A Capital
Adalberto Fávero
Havia um certo lugar do faz de conta e de versão oficial, onde tudo se tecia por imagens, versões, arames e com vidro para os olhos admirarem. As redes de rádio, televisão, facebook, watts, twitter, telegram, instragram… deste reino cobriam todo o país, dos palácios às favelas da periferia esquecida e escondida aos olhos dos homens de bem. Quase todos brancos, quase todos de bem!
Era crescente o exercício de levar condomínios requintados para longe do centro, espantando “os desfavorecidos da sorte” sempre para mais longe ou criando uma contradição gritante e irretocável entre as duas realidades. Embora, eles tenham descoberto um jeito de morar na rua no coração das cidades, o que criava enjoos crescentes na população local.
Todos tinham televisão e celular, mesmo nem sempre tendo a comida ideal. A Netflix agora estava, igualmente, virando moda. Barata, “alternativa e espaço externo” à burrice da programação acessível aos pobres mortais, diziam os tais homens de bem.
Os campos e as florestas tradicionais tinham sido (ou estavam sendo) todos devastados (segundo a maledicência do Inpe, diziam seus representantes) e, por isso, ao falar em ecologia ou na sobrevida do planeta, apontava-se para as árvores plantadas e mantidas no interior de suas cidades. Tratava-se de uma espécie de museu que fazia lembrar o que fora o planeta.
No reino do faz-de-conta havia ricos escondendo-se em fortalezas com grades e alarmes sofisticados ou em condomínios fechados e protegidos contra a violência das ruas. Havia pobres e miseráveis brigando destemperadamente por um espaço debaixo de pontes e viadutos, reeditando urbanamente a vida dos antigos habitantes e suas cavernas.
Neste mundo visionário existia uma cidade, coisa de primeiro mundo. Verdadeira república independente em seu judiciário, truculência policial e comportamento de seus cidadãos. A maioria de seus habitantes orgulhava-se da cidade e dessa “nova e renascida república. ” Era comum postarem outdoors de apoio às operações oficiais e oficiosas de seus representantes.
Tudo, em seus bairros mais nobres, era feito de vidro, arame, enfeites e árvores. No Natal era costume enfeitarem suas casas com luzes e lembranças da neve, comum nos reinos do norte. Seus habitantes eram orgulhosos de possuírem inúmeros parques e 48 m2 de área verde só para si… mesmo que um número significativo não tivesse casa para morar. Mas tinham árvores, muitas árvores para serem admiradas!!! Cidade ecológica, diziam!
Houve um tempo em que anunciaram casas de teatro nos bairros, no centro e nas avenidas dedicadas aos transeuntes e camelôs. Seriam teatros de madeira, de tijolos, de pedra ou de arame, nos quais os habitantes poderiam, todo dia, assistir a espetáculos gratuitos e respirar cultura oferecida a toda hora. Todos poderiam?!?!
Engenharam até mesmo um projeto para esconder a maior favela da cidade, rodeando-a com árvores para não ofender os olhos dos visitantes oriundos de seu moderno aeroporto. Mudaram o nome da favela para Vila dos Jardins, mas as árvores não brotaram ou foram cortadas pelos habitantes para se aquecerem no inverno, o que se transformou num grande problema para os urbanistas que sonharam construir a capital de uma nova era (ou república?), separada e independente.
Porém, havia um problema especial e muito sério, que estragava a beleza da cidade: a prisão, a cadeia.
Ela estava ali, no centro da cidade e, além do prédio antigo e feio (falavam em transformar em escola), que não combinava com o padrão arquitetônico coletivizado; parecia uma fratura exposta da imperfeição da cidade dos sonhos, além de um contratestemunho à nova era sonhada. Ficava patente a existência do crime, da violência diária e da miséria, ainda que as redes de comunicação apenas contassem as desgraças de outras capitais e/ou países vizinhos.
Não fosse isto suficiente, ainda, constantemente, falava-se das condições não humanas em que viviam os presidiários. Diziam que preso bom é preso morto e que muitos estavam felizes com a prisão, já que tinham comida e roupa lavada sem necessidade de trabalhar. Coisa e generosidade da república local.
Era necessário tomar uma providência no estilo do resto dos demais projetos da cidade. Foi então que os urbanistas, chefiados pelos arquitetos e os novos ricos e novos intelectuais em ascensão, apresentaram uma saída engenhosa: construir uma cadeia de vidro no meio da praça principal, próximo à rua usada somente pelos transeuntes e por onde eram proibidos transitar os carros.
A ideia consistia em garantir a beleza da construção; evidenciar para toda população a situação interna da cadeia, acabando com o falatório da oposição; dar ao detento a sensação constante de liberdade, pois seus olhos acompanhariam o dia a dia das pessoas e assim se sentiria livre como uma delas. Ressocialização rápida e bela!
Discutiram, buscaram verbas no exterior, empréstimos no banco mundial e construíram a cadeia de vidro. A propaganda atingiu todo o reino e foi apresentado o projeto até no império do norte, juntamente com o modelo de transporte, o qual já garantia lucros generosos para a empresa e idealizadores do projeto. Surgia um novo símbolo daquela república e seus promotores e juízes implacáveis. Afinal, era necessário mostrar que a lei, o reino e Deus estavam acima de tudo!!!
Quando tudo ficou pronto, trouxeram o primeiro preso como experiência piloto. Tratava-se de um sujeito um pouco conhecido, mas isso não era o mais determinante. Importava a cena, o espetáculo, a experiência, a imagem…
Ele sentou-se no meio da cela e ficou acompanhando a vida da cidade cheio de admiração e inicial orgulho, diziam os jornalistas já acostumados a cumprir o papel de falar bem dos homens de bem e escarnecer de toda discordância. Nessa república, não havia emprego para jornalistas investigativos, que achassem histórias indecentes sobre os senhores da república. Bom e bem empregado jornalista era aquele que repetia as notícias e versões a gosto de seus patrões.
Passaram-se as horas (ou foram dias?) e o preso começou a se sentir profundamente deprimido. Todos os olhos o olhavam. Não importava para onde se virasse e ali estava o olho de alguém a ferir sua privacidade.
Desejou ir ao banheiro, mas não poderia se expor assim ao público impunemente. Precisou tomar banho, mas não podia ficar nu. Seria indecente! Não combinaria com as cores e desejos dessa república.
Sentiu-se numa jaula em pleno zoológico quando chegou a hora da inauguração do projeto. Cortaram a fita comemorativa ali na sua frente… e todos os olhos o olharam, todas as bocas sorriram e todos se admiraram. Choraram o preso e a prisão, mas os homens de bem sorriram, pois nessa república a justiça, os urbanistas e a polícia são diferentes. Implacáveis!!!
Para sua sorte choveu e os vidros ficaram embaçados. Aproveitou para ir ao banheiro fazer suas necessidades e tomar seu banho tranquilo, mesmo quando todas as luzes acenderam-se. Ainda quando um curioso passou a mão no vidro para desembaçar e poder olhar para dentro, sentiu-se senhor da própria privacidade. No entanto, mesmo sendo rápido, foi flagrado e se deu conta de que havia um moleque espiando do lado de fora depois de limpar com a palma da mão o vidro ofuscado.
Dormir foi outra experiência terrível, pois sempre havia olhos, de todos os lados, atentos e curiosos… e ele ali, ao sabor dos olhos. Do olho que tudo vê!
O deparar-se com olhos constantes, atentos e inquisidores, é mais ou menos como estar boquiaberto frente à ordem cósmica. O olho parece onipresente e/ou uma doença que atinge e dilacera o âmago do ser.
Desde a antiga astronomia até a astronomia atômica ou quântica (nem sei bem se existe isso) no século XXI, impera o olho.
Era ele que dominava os astrônomos caldeus, egípcios e babilônios. Pitágoras inspirou-se na observação das constelações e cristais para construir seu modelo de poder. Platão inventou o mito ótico da caverna. Euclides escreveu a “óptica”. Os matemáticos árabes, chineses e hindus eram fundamentalmente astrônomos… Leonardo da Vinci com sua visão antecipadora dos séculos futuros… Copérnico, Francis Bacon e Galileu revolucionando nossa maneira de ver o Universo… Kepler, Huygens e Newton, os gigantes da ótica do século XVII… Descartes e sua diótica… Hobbes, o teórico do Estado totalitário, revelando a teoria ótica no “De Homine”… os nossos contemporâneos, buscando os segredos da luz e do controle audiovisual e do Espaço com Einstein, pai da teoria da relatividade e do espaço curvo … (relembrando Upinsky).
Esta onipresença do olho tem significado, sempre, o poder dos Estados, como mostrou George Orwel em “1984”. O olho que tudo vê e a transformação da versão em verdade libertadora e a verdade em condenação de seu autor.
A doença do olho esconde sempre a visão inquisidora da versão, tapando a realidade ou desnudando o interior das maquiagens arquitetônicas. Repete-se tanto a mesma mentira que ela se torna verdade e sobre ela os analistas das redes televisivas e/ou redes sociais passam o dia discorrendo, ecoando a mesma ladainha que propicia as condenações pela justiça e a morte ética ou física de quantos se opõem aos senhores da república.
Diante de uma bandeira tricolor, o alemão e o francês terão visões diferentes com a mesma vista. Mas nessa capital não é assim. Os carros trazem slogans de apoio explícito a esse modo de ser e fazer. Dessa maneira, logo surgiram adesivos como manifestação desse discurso coletivo e público: prisão de vidro, eu apoio.
O olho é o espelho do corpo, é a clarividência, a ilusão, o lugar da vista, a orientação do espaço do caminhar, a passagem do sentido da beleza do mundo, o inibidor das ações, o inquisidor do aprisionado, o desvelador da nudez escondida… o olho.
De repente ali, por entre vidros, o detento sentia, sem o saber, todo este peso da história e da inquisição nos olhos que olhavam, perscrutavam e dilaceravam o cerne do seu existir. Sentiu imensa tentação de desistir da vida. Estava só e escancarado ao modo de ser dos outros… seu pensar, respirar, viver e dormir, tudo ao sabor dos demais e sem qualquer privacidade. No entanto, para os homens de bem dessa capital, preso não tem direito a pensar ou ter dignidade. Isso é coisa de comunistas e de direitos humanos espúrios.
Com o passar dos dias, a depressão foi dando lugar à rebeldia; a perda da identidade, da privacidade, da intimidade; os costumes dos mesmos transeuntes que foram se adaptando a ele e sua presença. De objeto raro na jaula do zoológico, virou elemento constituinte da beleza da cadeia de vidro que passou a fazer parte do cotidiano dos habitantes da cidade, assim como os pedintes e miseráveis que já nem chamam a atenção com sua dor. Rebelou-se!
Teve vontade de fazer xixi e foi ao banheiro às claras. Teve vontade de defecar e literalmente cagou à vista e sobre todos os passantes e os seus olhos.
Sentiu-se sujo e se banhou. Sentiu sono em pleno dia e dormiu. Sentiu o calor e se pôs nu no meio da praça.
Assumiu “sua casa” e a privacidade de todos seus vizinhos dentro de suas residências. Assumiu o jeito de andar, gesticular e conversar imitando quem passava, como um artista repetidor das ruas de qualquer cidade. Como uma sombra dos transeuntes!
Tornou-se escândalo no meio da praça.
Homens e mulheres protestaram contra urbanistas e arquitetos da admirável cidade perfeita da república do sul pela sua falta de pudor. Os olhos inquisidores condenaram a privacidade de todos que ali estava exposta.
O prisioneiro sem nome, da cadeia de vidro, modelo inovador de cela já aprovada no primeiro mundo foi “flagrado, autuado, julgado e condenado como culpado pela situação.”
Os urbanistas mudaram o sentido e uso da rua, proibiram que os moradores da rua ali acampassem, definiram horários aos passantes e silenciaram a avenida.
A cadeia de vidro ficou lá como um grande elefante branco e de vidro, cheio de luzes no meio da praça, como testemunho e denúncia de invenção perfeita dos engenhosos senhores da cidade, capital da república e seus engenhosos senhores brancos e quase todos bons.
No entanto, embora o judiciário tenha proibido visitas a esse lugar do faz de conta e determinado os dias para todos os olhos olharem, admirarem e contarem a história da maravilhosa cadeia de vidro, sempre existe alguém e em algum lugar lembrando dessa história, denunciando o olho que tudo vê e/ou escarnecendo a justiça e as novas velhas invenções dessa república da versão que nega a realidade. Há sempre alguém a “hackear” imagens e situações inóspitas aos olhos dos senhores e senhoras de bem.
No fim de tudo, impera o olho, a cidade, o prisioneiro, os urbanistas e os senhores…, mas, sobretudo e soberano, o olho que desvela, aprisiona e cria.