Policiais militares na porta do MEC para impedir invasão de estudantes da UnB (Antonio Cruz/Agência Brasil)
Hector Molina*
O título deste artigo busca abrir um diálogo com o próprio tema principal da revista. Em linhas gerais, tentarei esboçar uma análise dos pontos que considero fundamentais para o entendimento da realidade política constituída atualmente, a partir de uma perspectiva estudantil. Creio que o leitor entenderá as nossas limitações de espaço e perdoará a falta de profundidade em muitas questões que não terei oportunidade de qualificar satisfatoriamente. As lacunas temporais deixadas são de total responsabilidade do autor.
No lugar da provocativa reflexão sobre “quando nos distraímos”, proponho uma reflexão pela chave “quando nos distraem”. Utilizo esse simples jogo de palavras na tentativa de dar um suporte simbólico a uma premissa fundamental de minha análise: a de que o comportamento político das pessoas não pode ser entendido de modo fragmentário, antes pelo contrário, deve ser pensado como resposta produzida a partir de determinadas formas de relações sociais, que contribuem com os projetos hegemônicos em todo o espectro político. Isso significa, em maior ou menor grau, que há uma relação eminentemente dialética nesse processo, isto é, a distração – ou o apassivamento, como prefiro chamar – é produto de uma forma de construção das lutas no Brasil e condição invariável da manutenção desse sistema. As universidades e o movimento estudantil, embora intensos e dinâmicos, também refletem essas práticas.
Os últimos 50 anos: Golpes e resistência
Regredindo temporalmente meio século, chegaremos exatamente a 1968. Para muitos, um dos anos mais importantes do pós-Guerra. O chamado maio de 68, na França, não poderia deixar de ser citado. O amplo protagonismo estudantil contribuiu para o enfraquecimento do governo conservador de Charles de Gaulle. Mais a leste, a Checoslováquia consolidava cada vez mais sua oposição à dominação soviética a partir da construção da Primavera de Praga, que não teria sido realizada sem a juventude. Os ganhos em grande medida “liberalizantes” mundo à fora contrastavam com o recrudescimento do autoritarismo no Brasil. Na América Latina, de modo geral, as burguesias ainda buscavam saídas acanhadas ou deliberadamente liberais, o que de fato não impediram tragédias como o Massacre de Tlatelolco, no México, em outubro desse ano, resultado da repressão às manifestações estudantis, sobretudo na Cidade do México. Onde existiu luta, esteve a juventude.
Em março, no Brasil, o assassinato do estudante Edson Luís pela Polícia Militar do Rio de Janeiro desencadeou uma onda de protestos que culminou na Passeata dos Cem Mil, que se colocava contra a crescente repressão do regime civil-militar. Em maio desse ano, o reitor-ministro da ditadura, Flávio Suplicy de Lacerda, tinha dores de cabeça na UFPR: conhecido colaborador do autoritarismo, Suplicy de Lacerda ocupou o cargo de Ministro da Educação do regime, promulgou uma lei que ilegalizava as instituições estudantis (Lei 4.464/1964) e foi intenso defensor dos acordos MEC-USAID realizados com a orientação dos EUA para reformar o ensino brasileiro de acordo com padrões impostos. As reformas implicavam cobrança de mensalidades, critérios rígidos de ingresso, entre outros pontos. Em um dos vários comícios relâmpagos organizados pelos estudantes, houve uma justa intervenção que destruiu o busto do reitor. Dias depois a PM ocupava vários locais da UFPR. As universidades, por meio dos estudantes, professores e técnicos, foram, durante grande período, um bastião de resistência intelectual e programática ao regime.
Dezembro marcou o que alguns historiadores consideram o marco que inaugurou de fato o poder ditatorial dentro do autoritarismo militar, a instituição do Ato Institucional nº5. Esse ano se constitui talvez como um dos exemplos mais claros da dialética no campo da luta política aberta ao estabelecer o paradoxo da repressão crescendo na exata medida em que a resistência se organizava, até a sobreposição das forças com a instituição do AI-5, um dos mais duros golpes sofridos pelos brasileiros nesse contexto.
O triste dia que durou 21 anos – empresto aqui o nome dado pelo diretor Camilo Galli Tavares ao seu importante documentário sobre o golpe civil-militar – trouxe uma série de questões à esquerda brasileira. A resistência armada e guerrilheira gerou acúmulos e as diferentes estratégias clandestinamente desenvolvidas pelo PCB também. O processo de redemocratização foi complexo e, entre outras coisas, fez parir o principal estertor do chamado projeto democrático popular no país: o PT. Um partido de massas, com uma liderança operária. Não poderia dar errado. Correto. De fato, o projeto obteve muito sucesso, não é à toa que, quase 30 anos depois, Lula preso possui maior legitimidade quantitativa do que qualquer outra figura da esquerda que esteja em liberdade. A questão a ser feita é: qual é esse projeto?
Esse questionamento, impossível de ser respondido satisfatoriamente em tão poucas páginas, deixo como provocação. É preciso que estudemos a fundo o que representou e representa o projeto petista de sociedade, expressão brasileira do projeto democrático popular – a bibliografia é extensa e é tarefa crucial entendermos as sérias limitações que apresenta e as contradições que carrega.
A esquerda entre a insurreição sem massas e as massas sem insurreição
O caminho trilhado pelas esquerdas dentro e fora da universidade chegou a uma encruzilhada importante a partir da reeleição de Dilma Roussef. O liberalismo econômico, como historicamente foi constituído na América Latina, não teve medo de surfar no conservadorismo político. Mistura velha, mas poderosa. Estava desfeita parte da conciliação construída por anos de petismo. Impeachment, sociedade civil efervescente, Estado burguês mantido. A hipocrisia da direita não é algo novo. Os momentos de polarização política tendem a arrastar aqueles posicionamentos mais vacilantes para um dos lados. Nesse sentido, o petismo ganha quando a conciliação vai bem e não deixa de ganhar em grande medida quando a conciliação o desfavorece. O “centro progressista” corre para as fileiras dos defensores da democracia. A pergunta que se faz e cujas respostas são simplesmente ignoradas pelo centro progressista é: qual é a responsabilidade do PT e de sua conciliação nisso tudo?
De um lado, parte da esquerda revolucionária radicalizada lê as contradições petistas a partir de uma perspectiva “rupturista” que parece desconhecer os efeitos reais de anos de conciliação de classes. Propõe ações diretas quase como um fim, sobrepondo as táticas à estratégia. Líderes em uma insurreição sem massas. Atrai pessoas, mas não as mantém. A denúncia desqualificada ao reformismo petista descamba para a crítica às reformas em um sentido geral. Uma esquerda que não entende a importância das reformas está fadada ao isolamento. As reformas fazem parte da construção do socialismo, são meios táticos, não um fim.
Por outro lado, a força do PT e seus satélites. Ingênuo seria afirmar que o “ciclo PT” se encerrou. O partido esteve nas massas com uma força extraordinária, mas não apresentou quando era governo nenhum caminho sério para a superação da ordem capitalista, inclusive fez o contrário, maquiou o caráter de classe das relações sociais, abrandou seu discurso e cooptou as lutas. Dirigiu as massas sem insurreição. Uma inserção tão potente tem consequências que se apresentam há um tempo, mas que são centrais para entendermos nosso momento político.
As garantias democráticas obtidas e cantadas pelos petistas, ao que parece, não são tão garantias assim. Quase duas décadas de conciliação desfeitas em aproximadamente dois anos. Isso deveria bastar para entendermos que o dono do jogo não é um operário com boa vontade na presidência ou uma mulher que combateu a ditadura. As bases pareceram perceber um bom tanto disso nesse processo, sobretudo a partir da prisão de Lula, e a disposição à radicalização aumentou. Na mesma medida, porém, a burocracia da direção do partido tratou de manobrar o tempo todo para conter o próprio ímpeto da base. Essa é uma das maiores problemáticas desse projeto. O personalismo absurdo desenvolvido em torno de Lula durante todos esses anos fez com que a militância se apassivasse cotidianamente e se movimentasse quando seu líder sofria algum tipo de perigo. É uma espécie de apassivamento não passivo, ou apassivamento coordenado. Há muito tempo Lula é o próprio PT. Depois disso, virou o próprio Brasil. Depois, Lula era a esquerda. Hoje, Lula é a própria democracia encarnada. Que espécie de projeto é esse que freia através de suas principais centrais sindicais a luta contra a Reforma da Previdência, mas coloca milhares na rua com disposição de enfrentar a Polícia Federal?
Ainda não conseguimos compreender de que forma Lula construiu a paradoxal tese de que está sendo perseguido politicamente, mas que acredita na justiça e por isso está cumprindo o rito estabelecido. Em todo caso, não se pode cair no enganoso processo que canaliza todas as suas forças à denúncia do PT enquanto direção traidora dos trabalhadores. É preciso ir além, sem deixar de fazer as necessárias e constantes críticas. É preciso entender que, se não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, seu ser social é que determina sua consciência, a massa que atua como apoiadora de Lula e do PT não o faz por ser simplesmente oportunista ou detentora de um petismo enrustido. De outro modo, o faz pois sua consciência está forjada a partir de anos e anos de relações sociais conciliadoras e de lutas cooptadas. Cabe a nós entender esse movimento e atuar sobre ele.
Nesse sentido, quando estamos distraídos, fomos distraídos. Na política nada é por acaso.
*Hector Molina é historiador e professor de História formado pela UFPR. Atuou diretamente no movimento estudantil de 2014 a 2017. Militante do coletivo Outros Outubros Virão.