Exposição Cidadãos de Junho, na Fundação Casa de Rui Barbosa, memória das manifestações de 2013 (Fernando Frazão/Agência Brasil)
César Caldas*
A abrangente tarefa das forças progressistas para os próximos anos, no Brasil, é de grande complexidade e diferentes níveis de dificuldade para a consecução particular de cada meta. Este texto não pretende nem mesmo tangenciar os subobjetivos da esquerda brasileira que compõem o fim maior: retomar a autoridade central e tornar-se mais relevante na divisão de poder em cada uma das cinco regiões brasileiras, especialmente no centro-sul.
Vladimir Lênin, ao escrever o célebre “Que fazer?” no outono de 1901, que pormenorizou ideias expostas pelo artigo “Por onde começar”, foi direto ao assunto, pela óbvia razão de inexistir no mundo, em seu tempo, experiência anterior do socialismo em uma grande nação. Foi para ele o bastante passar ao papel em poucas linhas, à guisa de introdução, uma radiografia social do império russo para em seguida abordar o conteúdo da necessária ação política e sua organização.
Para compreender a extensão do desafio da esquerda no Brasil, entretanto, é necessário preliminarmente fotografar do alto uma multiplicidade de fatores que levaram ao ocaso de um período de 13 anos de hegemonia no poder decisório executivo federal. Apenas analisando ponto a ponto, de modo digressivo, o histórico dessa década e meia, será possível identificar equívocos e responder a uma indagação imperiosa: onde, quando e no que erramos?
Se a observação do ocorrido nesses últimos tempos deve ser feita a partir de uma lente grande-angular, a resposta necessariamente há de ser plural.
Há muitas hipóteses a testar. Como convém a uma reflexão desse porte, é necessário tipificar em duas categorias distintas cada uma das possíveis causas: as imediatas e as remotas.
Em humilde tentativa de elencar elementos dessa classificação, sugiro a consideração coletiva, pelos atores políticos e sociais, das seguintes conjecturas para as causas imediatas – e complementares entre si – do golpe parlamentar de 2016:
- a) Inabilidade política da ex-presidente Dilma Roussef em dialogar com o Congresso;
- b) Ausência de um articulador político de comprovada capacitação para monitorar e negociar em nome do governo em cada Casa do Congresso Nacional;
- c) Escolha equivocada do partido (PMDB) e da pessoa (Michel Temer) que ocuparia a vice-presidência da República;
- d) Relaxamento e desatenção diante da recomposição de forças da direita, aliadas ao fisiologismo do mesmo PMDB, aos interesses do grande capital financeiro e do oligopólio da mídia, já a partir do dia seguinte à derrota infligida a Aécio Neves; e
- e) Ausência de um “mea culpa” do Partido dos Trabalhadores, com a necessária publicidade e transparência (TV e redes sociais), afastando do governo e do partido qualquer investigado por corrupção, de modo a preservar a marca de severidade e intransigência no trato da coisa pública, que historicamente pertence aos partidos da esquerda no Brasil.
Sem prejuízo da identificação de outros fatores imediatos, que resultaram na deflagração do golpe mascarado de impeachment, um diagnóstico da derrota dos anseios populares expressos na reeleição de Dilma Rousseff em 2014 deve, necessariamente, identificar as causas remotas, primárias, que sirvam de lição histórica a ser aprendida pelos partidos de esquerda no Brasil:
1) O abandono parcial das bases organizacionais da sociedade civil – movimentos sociais, sindicatos, diretórios zonais e municipais, organizações de coletivos e audiências públicas, arregimentação, capacitação e incentivo à militância, bem como plenárias periódicas de diálogo do PT com legendas coirmãs (PCdoB, PSOL, PDT, PCO, PSTU, PSB, etc.); e
2) A pouca importância relativa, por parte da esquerda, dada à tarefa de montar base parlamentar maior e mais consistente no Congresso Nacional, para não depender tanto de frágeis e pouco fieis coligações partidárias.
Quer me parecer que esses dois fatores primários foram o ponto de partida, as falhas remotas, a gênese que possibilitou a existência das cinco complementares (de “a” a “e”).
Impõe-se, portanto, que nos debrucemos antes sobre o problema nuclear do alicerce das massas, de modo a reorganizá-las e a fomentar no seu seio um novo engajamento para a luta política: movimento sindical (da base às centrais, passando pelas federações e confederações de trabalhadores organizados), movimento estudantil, da luta pela terra e pela moradia, o negro, o feminista, o LGBT, as Comunidades Eclesiais de Base, algumas das Pastorais da Igreja, associações de bairro, organização e diálogo interpartidário.
Existisse essa aglutinação de forças de modo organizado e mobilizado em 2015, o ovo da serpente do neoconservadorismo brasileiro não haveria sido chocado, resultando em excrescências como o MBL, o “Vem Pra Rua”, o saudosismo militarista e a onda cibernética de incentivo ao ódio, que invadiu parte das redes sociais.
Em complemento, é necessário um empenho agudo dos partidos progressistas no sentido da formação de quadros legislativos mais numerosos, cuja importância tem sido relegada a segundo plano nos pleitos eleitorais, muito focados nas eleições majoritárias (presidente, governadores e prefeitos). O sistema brasileiro, presidencialista de coalizão, tem sido acometido por disfunções que o aproximam de um semiparlamentarismo – uma das explicações que elucidam o golpe desferido pela direita em 2016. Depender da fidelidade de partidos como o PMDB e o PP representará, sempre, elevado risco de se perder uma maioria duramente conquistada na Câmara e no Senado.
Haverá tempo para o pensamento conjunto de todas essas questões, ao longo dos próximos meses e anos.
A recente prisão do ex-presidente Lula, contudo, a par de violentar a democracia, torna premente a tomada de decisões que aglutinem as potências progressistas brasileiras em torno de uma pauta comum de urgência: encontrar um nome de consenso que substitua, temporariamente, o maior líder latino-americano das últimas décadas na tarefa de disputar o pleito presidencial de 3 de outubro de 2018. De modo simultâneo, é fundamental que não se negligencie a eleição proporcional, buscando com tenacidade eleger o maior número possível de parlamentares.
Em ocasião próxima, quero provocar o leitor com o delineamento mais específico de questões apenas assinaladas de relance na edição de estreia da Pátria Distraída.
Sem identificar aquilo que erramos, não haverá como evitar a repetição de equívocos no futuro pretendido, para a breve retomada que buscamos.
*César Caldas é cientista político