Desmonte da cultura

Otto Leopoldo Winck*

Regimes autoritários não gostam de cultura – ou, pelo menos, não daquela cultura que transcende o mero entretenimento e não se deixa enquadrar facilmente pelo mercado. Se a cultura não vier selada, registrada, carimbada, avaliada, rotulada, não serve. Os próprios liberais, que adoram gabar sua cultura e ilustração, não sabem o que fazer com a cultura se ela não encontra seus canais no mercado. Se isso ocorre com os liberais, que no entanto flertam com o autoritarismo muito mais do que estão dispostos a admitir, o que falar dos autoritários stricto sensu?

Hoje temos um presidente que, como sabemos, comete seus poemas, num governo que se pretende liberal mas que não é nada mais que entreguista, para usarmos um termo dos anos 50/60 – já que, pelo jeito, para muitos, os velhos filmes da Guerra Fria voltaram à moda. Parnasiano aguado, completamente sem sal e inteiramente sem noção, não se pense por isso que ele e sua equipe sejam ingênuos. Não, muito pelo contrário. Eles seguem à risca um roteiro estabelecido minuciosamente alhures. E faz parte desse roteiro – além da entrega de nossas riquezas naturais e a destruição dos setores mais competitivos de nossa indústria – a liquidação da cultura e da educação. Quanto à educação, o projeto é tirá-la da tutela do Estado e entregá-la de bandeja para os grandes grupos privados, sobretudos estadunidenses. Diminuíram-se bolsas e verbas e, com a famigerada reforma do ensino médio, o que se pretende é formar peões com corpos dóceis e não cidadãos com atitude crítica. Afinal, para os liberais, não existe sociedade, mas sim indivíduos, não é mesmo?

Então, visto sob esse ponto de vista, não é paradoxal que um presidente (ilegítimo, é bom que se recorde) que se julga vate e faça questão de suas ênclises e mesóclises, esteja à frente de um estrepitoso processo de desmonte da cultura. Toda a riqueza e diversidade cultural de nosso povo é homogeneizada pela mão “invisível” do mercado, que, munida de tesoura, corta e tolhe o que pode. Se alguém ainda tem dúvida de que houve golpe, basta ver a guinada que se operou desde 2016 nas políticas públicas. Para esses pequenos burgueses guindados à posição de serviçais dos interesses da grande burguesia, cultura não é mais do que alguns versos produzidos segundo ótica passadista, para consumo privado, longe do grande campo do Estado e dos problemas da nação. E para esse desmonte, o governo (golpista, é bom que se lembre) recorre ao velho preconceito incutido pela alta burguesia nas camadas médias contra a arte e a cultura. Como o artista é um agente que não raro foge às injunções do mercado, o pequeno burguês, frustrado em seus sonhos de ascensão social, joga suas frustações sobre os seus ombros, invejando-lhe a liberdade, que aos seus olhos não passa de vagabundagem.

A resistência passa por insistir nessa “vagabundagem”, nessa liberdade, nessa autonomia – para lembrar a esse medíocre burguês que ele é vítima da mesma opressão. As verbas, que são cortadas dos programas de educação e cultura, são aquelas que lhe farão falta também na construção de um país mais justo e mais plural. Resistamos, pois, com as armas de que dispomos: palavras, gestos, cores, formas… Como disse Drummond, num outro contexto, mas no entanto muito parecido com o que nos sucede: “O poeta / declina de toda responsabilidade / na marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas / promete ajudar / a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta, / um verme.”

Otto Leopoldo Winck é autor do romance Jaboc, lançado em 2007 pela editora Garamond, e Cosmogonias, volume de versos, a ser lançado este ano pela Kotter Editorial.