Guilherme Heleno*
As histórias que se aglutinam em torno do personagem principal do aclamado filme Eu, Daniel Blake (Ken Loach, 2016) estão comprimidas entre as fases do longo processo que Daniel deve passar na luta pelo direito ao seguro desemprego. O filme é um desenvolvimento propositalmente simples, de narrativas que possivelmente habitam as filas de espera dos órgãos burocráticos responsáveis por importantes partes das políticas de assistência social, como a previdência. Pode-se, inclusive, ler tais filas como elementos orientadores de toda forma, pois, além da influência direta na experiência da temporalidade do filme-os personagens estão constantemente esperando, – são elas que provém os cenários para todos os principais encontros, que são um dos poucos recursos estilísticos do filme.
Eu Daniel Blake, ficou conhecido por trazer uma perspectiva humanizada e tocante sobre a problemática da previdência social. Não resisto a tentação de imaginar as possibilidades formais que esta premissa possibilita: uma versão mais formalista poderia ter confinado todos os acontecimentos ao ambiente institucional, no qual os conflitos entre cidadão, burocratas e Estado estariam latentes; tendo em vista que é evidente que há uma preocupação do filme em sensibilizar o espectador para a questão abordada, poderíamos pensar uma versão heroica clássica, com uma inclinação épica, como o drama norte americano, ou as grandes narrativas dos movimentos trabalhistas no cinema russo do início do século XX. No entanto, Loach opta por uma linguagem altamente econômica, a fotografia, a mise-en-scene – construída em locações, – e o som, são naturalistas, os acontecimentos e encenações são cotidianas, os atores não são atores de profissão e há poucas modulações no estado dos personagens.
Os realizadores estão retomando, com estas escolhas, características primordiais dos impulsos ideológicos e estéticos das vanguardas dos anos 50 e 60, que frutificaram em cinematografias bastante comprometidas em abordar questões de relevância política e social. Muitas semelhanças poderiam ser traçadas entre este filme e Os Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948), marco do neorrealismo italiano, que também explora questões em torno do desemprego e da relação cidadão e instituição. Perceber de que forma Ken Loach foi influenciado pelo cinema neorrealista, ajuda a elucidar que projeto de cinema o diretor está executando. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Loach afirmou que foi o famoso filme de De Sica que despertou seu interesse pelo cinema. Ele disse: “It made me realise that cinema could be about ordinary people and their dilemmas. It wasn’t a film about stars, or riches or absurd adventures. I was able to see cinema in another light, outside the Hollywood nonsense.’’ (Me fez perceber que o cinema poderia ser sobre pessoas comuns e seus dilemas. Não era um filme sobre estrelas, ricos ou aventuras absurdas. Eu fui capaz de ver cinema por uma outra perspectiva, para além do nonsense hollywoodiano)
A falta de recursos estilístico estão neste filme deixando espaço aberto para a atenção do espectador se voltar para os sujeitos, seus corpos aprisionados pelas regras do Estado, e as relações, que parecem ser a única forma possível de sobrevivência. De forma quase irônica, em relação ao título, é o encontro entre o protagonista e Katie e sua família, responsável pela identificação que aproxima o espectador de Daniel e, portanto, do assunto abordado. Não por acaso as cenas mais marcantes, e tristes, do filme, estão por conta desta personagem, como quando ela, faminta e vulnerável, come com as mãos, direto de uma lata de molho de tomate, no banco de alimentos. A ajuda e atenção despropositada do protagonista para com esta mulher e seus filhos potencializa a revolta que é possível se sentir perante as situações destes personagens. Esta relação culmina em uma cena final, protagonizada por Katie, no qual, sem nenhuma música eloquente, ou impressionantes movimentos de câmera, escutamos um discurso bastante direto, quase como uma conclusão da argumentação traçada pelo roteiro. Ouvimos Katie ler: Eu, Daniel Blake sou um cidadão, nada mais, nada menos.
*Guilherme Heleno é estudante de cinema da UFF (Universidade Federal Fluminense). Atua com realização audiovisual, com foco em direção e direção de arte. Participou de diversos projetos na área, entre eles: “A incrível história do homem desalmado,” “Feliciani Vol 7” e “Prisma.”