Por que cantamos?

INDEPENDÊNCIA OU MORTE   –   POR QUE CANTAMOS?

Valquíria Prochmann*

Às margens do Ipiranga, Dom Pedro I berrou a Independência do Brasil.

Em dias que se aproximavam da comemoração anual dada ao evento, nesse último 2 de setembro de 2018 um incêndio destruiu a totalidade do Museu Nacional localizado no Rio de Janeiro.

Em dias em que a mesma cidadela é assaltada pela ocupação militar, na alegada proposta de combate ao crime, em meio aos tiroteios diários nas favelas urbanizadas, o fogo destrói o Quinto maior Acervo Histórico do Mundo, levando parte da história e da cultura brasileira, seus significados e suas simbologias.

Em dias em que as cidades são tomadas por propostas eleitoreiras – entre as quais o discurso sempre carregado de palavratórios de “incentivo à cultura” – paralelamente, o governo golpista decreta a extinção do Ministério da Cultura como medida de redução de despesas e, ainda que tenha posto em discussão a medida após inúmeros protestos, há para as próximas eleições algumas proposições transparentes de desconsiderar o tema “Cultura” como digno de uma pasta específica.

Em dias em que as diversas administrações públicas congelam, por 20 anos, quaisquer gastos e despesas – inclusive nas intermináveis demandas de saúde e educação – na surdina típica das gestões de favorecimentos desiguais, autorizam aumentos de remuneração substanciais para as carreiras abençoadas com os privilégios da democracia liberal. Nesses mesmos dias, o Museu Nacional é destruído por carência de recursos suficientes à simples manutenção. Um servidor do museu declarou nas redes sociais “O museu morreu de morte matada. Ontem deu-se apenas a cremação”.

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FOTO: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Vinculado à UFRJ, o prédio do Museu Nacional abrigou a família imperial brasileira entre 1822 e 1889 e sediou a primeira Assembleia Constituinte Republicana entre 1889 e 1891. Custodiava mais de 20 milhões de itens de relevância histórica e cultural, desde o fóssil de Luzia, preservado por 12 mil anos, marco da revisão das teorias sobre a ocupação das Américas, até o maior dinossauro montado com peças originais e o maior acervo de meteoritos da América Latina, além de uma biblioteca com 470 mil volumes e 2400 obras raras.

Importância, porém, muito mais abrangente que a simples recordação do Brasil Imperial ou da falácia da Independência entre os despautérios de Dom Pedro I diante dos costumes assimilados por hábitos indianistas e antieuropeus. Naquele palácio foi assinada a Carta de Independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, de forma que o local carrega imensa diversidade de simbologias e raridades já impossibilitadas de restauração. Vão-se os acervos, vão-se as ciências, vão-se os conhecimentos, vão-se os marcos históricos. Vão-se as novas gerações a passos largos para mais essa ignorância, na recusa permanente em conservar o passado – construído com poucas vitórias, muito sangue, muitas lágrimas e incontáveis sofrimentos. Independente dos avanços ou retrocessos que significam, são, de fato, as origens do Brasil que temos hoje e, por nossas vontades ou não, são as estruturas culturais sobre as quais foi erguido.

Os livros de História são lotados de lamentações quanto ao incêndio que pôs abaixo a Biblioteca de Alexandria, devolvendo para o subsolo do Planeta Terra, em forma de cinzas incontáveis, registros da filosofia grega e dos rumos de ocupação militar romana, entre outras categorias de perdas que nem chegamos a saber. As mesmas lamúrias recheiam a destruição cultural dos desmandos cometidos na Idade Média que, por mil anos, fez imperar o obscurantismo como forma única de manipulação.

Por óbvio, seja no foco da atual militarização da sociedade brasileira ou como mecanismo de dominação na apropriação privada do conhecimento, a crise cultural não é coincidência. Trata-se de um projeto de aculturação, ferramenta poderosa de restrição de espaços econômicos e sociais que se reproduzem na informação seletiva das mídias, na educação formatada das escolas e também na redução dos investimentos públicos na preservação de todo esse espectro cultural que caracteriza uma nação que se pretende independente.

“Sem cultura e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva” – Albert Camus, o filósofo, pensamento que ressoa nas palavras do compositor jamaicano Bob Marley, “Um povo sem conhecimento, saliência de seu passado histórico, origem e cultura, é como uma árvore sem raízes”.

Por agora, os berros do Ipiranga se transformam em prantos do povo brasileiro diante da própria descaracterização, nos restos mortais de um assassinato cultural prometido pelo descaso na preservação de seus frutos históricos e científicos. O mesmo descaso que se revela em questões essenciais da humanidade, como alimentar seu povo, cuidar de sua saúde, educar para a cidadania. Choro que se perfaz em ódios e preconceitos, enquanto implora a intervenção de um “super-homem e seus amigos do peito” para dar socorro urgente ao sofrimento, ainda que custe a nossa soberania.

No mês da Independência, a liberdade se desfaz em rendição e põe a raiar a escravidão das ditaduras camufladas em vestes de instituições oficializadas. Qual será nossa memória que mascara esses tormentos? Que será de nossa História que nega a si mesma pelo esquecimento?

 

“Você perguntará por que cantamos…

Cantamos porque o grito só não basta

e já não basta o pranto nem a raiva

cantamos porque cremos nessa gente

e porque venceremos a derrota…

Cantamos porque chove sobre o sulco

e somos militantes desta vida

e porque não podemos nem queremos

deixar que a canção se torne cinzas”

(trecho do poema “Cantamos” – Mário Benedetti)

 

*Valquíria Prochmann é procuradora do Estado do Paraná. Pós-graduada em Direito Contemporâneo pelo IBEJ. Integrante do Grupo Tortura Nunca Mais e da Sociedade DHPAZ.

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