Quando olhamos para o abismo…

Bruno Vieira*

Com acidez sem igual, a banda goiana Violins nos provoca e convida a encarar a nossa própria desumanidade

Face à barbárie, floresce a arte como denúncia, catarse ou espelho dos nossos tempos conturbados. Às vezes profeta, outras cronista, é nela em que traduz e se encontra sentido no caos – físico, social, emocional. Na música brasileira há vários exemplos de artistas que canalizam o estado de espírito de um tempo em suas canções, mas poucos são tão contundentes no seu lirismo cru (e não raro cruel) como a banda goiana Violins.

Surgido em 2001, o grupo já lançou 9 discos cujas temáticas abordam todas as faces possíveis do que é ser humano, do ponto mais baixo ao mais alto. Porém, seja no existencialismo agridoce do disco “Direito de Ser Nada” (2011) que aborda diferentes processos de autodescoberta e afeto, ou então nas narrativas sobre infidelidade e relacionamentos em desconstrução de “Grandes Infiéis” (2005), a constante é sempre a mesma: a acidez aguda.

Não há exemplo melhor disso do que o álbum “Tribunal Surdo”, lançado em 2007 e cultuado por muitos seguidores da banda como o ponto alto em uma densa discografia. Ao longo de 14 faixas, as letras de Beto Cupertino trazem à tona narrativas que mostram uma barbárie que, se antes era vista mais como um subtexto onipresente, porém sutil, da sociedade brasileira, hoje, 12 anos depois, inunda violentamente nosso cotidiano.

A começar pelo título do disco, que se prova cada vez mais atual em um país onde juízes fazem ouvidos moucos e se embrenham nas engrenagens do jogo político, ignorando a ética e o decoro necessários para garantir uma justiça imparcial. Há tantos outros paralelos possíveis de se traçar também com as hordas de intolerantes que se manifestam e agridem aos berros nas ruas e redes sociais todos aqueles que não compactuam com uma visão de mundo limitada, obscurantista e preconceituosa.

E assim presenciamos um vociferar de absurdos que antes pareciam improváveis de serem escutados a voz alta. Clamam pelo punitivismo violento, de “justiça” a todo custo e de preferência com as próprias mãos. É nesse eu lírico que a Violins mergulha, cantando existências tóxicas em primeira pessoa.

Por isso é parte assustador e parte curioso se deparar com uma letra como a de “Grupo de Extermínio de Aberrações” e pensar que os absurdos que o narrador daquele longínquo 2007 profere, hoje podem ser encontrados com facilidade em caixas de comentários Facebook afora:

“Atenção, atenção!

Prestem atenção ao que vamos dizer

Nós somos o Grupo de Extermínio de Aberrações de toda sorte que você possa conceber

Vindo até vocês pra pedir qualquer quantia que se possa fornecer

 

E eu garanto que seus filhos agradecem

por crescer sem ter que conviver

com bichas e michês e pretos na tv

Tá faltando soco inglês, o estoque de extintor não chega ao fim do mês

Não to pedindo aqui fortuna pra vocês, a gente quer limpar o mundo de uma vez

 

Ei, amigão, amigão!

Abaixa essa arma que é melhor para você

Nós somos o Grupo de Extermínio de Aberrações e não viemos pra ofender

Viemos receber sem medo de pedir pra vocês qualquer quantia que se possa fornecer

E eu garanto que seus filhos agradecem por crescer sem ter que conviver

Com discípulos de Che e putas com HIV”

 

Na época essa música foi recebida com reações mistas. Parte do público e da mídia interpretaram a letra como um incentivo a esse tipo de comportamento, o que levou a canção a ser censurada em rádios e fez com que o grupo fosse denunciado no Ministério Público e convidado a explicar

Difícil dizer se esse seria o mesmo cenário hoje, visto que políticos, desembargadores, parcelas da mídia e da população compactuam com esse discurso violento e preconceituoso. Afinal, temos um presidente que prega abertamente o extermínio de minorias e, em toda sua hipocrisia, diz que seus feitos estão de acordo com a moral, bons costumes e a vontade de Deus.

Essa faixa, assim como todo o disco, não é nem um pouco palatável. É uma obra incômoda, feita para provocar e, por isso mesmo, muito certeira em sua proposta. Não há nenhuma sutileza nas letras, apenas soco após soco na boca do estômago, justamente por sabermos que a realidade anda assim tão crua.

Vale destacar outro personagem que aparece com frequência ao longo de “Tribunal Surdo”, o estereótipo do homem truculento e misógino em suas interações mais violentas. Faixas como “22”, “Anti-herói (parte 1 & 2)” e “A Lei Seca”, mergulham nesse arquétipo muito claramente. É o homem armamentista, que compra um revólver para se defender, mas o utiliza contra a mulher, o homem que não aceita a alegria da companheira, que valoriza mais seus bens do que a pessoa que está ao seu lado. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Entre idas e vindas, a Violins já passou por vários hiatos após momentos bem prolíficos na carreira do grupo. Entre 2007 e 2011 lançaram quatro discos e só no ano passado que voltaram com o álbum “A Era do Vacilo”. Vieram em hora certa. Menos amargos, mas sem perder a fina ironia que sempre permeou as letras da banda, hoje eles ainda levantam questões que dialogam com a realidade semi-distópica que vivemos. Basta ver a letra da faixa recente “Um Homem ou um Amém”:

Descem cinco aqui

Outros cinco ali

Foi juntando um monte de gente

Com arma na mão

Perseguindo alguém

Ninguém sabe quem

Um negão!

 

E não vai ser possível explicar isso

O sangue nas mãos e o pensamento em Cristo

No afã de fazer qualquer triste justiça

Não se identifica um homem ou um amém

Só um homem ou um amém”

 

Apoiados em guitarras, sintetizadores e melodias que ao mesmo tempo soam belas e tortas, os goianos da Violins não costumam oferecer uma solução para os problemas levantados. Não há arco de redenção. Mas eles nos deixam várias perguntas, sendo a principal: como deixamos as coisas chegarem nesse ponto?

Assim como a banda, não tenho uma resposta. Mas cabe a nós, provocados e inspirados por artistas assim, descobrirmos. Afinal, do fundo do poço a única saída é para cima.

 

* Bruno Vieira é formado em jornalismo pela UFPR (2017), é produtor musical e já escrevia uma coluna de críticas musicais semanais no portal A Escotilha