Mulher do fim do mundo

Música: Mulher do fim do mundo

Autores: Rômulo Fróes e Alice Coutinho

Faixa do CD A mulher do fim do mundo, de Elza Soares, lançado em 2015, pela Circus, produzido por Guilherme Kastrup.

Elza Soares ganhou o prêmio de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira no Grammy Latino, em 2016, com esse disco, que foi o seu primeiro de músicas inéditas em toda a carreira. Mesmo a canção não sendo da autoria de Elza a ela faz referência, mulher negra e hoje empoderada, mas que já amargou muita dor e preconceito e emerge para “cantar até o fim” nesse disco que tece muitas críticas a questões sociais, políticas e de gênero.

Depoimento de Elza no facebok sobre o prêmio:

“Catatônica estou! Primeiro disco de inéditas. Suspeitava que algo de muito grande fosse acontecer, mas… o Grammy Latino? Minha gente… Esse prêmio acaba sendo um reconhecimento do trabalho de muita gente também… Lógico! É como se todo o discurso do disco, que é tão importante, fosse premiado. É uma alegria sem fim. Sem fim… Sem fim…Obrigada, obrigada, obrigada. Com o amor de sempre, Elza Soares”.

 

Links:

Clipe oficial de A mulher do fim do mundo

https://www.youtube.com/watch?v=6SWIwW9mg8s

 

Letra:

MULHER DO FIM DO MUNDO

 

Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qual é

Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor

Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei
Do resto dessa vida,
Na avenida, dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar

 

Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim
Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim

Até o fim eu vou cantar, eu quero cantar
Eu quero é cantar eu vou cantar até o fim
Eu vou cantar me deixem cantar até o fim

 

 

A mulher do fim do mundo (não é apenas uma canção)

 

Elza, a pele preta e a voz, depositadas na avenida, na vida, em cada samba cantado e dançado, “na chuva de confetes deixa a ‘sua dor’”.  A dor de Elza, a dor de muitas mulheres, a dor que submete e mete e rasga e sangra. O cicatrizante é a lágrima de sangue que vira “lágrima de samba na ponta dos pés”.

Gota, porção líquida de tristeza, dor amalgamada na pele salgada da lágrima quente, enxurrada corrente nas linhas do rosto, brilho translúcido dos olhos arregalados de pavor, a voz engasga, enrosca na garganta. O coração parece que não vai aguentar. A violência sofrida, o aviltamento da carne, do osso, do corpo e do espírito. O grito surdo que abafa a consciência do agressor. A mão pesada da força bruta barganha o direito de existir sem dor aguda.

Mas Ela guarda em si uma seiva vital, poção de amor e dor. Amor de sempre amar, dor de querer ser em um mundo que aprendeu que Ela não tem vez. Poção de vida guardada a sete chaves quer abrir a porta e sair pelo mundo que é o seu lugar. E lá vem Ela, não na passarela. Protagonizando ao invés de agonizar, fazendo o caminho que quer caminhar. Por que a sua porção (poção) líquida, sua seiva vital, quando sobe à garganta vira água e sal e nitidez no olhar, a íris que reflete a vida, história e estrada misturadas ao pó que se levanta ao caminhar. O pó que se levanta tem um incômodo inicial, turva, mas só encobre se deixar assentar. Cada passo faz crer no próximo, e depois vem outro passo, e se Ela cansa o passo vira dança. Não deixa atar de novo o nó na garganta, canta. Saúda o amanhecer após a longa noite de silêncio, pra anoitecer de novo cantando, dançando, caminhando. O que não dá é pra parar: não deixa novamente a poeira assentar, não deixa estagnar, não deixa gangrenar.

Quando o corte vem do ato cirúrgico que joga a doença fora a cicatriz será saudável. O incômodo e a dor se transformam em superação.

Ela é e vai até o fim, cantar até o fim. Não apenas uma canção, mas a catarse da dor transtornada, transformada.

Ela, a porção mulher, independe de gênero: é o potencial amor que existe no humano, o potencial de amor à vida e o seu cuidar, que não é apenas da conta da mulher.  O afeto e o intelecto não reinam separados em gêneros que se completam. Cada ser precisa ser inteiro de pensar e de sentir e decidir sobre si.

“A multidão avança como vendaval, me joga na avenida que eu não sei qual é”.

Essa não é apenas uma canção. É o grito que transforma a gota em enxurrada. A gota que sozinha é quase nada.  Vivemos um momento perigoso, momento em que muito pode ruir pela permissividade e incentivo à truculência machista e ao desejo estúpido de submeter e arrebentar mulheres de sexo e de pancada. Você, homem de verdade, que nunca praticou violência e não acredita que isso possa acontecer, acredite, acontece sim. E você, mulher que teve a felicidade de conviver com homens de verdade e que também não imagina que isso acontece, também creia, é a verdade cruel de muitas já vítimas de machos brutos que estão longe de serem homens.

Por isso falamos aqui dessa canção. Porque essa é uma canção de despertar e de alertar. É uma canção de cuidar do ser e de ser. Canção de não permitir o que devasta e devassa o ser. Ela, Elza, Elaz, Elas. Todas Elas em Elza. Toda a resistência, insistência e persistência em Elza e em todas Elas. Todas Elas que não querem mais não ser. Todas que não vão mais abafar o grito, porque bela é a voz que emerge e acorda e canta e encanta. Por isso Elza, porque Elza vai cantar até o fim, porque Ela vai cantar até o fim. Elas vão cantar até o fim. Vão cantar e cantar e cantar até o fim. E quando é o fim? Só Elas sabem. Elas decidem.

 

Martinha Vieira é formada em Letras Português, pela UFPR (1990), pós-graduada em Currículo e Prática Educativa, pela PUC-RJ (2002) e em Produção da Arte e Gestão da Cultura, pela PUC-PR (2014).