Martinha Vieira*
Uma canção é capaz de romper as distrações que nos amortecem?
Para que serve a música? Leitura e fruição, entretenimento, reflexão sobre a realidade?
Música: Vai passar
Autor: Chico Buarque/ Francis Hime
Tuba e piano elétrico: Cristovão Bastos. Baixo: Luizão. Cavaquinho: Alceu. Bateria: Robertinho Silva. Percussão: Cabelinho, Chico Batera, Elizeu, Luna, Marçal, Marçalzinho e Dexter Dwight. Coro: Ana, Bebel, Bee, Cristina, Dinorá, Dorinha, Eurídice, Marlene, Miúcha, Olivia Byington, Piii, Zélia, Zenilda, Carlinhos Vergueiro, Carlos Alberto, Copacabana, Genaro, Joe, Marçal, Mauro Duarte, Stenio e Tufic. (Vai passar): Marçal. Arranjo: Cristovão Bastos.
Faixa do LP Chico Buarque – 1984, gravado em setembro e outubro de 1984 nos estúdios da PolyGram (RJ). Remasterizado digitalmente em CD em 1993 – PolyGram/Philips
Produção: Homero Ferreira. Co-produção: Chico Batera. Direção Artística: Mazola. Imagem de capa: Cafi (fotos de capa e encartes)
Letra:
Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
(Vai passar)
Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar
A mão cuidadosamente acaba de ajeitar o cabelo, um toque aqui, outro ali, um olho no espelho, os pés entram nos sapatos prontos para aguentar muito tempo sobre as pedras da calçada ou quase derreter no asfalto, bandeira em punho, abre-se a porta e mais um engrossa o caldo quente da multidão que se aglomera numa praça ou avenida de alguma cidade brasileira. E mais uma, e mais um, e mais tantos, agora são milhares em cada ponto do país, mas o grito é um só, como num coro de samba enredo, “a evolução da liberdade, até o dia clarear”. Cada um no seu posto, ninguém pode falhar, ninguém pode perder o tom. Basta uma pequena distração e o enredo pode mudar. Ai, quando foi que aconteceu? Onde e quando nos distraímos? Por quanto tempo e quantas vezes dormiu a nossa “Pátria distraída” enquanto se tramavam “tenebrosas transações”?
As pedras, testemunhas mudas da história, desenham o mapa do tempo, uma linha frágil que arrebenta em horrores de quando em quando. Não o tempo natural das coisas, que faz deteriorar gradativamente qualquer matéria viva, mas um tempo forjado a ferro, que esmaga impunemente, atropela, trucida, deglute e vomita. Tudo que se espera é escapar com vida, para teimosamente recomeçar. Resistir, limar, derreter, enferrujar, reciclar, transformar, até que a roda possa girar para todos os lados, até que a força não se imponha, até que não haja mais o lado forte e o lado fraco.
A cena é de 1984. Comícios, shows, passeatas uniam grande parte da população, movimentos sociais, sindicatos, artistas, a ala progressista da igreja e os partidos de esquerda, que reivindicavam um passo maior no processo de redemocratização, após 20 anos sob a ditadura militar, que já dava sinais de cansaço desde 1979, com o início da abertura política e anistia aos presos políticos e exilados. Não por acaso. Ferramentas, ferragens e ferrolhos do regime carcomiam e enferrujavam pela resistência da água que, aparentemente frágil, mas líquida, escorre, goteja, enche o copo, transborda o rio e vira mar.
Mas o ferro dos grilhões ainda resiste, passando dos negros escravizados e índios massacrados pela colonização aos seus descendentes historicamente à margem dos direitos, mesmo com “liberdade” concedida. Desemprego, falta de recursos e favelização atingiram sempre em cheio os brasileiros da gema, da mistura de raça e sangue afro-indígena. Após 20 anos de horrores de um regime de força, e até hoje, a caçada continua nas favelas e periferias. Enquanto ainda se contam os desaparecidos e mortos durante os regimes ditatoriais, cada vez mais se contam os negros/ favelados, desaparecidos ou mortos em ações policiais, esquadrões da morte e crime organizado, assim como seus ancestrais acorrentados e subtraídos pela luxúria da classe desde sempre dominante, que se banqueteia com a desgraça das multidões anônimas.
E o que o ano de 1984 tem a dizer nessa longa história do Brasil? Um enredo na forma de samba, ou um samba no estilo samba-enredo, ganhava a avenida, desfilando sobre as pedras milenares dos “pelourinhos” brasileiros, de torturas raciais, sociais e políticas, a referência à opressão histórica, numa explosão de força e alegria popular ao tomar a avenida, na qual “sangraram” e “sambaram nossos ancestrais”, para desfilar um enredo de redenção das classes oprimidas desde o Brasil colônia até aquele momento de campanha por eleições diretas. No grito de mestre Marçal, sem distinção de escola, no coro popular e na voz de um dos maiores compositores da MPB, o mangueirense e carioca Chico Buarque de Hollanda lançava um disco com a faixa “Vai passar”, composição sua em parceria com Francis Hime. Um samba em que a liberdade sai vitoriosa e segue adiante no tempo, relembrando as “páginas infelizes da nossa história” como páginas viradas para sempre, “passagens desbotadas na memória das nossas novas gerações”.
A conquista da liberdade verdadeira, expressada nesse samba do Chico e do Francis, refletida em todos os aspectos da vida social, econômica e política, vem sendo sonhada, tecida, ora uma ilusão consentida, adiada, ou parcialmente conquistada, depois perdida, novamente sonhada, discutida, acalentada, novamente desbotada. O desejo de virar para sempre algumas páginas da história, até se desbotarem e desparecem com todas as suas chagas, precisa ser reencontrado a cada novo tempo em que páginas são viradas pelos ventos da distração, da não vigilância, da tranquilidade aparente.
Até que a avenida seja de todos, muito enredo já passou (Cuidado! Se o esquecermos poderemos cometer os mesmos erros). Há um enredo passando agora, atenção! E muito ainda vai passar… A composição é de todos, e quem perde o passo e o compasso vai sambar conforme o samba alheio.
Link do videoclipe oficial de 1985: https://www.youtube.com/watch?v=9A_JrsJF6mM
Link do disco completo: https://www.youtube.com/watch?v=fbeGNri5eok
Link para trecho do DVD Vai Passar: https://www.youtube.com/watch?v=jYOA60lASwI
Site oficial Chico Buarque: http://www.chicobuarque.com.br/
*Martinha Vieira é formada em Letras Português, pela UFPR (1990), pós-graduada em Currículo e Prática Educativa, pela PUC-RJ (2002) e em Produção da Arte e Gestão da Cultura, pela PUC-PR (2014).