Educação e emancipação

Minha vida com o Prouni

João Moisés*

Fui convidado a trazer aos leitores minhas experiências e vivências com o Programa Universidade Para Todos – PROUNI e de como minha vida foi – e está sendo – transformada pela educação. Mas acredito que, para isso, preciso, primeiramente, contar um pouco mais de quem eu sou e de como cheguei até aqui.

Meu nome é João Moisés, tenho 20 anos, e atualmente estudo medicina nas Faculdades Pequeno Príncipe em Curitiba como bolsista integral pelo PROUNI. Iniciei o curso em 2017 e, desde que entrei, uma das perguntas que mais ouvi foi “por que você escolheu medicina?”. Desde muito pequeno, lembro da admiração que sentia pelo meu pediatra, quando minha mãe me levava até a Unidade de Saúde perto de nossa casa. Era difícil não olhar pra ele e me imaginar fazendo a mesma coisa um dia. Mas como com toda criança, os sonhos não levam em conta os muitos desafios que viriam pelo caminho.

Eu cresci em uma comunidade pobre em Curitiba onde praticamente todas as casas eram fruto de ocupação de áreas públicas, incluindo a minha, e se localizavam a margem de um rio que, por vezes, transbordava durante algumas chuvas mais fortes. Eu vivia com minha mãe, dona Olga, diarista e artesã, e com meu pai, João, porteiro aposentado. Nossa família sempre precisou trabalhar muito para conquistar coisas muito básicas, assim como a maioria das famílias brasileiras, mas mesmo assim nunca nos faltou nada dentro de casa.

Dentre as muitas coisas que minha família me proporcionou, acredito que uma das mais importantes tenha sido o estímulo para estudar. Meus pais, infelizmente, não concluíram sequer o ensino fundamental, mas sempre me ensinaram quão grande é o poder transformador da educação na vida de uma pessoa.

Sempre fui estudante de escolas públicas, a primeira para qual entrei era municipal, com uma excelente infraestrutura e com ótimos profissionais. No entanto, foi preciso que eu mudasse para outra escola após o 5° ano, foi então que ingressei em uma escola estadual, com infraestrutura de menor qualidade e onde me deparei com inúmeras situações de violência entre os alunos, mas que, apesar das dificuldades, possuía profissionais que davam seu máximo com os poucos recursos que tinham. Mudei novamente de escola durante o ensino médio, dessa vez para uma com ensino profissionalizante, na qual me formei como técnico em química. Uma escola incrível, onde encontrei professores que foram grandes inspirações de vida e imensos incentivadores do meu sonho ainda guardado.

Apesar dos incentivos por parte da minha família, de muitos professores e amigos, a realidade por vezes é um pouco mais dura com os nossos sonhos. Foram incontáveis o número de vezes em que pessoas desacreditaram da possibilidade de eu cursar medicina, justamente por ser um curso considerado “para a elite” ou “para quem tem dinheiro”. Ouvia frases como “e você pretende pagar como?”, “você não vai conseguir passar em uma federal, você nem cursinho faz?”, “mas não dá pra trabalhar, como você pretende ajudar sua família?”, “pobre fazendo medicina? Sem chance” e o pior de tudo isso é que eu realmente acreditava nessas frases.

Por muito tempo me culpei por não estar “ajudando” meus pais, por estar estudando enquanto tantos a minha volta já trabalhavam. Minha família não tinha condições de pagar um cursinho pré-vestibular para mim e eu imaginava que sem isso seria impossível passar, já que tantas pessoas ficavam anos em cursinhos caríssimos lutando por uma vaga e quem seria eu para almejar alguma coisa estudando em casa. Mas sempre que esses pensamentos vinham minha mãe me falava “a gente trabalha e você estuda, eu não quero que você passe pelas mesmas coisas que eu passei”. Sempre que ela me dizia isso era como um banho de água gelada, me fazendo acordar e me mostrando que o motivo para estar ali era pra mudar não só a minha vida, mas a de toda a minha família.

Durante o último ano do ensino médio eu estudava de manhã no colégio e à tarde, em casa pela internet. Me inscrevi para o ENEM de 2016 e confesso que com uma esperança de que daria tudo certo. Estudei muito naquele ano e me sentia preparado, mas quando pensava na concorrência que teria pela frente, um medo muito grande me tomava. Medo de ter que ver meus pais ralando por mais um ano, medo de minha família não ser mais capaz de investir no meu sonho.

Fiz a prova naquele ano e me senti feliz com o resultado, eu havia ido muito bem, principalmente em redação, e esperava conseguir a vaga. Me inscrevi para o PROUNI 2017/1° semestre, mas, infelizmente, minha nota não foi suficiente para passar. Fiquei muito abalado com a situação, foi uma decepção muito grande ter estudado tanto para não conseguir a vaga e todos aqueles medos acabaram voltando de uma vez só. Mas meus pais me motivaram para que eu não desistisse e continuasse por mais um ano.

Comecei a estudar novamente em 2017, na esperança de conseguir ser aprovado para o próximo ano. Entretanto, no meio do ano, me inscrevi novamente no PROUNI 2017/2° semestre, e, após muita expectativa, finalmente, APROVADO. Foi uma das melhores sensações da minha vida, havia sido aprovado no curso que tanto desejei e, ainda mais, com uma bolsa integral, todos aqueles medos tinham ido embora e, finalmente, eu poderia dar uma vida diferente para a minha família.

Dentro da faculdade me deparei com desigualdades imensas, com abismos que separavam a minha realidade da realidade de tantas outras pessoas. Conheci pessoas maravilhosas e, me espelhando nelas, mudei muitos pensamentos e ideais que tinha, essas pessoas me inspiraram a ser um ser humano melhor a cada dia.

Aprendi que a nossa luta pela educação deve ser de todos e diária, porque é a maior e melhor ferramenta de transformação social que existe. Minha posição é ainda de muitos privilégios, pois, apesar das dificuldades financeiras, sempre tive uma família estruturada que me deu apoio em todo o tempo. Estudei em escolas que faziam muito com muito pouco. Tive professores que me mostraram caminhos que eu pensava que não existiam.

Entretanto, nós vivemos em um país onde a realidade é cruel com milhões de pessoas, onde crianças vão para as escolas com a simples finalidade de se alimentar, pois não há condições para se comprar comida em casa. Isso quando há acesso a escolas e centros de ensino, quando há professores, quando há estrutura física de qualidade para o mínimo de conforto dos alunos e profissionais.

O PROUNI é apenas uma pequena ferramenta de mudança social, e me choca pensar que muitas pessoas acreditam que isso seja uma forma de privilegiar uma classe. As múltiplas realidades brasileiras escancaram o sofrimento, e um programa que tenta diminuir esse sofrimento por meio da educação é o privilégio?

Até 2016, foram mais de 1,9 milhão de estudantes bolsistas que tiveram acesso ao ensino superior pelo PROUNI (prouniportal.mec.gov.br). São mais de 1,9 milhão de vidas transformadas e em transformação, assim como a minha. Pessoas que tiveram a oportunidade de sonhar e de colocar o sonho em prática, de poder vislumbrar um futuro melhor, com menos dificuldades e que caminham para uma sociedade mais igualitária.

Temos o dever moral de lutar por uma educação pública de qualidade, mas, também precisamos lutar para manter os programas que deram esperança a milhões de brasileiros. Temos um cenário político incerto e com gestores e governantes que nem sempre compreendem a importância social de muitos programas e que me transmitem medo. Medo, não por mim, mas por tantos outros e outras que talvez não tenham a mesma oportunidade que tive. Nós precisamos encarar a educação como pilar fundamental de uma sociedade saudável e ajudar a proteger esse pilar, unindo forças para manter o sonho de milhões ainda vivo.

*Estudante de Medicina nas Faculdades Pequeno Príncipe beneficiário do PROUNI – Programa Universidade para Todos.

 

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