como vamos discutir e defender essas escolhas. Logo estaremos diante da urna novamente, e fica o alerta do cantador e do poeta, Chico e Rennó, para a compreensão do que compactuamos ao escolher nossos legisladores e para a urgência do desmonte desse sistema que faz da política um grande negócio para aqueles que não têm nenhum escrúpulo.
Essa canção aponta corajosamente o dedo para vocês, que causam tanto mal. A vocês que deixam esse “legado tão nefasto”, um dia vão colher o que plantam e terão que provar do próprio veneno, pois, por toda a desgraça “não há maiores responsáveis que vocês”.
Se o agrotóxico envenena a vida, precisamos buscar uma forma orgânica de combater as pragas que corroem o sistema democrático, em vez de trucidar a plantação inteira.
Ó donos do agrobiz, ó reis do agronegócio,
Ó produtores de alimento com veneno,
Vocês que aumentam todo ano sua posse,
E que poluem cada palmo de terreno,
E que possuem cada qual um latifúndio,
E que destratam e destroem o ambiente,
De cada mente de vocês olhei no fundo
E vi o quanto cada um, no fundo, mente.
Vocês desterram povaréus ao léu que erram,
E não empregam tanta gente como pregam.
Vocês não matam nem a fome que há na Terra,
Nem alimentam tanto a gente como alegam.
É o pequeno produtor que nos provê e os
Seus deputados não protegem, como dizem:
Outra mentira de vocês, Pinóquios veios.
Vocês já viram como tá o seu nariz, hem?
Vocês me dizem que o Brasil não desenvolve
Sem o agrebiz feroz, desenvolvimentista.
Mas até hoje na verdade nunca houve
Um desenvolvimento tão destrutivista.
É o que diz aquele que vocês não ouvem,
O cientista, essa voz, a da ciência.
Tampouco a voz da consciência os comove.
Vocês só ouvem algo por conveniência.
Para vocês, que emitem montes de dióxido,
Para vocês, que têm um gênio neurastênico,
Pobre tem mais é que comer com agrotóxico,
Povo tem mais é que comer, se tem transgênico.
É o que acha, é o que disse um certo dia
Miss Motosserrainha do Desmatamento.
Já o que acho é que vocês é que deviam
Diariamente só comer seu “alimento”.
Vocês se elegem e legislam, feito cínicos,
Em causa própria ou de empresa coligada:
O frigo, a múlti de transgene e agentes químicos,
Que bancam cada deputado da bancada.
Té comunista cai no lobby antiecológico
Do ruralista cujo clã é um grande clube.
Inclui até quem é racista e homofóbico.
Vocês abafam mas tá tudo no YouTube.
Vocês que enxotam o que luta por justiça;
Vocês que oprimem quem produz e que preserva;
Vocês que pilham, assediam e cobiçam
A terra indígena, o quilombo e a reserva;
Vocês que podam e que fodem e que ferram
Quem represente pela frente uma barreira,
Seja o posseiro, o seringueiro ou o sem-terra,
O extrativista, o ambientalista ou a freira;
Vocês que criam, matam cruelmente bois,
Cujas carcaças formam um enorme lixo;
Vocês que exterminam peixes, caracóis,
Sapos e pássaros e abelhas do seu nicho;
E que rebaixam planta, bicho e outros entes,
E acham pobre, preto e índio “tudo” xucro:
Por que dispensam tal desprezo a um vivente?
Por que só prezam e só pensam no seu lucro?
Eu vejo a liberdade dada aos que se põem
Além da lei, na lista do trabalho escravo,
E a anistia concedida aos que destroem
O verde, a vida, sem morrer com um centavo.
Com dor eu vejo cenas de horror tão fortes,
Tal como eu vejo com amor a fonte linda –
E além do monte o pôr-do-sol porque por sorte
Vocês não destruíram o horizonte… Ainda.
Seu avião derrama a chuva de veneno
Na plantação e causa a náusea violenta
E a intoxicação “ne” adultos e pequenos –
Na mãe que contamina o filho que amamenta.
Provoca aborto e suicídio o inseticida,
Mas na mansão o fato não sensibiliza.
Vocês já não ´tão nem aí co´aquelas vidas.
Vejam como é que o Ogrobiz desumaniza…:
Desmata Minas, a Amazônia, Mato Grosso…;
Infecta solo, rio, ar, lençol freático;
Consome, mais do que qualquer outro negócio,
Um quatrilhão de litros d´água, o que é dramático.
Por tanto mal, do qual vocês não se redimem;
Por tal excesso que só leva à escassez –
Por essa seca, essa crise, esse crime,
Não há maiores responsáveis que vocês.
Eu vejo o campo de vocês ficar infértil,
Num tempo um tanto longe ainda, mas não muito;
E eu vejo a terra de vocês restar estéril,
Num tempo cada vez mais perto, e lhes pergunto:
O que será que os seus filhos acharão de
Vocês diante de um legado tão nefasto,
Vocês que fazem das fazendas hoje um grande
Deserto verde só de soja, cana ou pasto?
Pelos milhares que ontem foram e amanhã serão
mortos pelo grão-negócio de vocês;
Pelos milhares dessas vítimas de câncer,
De fome e sede, e fogo e bala, e de AVCs;
Saibam vocês, que ganham com um negócio desse
Muitos milhões, enquanto perdem sua alma,
Que eu me alegraria se afinal morresse
Esse sistema que nos causa tanto trauma.
Faixa do CD Estado de poesia, de Chico César, lançado em 2015, pela Urban Jungle
Produzido por Michi Ruzitschka e Chico César
Concebido, dirigido e arranjado por Chico César, com a colaboração dos músicos e convidados
Produção executiva: Urban Jungle e Maristela Garcia
Gravado no estúdio Gargolândia, Alambari, SP, por Thiago Monteiro
Mixado por Ricardo Mosca
Masterizado por Carlos Freitas no Estúdio Classic Master
Edição de Chita (deck)
Faixa 14, Reis do Agronegócio:
- Editada por Chita (deck)/ Gege Edições
- Voz e guitarra – Chico César
- Órgão – Zé Godoy
Fotografia: Marcos Hermes (assistente Lucca Miranda)
Concepção fotografia: Chico César e Marcos Hermes
Projeto gráfico: Daniel Vincent
Links:
Site de Chico César:
Site de Carlos Rennó:
“Reis do agronegócio”, áudio do CD Estado de poesia, Chico César, 2015: https://www.youtube.com/watch?v=0mtvwidXP_4
“Reis do agronegócio”, por Chico César, na Câmara dos deputados / Mobilização Nacional Indígena 2015:
https://www.youtube.com/watch?v=hbN_EPR8e7w
“Reis do agronegócio”, por Chico César, na Mobilização Nacional Indígena de 2015, em Brasília:
https://www.youtube.com/watch?v=ECYyn3O1gUM
*Martinha Vieira é formada em Letras Português, pela UFPR (1990), pós-graduada em Currículo e Prática Educativa, pela PUC-RJ (2002) e em Produção da Arte e Gestão da Cultura, pela PUC-PR (2014).