Valquíria Prochmann*
“Cabe, portanto, concluir que o isomorfismo entre os valores que submetem a estes dois princípios – cooperação, solidariedade, participação, democracia e prioridade da distribuição sobre a acumulação – não se erige em ponto de partida, mas no resultado de uma esforçada luta política pela democracia; uma luta que somente logrará ter êxito na medida em que possa denunciar os projetos de fascismo social que sub-repticiamente se infiltram e se escondem em seu seio” [1]
Conceber o Estado Democrático de Direito como mera construção teórica, incrementada pela lógica das definições, pode ter relevância para uma síntese utópica no universo ideário dos seres humanos. Entretanto, não há espaço para a efetividade senão em permanentes caminhadas de ações coletivas e concretas, elaboradas no curso do desenvolvimento de uma sociedade.
A compreensão de que fatores históricos são necessárias premissas para engatilhar o que se pensa ser Democracia e Direito, enquanto experimentações que admitem diversos modelos de expressão, é fundamental para traçar os contornos dessa prolixa figura que recheia a quase totalidade dos discursos políticos. Conceituações apenas agregam valor de conhecimento se estiverem em contínuas reflexões voltadas à superação do velho e ao abraçar do novo, ainda que, nem sempre, se façam absolutamente corretas.
A atuação do Estado frente à sociedade tem particularidades intrínsecas à própria formatação que acompanha as manifestações do poder. Todos os elementos originários dessa máquina, marcada pela complexidade, sofreram barreiras ideológicas, para adequar a racionalidade no exercício do poder político às necessidades prementes e emergenciais de nações entregues à absoluta insuficiência de recursos para contemplar a todos na essência de promover a conciliação de classes. De qualquer forma, os múltiplos conceitos não se distanciam de um núcleo estrutural: a supremacia da ordem constitucional.
Para tratar de Estado, Democracia e Direito, é imperioso assumir, de antemão, que o conteúdo da expressão “ordem constitucional” não está restrito à existência de constituições ou à feição legalista da ordem jurídica. Por “ordem constitucional” é preciso compreender todos os fatores que a conjunturam na assinatura do contrato social, como também considerar a natureza invariavelmente contraditória do resultado de um verdadeiro acordo social entre seres humanos livres.
A força institucional das Constituições está no campo de regulação social que representam. Para o Estado Democrático de Direito está na ambitio saeculi, já que “os homens são capazes de construir um projeto racional, condensando as ideias básicas desse projeto num pacto fundador – a Constituição”. Daí a concepção da Constituição como subjetividade projectante que conjuga a subjetividade, a racionalidade e a cientificidade, convertendo em lei escrita o instrumento de constituição da sociedade. [2]
Partindo dessas reflexões, vale retomar a caracterização do Estado Democrático de Direito, no reconhecimento da gênese das Constituições na realidade social e histórica como elemento necessário ao ponto de partida. A redução do Estado Social ao patamar de simples reprodutor de serviços públicos – especialmente nas áreas de saúde e educação – apequena, por consequência, o espaço de democracia às bases ideológicas do sistema capitalista. Isto é, o fornecimento dos serviços púbicos se restringe a assegurar que os seres humanos estejam aptos à inclusão no mercado de trabalho – e apenas isso – onerando no mínimo possível os custos da produção de bens e riquezas. E assim aparece como reprodutor de interesses opressores e não como instituição instigadora de sujeitos plenos e criativos, aptos ao exercício da cidadania.
Surgem, então, inevitáveis questionamentos. Como construir um Estado Democrático de Direito em uma realidade calcada em imensos abismos sociais e econômicos? Qual é o alcance desse pacto social que, só por existir, conta com um terço de excluídos aos próprios institutos reprodutores das relações de opressão? O que é democracia na essência de seres desumanizados pelas condições miseráveis de sobrevivência?
O Brasil carrega um triste ranço de governos servis, elites coniventes com a larga e assassina espoliação imperialista; uma estrutura social fundamentada nas sobras da escravidão negra, no genocídio indígena, na exploração dos imigrantes, na flexão de valores legitimadores de desigualdades, no restolho das sórdidas relações entre Casagrande e Senzala. Como regulador social, o Estado faz sua parte em assegurar a simbiose química entre produção e distribuição de riquezas, cabendo a primeira à maioria de trabalhadores e a segunda aos máximos senhores proprietários dos instrumentos produtivos.
Carrega como caráter medular a feroz supremacia de classes, o que se retrata nos modelos de desenvolvimento urbano e de ocupação das terras, na prestação diferenciada de serviços públicos, no abuso irresponsável da natureza, na negação aos direitos fundamentais que apodrecem nas cláusulas amareladas de uma infinidade de leis desconhecidas e jamais aplicadas. Por certo, não é essa a ordem constitucional que assegura a Democracia.
Abafada por um falso manto de isonomias de inscrição, nossa nação brasileira vive em permanente tensão política que, inobstante imersa em camuflagens de propostas de liberdade, não apresenta um único aspecto realmente libertário. Todas as tentativas levadas por políticas públicas, por mais razoáveis que se pretendam, qualquer mínima mudança na bússola dos rumos adotados para a redução dessa voragem social, desembocam em violentas reações das elites autenticadas pelos poderes constituídos. Ao lado dessas horrendas marionetes, a permanente ameaça das Forças Armadas imersas em tempestivas sombras, nutridas para combater o inimigo interno, massacrar o povo, criminalizar a miséria, promover intervenções para aprumar os caminhos que restauram.
Em breve relato, vale asseverar um resgate histórico.
Getúlio Vargas foi abençoado pelos comandos brasilianos enquanto cumpriu a representação institucional das elites agrárias. Passou à condição de rebotalho quando caiu nas graças do povo por normatizar os mais elementares direitos aos trabalhadores. Juscelino Kubitschek enfrentou incessantes movimentações intimidadoras porque propôs um modelo de desenvolvimento com maior amplitude de transparências, direitos e acessos. Os teóricos das atuais leis de responsabilidade fiscal ficariam horrorizados com os arroubos do Presidente na implementação de um projeto com comprometimento de recursos públicos. Mais ainda porque tais projetos foram ovacionados pela opinião midiática.
Jânio Quadros renunciou, sucumbindo às “forças ocultas” de anunciação de uma guerra civil na qual não pretendeu o protagonismo. João Goulart se rendeu pelas tempestades anunciadas de um prometido “derramamento de sangue” ao propor as Reformas de Base, aquelas que ainda se escondem na conclusão da primeira fase do desenvolvimento capitalista no Brasil. Medidas assecuratórias da versão política do liberalismo econômico. Simples assim. Enunciações que as elites brasileiras não suportam porque promovem pequenos espaços de elevação social.
E, agora, Lula. O símbolo Lula. Quem é Lula naquele raio X dos submundos do inconsciente coletivo? Quem é Lula diante de todos os esforços que a classe dominante assume para que tudo fique como está? Quem é Lula na ruptura dos valores aristocráticos que ainda orientam as elites brasileiras? Lula é um operário, um trabalhador e uma liderança sindical, um retirante nordestino, um sobrevivente da ditadura militar que carrega na história a luta do trabalho contra o capital e traduz na alma preceitos básicos de igualdade.
Apesar de todas as contradições que os governos de Lula significaram para os movimentos sociais, Lula continua sendo Lula. E enquanto essa saga insana contra a figura de Lula permanecer, reinarão os personalismos, as idolatrias, as significações emblemáticas – tudo o que não ajuda a democracia, mas, reafirma a segurança institucional de um povo que nada mais sabe fazer além de fantasiar heróis.
Lula resgatou os primórdios das reformas na estrutura de um capitalismo capenga e rudimentar no resto do mundo. No entanto, ainda tão infante no Brasil. Propostas, caracteres, posturas políticas, teve muitas metas e poucos caminhos, refém de uma democracia representativa arraigada à superioridade dos opressores, sujeito a humilhações bombásticas porque contrapõe o que se compreende como gente melhor e mais sábia para orientar as trilhas do país.
Lula tornou-se exemplo da democracia viajante pelo mundo capitalista já vitimado pelas crises cíclicas. Fez-se ícone da conciliação de classes e, nesse perfil, ganhou a passividade temporária dos opressores, na beleza vendida por um sistema de absurdos temerários. A verdadeira face do oprimido, “sem medo de ser feliz”. Só por dissecar essa expressão, já seria gente estranha, porque, na egocentrada visão da nobreza, nem a felicidade pode ser democratizada. Os heteronômios da felicidade não cabem nas funções programáticas dos Estados de Direito sem reais democracias.
As metralhadoras disparadas contra Lula não miram a corrupção ou as falhas de gestão financeira, já que também o hábito de desviar dinheiros públicos não pode ser democratizado, é privilégio dos estereotipados que carregam a complacência dos governados. Revelam oposição à acepção da sensibilidade social, aos trabalhadores e à ruptura com os valores da própria luta de classes, à vida com dignidade para todos. Lula é homem que chora, é gente que sente, mesmo quando rendido – como todos nós – às incongruências da História.
E o que fazem as elites? Cobram das instituições o arcaico papel de garantir que a ordem sustentada pela opressão não sofra interrupções, que as categorias da sociedade estratificada se mantenham em seus devidos lugares, para o que resgatam a positivação da ordem jurídica como armas oficiais. Constrangem a obediência civil como condição de funcionamento do Estado, clamam pela parcialidade das instituições, das forças de segurança e da velha senhora dona da balança da justiça sobreposta às eletrizadas bombas de esperança que se depositam ao lado dos desobedientes.
Esse conjunto de instrumentos – valores, aparatos ideológicos, os mecanismos de contenção da voluptuosa força transformadora – é a referência traduzida por Boaventura de Souza Santos como “fascismo social”, produzido e reproduzido atavicamente em sociedades primadas pela opressora máquina de conservação.
Permanecemos estagnados, pasmados, inertes. Nesse contexto, onde nos perdemos?
Em que tipo de ópio intelectual nos permitimos o esquecimento de que a vida vale a pena e a sociedade também, ainda que reclamem tantos melhoramentos? Em que tipo de desesperança nos fizemos tão amorfos? Qual é nosso espaço nesse absurdo espetáculo dos horrores? Seremos simples expectadores nas afrontas aos preceitos fundamentais da Magna Carta Constitucional brasileira? Faremos comprometimentos com a defesa dos direitos fundamentais? Assumiremos nosso papel de contraposição aos despautérios que se impõem sobre nossas cabeças? Enfrentaremos as instituições ou nos renderemos ao “fascismo social”?
Imperioso que a sociedade assuma o protagonismo da defesa das garantias constitucionais e dos direitos fundamentais. A apatia frente a usurpação das conquistas políticas e a evidência da insana supremacia de ditaduras judiciárias e midiáticas reclamam uma mínima reação, na proteção das bases de uma ordem política justa sobre as quais seja possível edificar uma sociedade liberta de ameaças dos poderes armados e das falácias das isonomias formais.
De arbitrariedades justificadas pelos sofismas da Lei e aplaudidas pela mídia, a História está repleta. Mudanças, no entanto, são as que romperam as barreiras da legalidade e dos valores institucionalizados. Todas as grandes conquistas da humanidade se fizeram com muita luta, muitas lágrimas, muito sangue e por uma capacidade extraordinária de enfrentamento das instituições. Por ações coletivas e concretas.
Nossos tempos de luta estão aqui, nas janelas resistentes de nossas ideologias, na indignação que engendra os movimentos de transformação. Um juiz assume a força social de facções políticas, enquanto partidos anestesiam nossas dores prometendo os encantos e a segurança dos silêncios. Nossas angústias acalentam uma sociedade atávica pelo pão de cada dia e subjugada por necessidades básicas prementes. Cidadania restrita a pequenos templos do cotidiano.
Pesadelamos no medo, patinamos nas teorias, acostumamos às pequenas benesses permitidas pelas elites. Silenciamos nas aberrações perpetradas pelos poderes. Calamos diante da absolvição dos torturadores e assassinos da ditadura militar, permitimos o avanço dos valores fascistas porque o enfrentamento é árduo, pesado e doloroso. Temos compaixão com a miséria, o que não significa justiça social. Permitimos as imputações culposas aos movimentos políticos, a criminalização da pobreza, das periferias, dos camponeses que sucumbem, a cada dia, pela violência estampada nos espetáculos da democracia.
Basta uma gota de sensibilidade histórica para saber que o caos não é o povo nas ruas incomodando os semáforos e os itinerários dos automóveis. Povo nas ruas é a democracia. É gente que quer mudanças, gente indignada e que isso manifesta. Gente que deveria estar nas ruas para a partilha da vida, pela comunhão dos dias, pela maravilha do sol, na certeza de que a vida é maior que todas as ideologias e instituições. Gente que assume o protagonismo das transformações no confronto com as instituições já incapazes de cumprir os papéis destinados pela eterna novela da conciliação de classes. Sociedade organizada enfrenta os conflitos, reinventa o Estado, constrói constituições, assume as bandeiras da vontade geral. Isso é democracia sólida e efetiva com preservação na produção e com justiça na repartição de riquezas.
Distraímos, nos conformamos e nos demos por satisfeitos com as migalhas do sistema. Cumprimos nossas obrigações históricas com a América Latina, trouxemos os direitos fundamentais para a discussão política e para a prática judiciária, erradicamos a fome e a miséria, acalentamos todas as crianças em escolas e todos os idosos em postos de saúde universais. Enquanto isso, nossa Constituição Federal foi assolada de entulhos e remendos propositados para fazer sem efetividade todas essas conquistas.
Pagamos o preço de nossa ingenuidade. Construir um Estado Democrático e de Direito ainda é um grande desafio atolado de perguntas e poucas respostas. A partida é assumir o compromisso de um mundo que contemple a todos. Porque sociedades estratificadas já esgotaram os propósitos, nem mais cabem no Planeta. Os movimentos que ecoam pelos gritos dos oprimidos são os propulsores de um caminho para a democracia, ainda que pelas laterais da desobediência civil.
Precisamos dar os primeiros passos nessa caminhada. Para isso fomos feitos, “para ver uma canção em cada passo e a esperança no milagre, para nascer e renascer imensamente”. [3]
*Valquíria Prochmann é procuradora do Estado do Paraná. Pós-graduada em Direito Contemporâneo pelo IBEJ. Integrante do Grupo Tortura Nunca Mais e da Sociedade DHPAZ.
[1] Boaventura de Souza Santos, Reinventar la democracia Reinventar el Estado, editora sequitur, Madrid, 2009. “Cabe, por lo tanto, concluir que el isoformismo entre los valores que subyacen a estos dos principios – cooperación, solidariedad, participación, democracia y prioridad de la distribuición sobre la acumulación – no se erige en punto de partida sino en el resultado de una esforzada lucha política por la democracia; una lucha que sólo logrará tener éxito en la medida en que sepa denunciar los proyectos de fascismo social que subrepticiamente se infiltran y esconden en su seno.”
[2] (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6º edição, Ed. Almedina, Coimbra, 1.993).
[3] Poema de Natal – Vinicius de Moraes.