O samba-enredo “Viradouro de alma lavada”, vitorioso no Carnaval do Rio de 2020, nos trouxe uma interessante interface entre ciência, arte e cultura: seu tema central, a cultura popular e a condição da mulher trabalhadora na figura das ganhadeiras de Itapuã, foi em parte extraído de uma tese de doutoramento produzida entre 2008 e 2012 na Universidade Federal da Paraíba, de autoria da pesquisadora Harue Tanaka, sob o título “Articulações pedagógicas no coro das Ganhadeira de Itapuã: um estudo de caso etnográfico.”. Tanto a epistemologia levantada pela pesquisa acadêmica quanto o desfile que o mundo viu trataram de representar, em redação científica e em arte, o modo de sustento da “quinta geração de mulheres que lavavam roupa na Lagoa do Abaeté e faziam outros serviços em Salvador em busca da compra de sua alforria.”. A vitória repercutiu sobremaneira nos meios de comunicação e nas mídias digitais. Em entrevista ao site Geledés, publicado em logo após a vitória, na qual comentou o significado da vitória, Hanue Tanaka afirma que: “Ganhadeira somos todas as mulheres brasileiras. Todas nós trabalhamos pro nosso sustento e de alguma forma, não só lutando e resistindo a todas as intempéries e a todos os preconceitos, como para termos a liberdade”.
O episódio não deixa de elevar a discussão a respeito da ideia de uma nova forma de conjugar epistemologias nacionais neste começo deste século XXI. Também explicita a existência de canais pelos quais a cultura popular e a condição dos povos do Sul podem fluir da realidade local e das academias para a sociedade brasileira e mundial.
O carnaval, em seus contextos e saberes fundantes, é uma resistência explícita e vigorosa diante do epistemicídio que as culturas do sul vêm sofrendo desde o início da colonização. Epistemicídio é um termo apresentado pelo pensador português Boaventura de Souza Santos que assume ares de denúncia na medida em que desvela os efeitos nocivos e destruidores da ação ocidental sobre os saberes locais. À cultura moderna ocidental, marcada pela hegemonia antropo-falo-ego-logo-cêntrica, ou seja, pelos valores de exaltação do humano masculino, branco, heterossexual-reprodutivo, normativo, racional (penso, logo existo) e economicamente produtivo (definição de Suely Rolnic no texto: a hora da micropolítica), não interessa a existência de outras interpretações valorativas e existenciais. Por isso, aos saberes e tradições que não encontram lugar neste horizonte referencial e valorativo, a morte. O epistemicídio explicado por Boaventura ocorre primeiro pela assimilação dos saberes que interessam ao mundo ocidental e que podem representar algum tipo de vantagem, ganho ou lucro (é o caso, por exemplo, dos saberes tradicionais sequestrados pelos laboratórios farmacêuticos e cosméticos). Aos saberes não incorporados cabe a invizibilização, é o que vemos quando as políticas públicas ignoram a existência de determinadas culturas. No caso dos povos que desejam reivindicar sua existência social, requerer que sua dignidade seja assegurada pelas políticas, resta a destruição, o que Boaventura apresenta como terceira estratégia do epistemicídio. Para entender essa destruição, basta atentar para o fato de que todos somos testemunhas históricas desta nova forma de destruição moral, política e existencial da nossa face indígena desde sua desterritorialização até a desumanização.
Uma possibilidade de resistir ao epistemicídio é a afirmação em grande escala da existência destes saberes locais, ou seja, a constituição e o fortalecimento de epistemologias locais, como no caso das Ganhadeiras de Itapuã, como modo de resistir à hegemonia do regime ocidental. As epistemologias do sul ensinam, basicamente: que o Sul do mundo existe e que pode ser conhecido, visitado e valorizado, que é possível aprender a partir dos saberes que aqui existem/resistem e que ele se configura como campo de insurreições democráticas tradutoras e geradoras de novas cidadanias.
Segundo Viveiros de Castro, em uma linda publicação chamada Involuntários da Pátria, somos fustigados pelos que se dizem donos do Brasil “e que o são, em ultimíssima análise, porque os deixamos se acharem, e daí a o serem foi um pulo (uma carta régia, um tiro, um libambo, uma PEC)”, por meio de uma ofensiva final, não apenas contra os índios, mas contra as populações indígenas, isto é, contra todo aquele indivíduo ou grupo populacional percebido em uma cultura que se fez singular no Atlântico Sul: “gerado da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive”. Somos todos Ganhadeiras de Itapuã e somos todos indígenas, segundo Viveiros de Castro. embora nem todos os indígenas percebam-se como tal, uma vez que se consideram tributários de culturas ocidentais alhures. Ele mesmo completa ao afirmar que a antítese inescapável para todo aquele que não se vê indígena é ser alienígena.
Trata-se, em suma, do fato de que é necessário haver uma ciência que busque dialogar com a realidade das sociedades multiculturais nas quais foi gestada e nasceu. É o caso do Brasil. É o caso da relação entre ciência, arte e cultura que conquistou o Carnaval de 2020 no Rio. Não que a arte deva algo à ciência, mas, que a ciência também seja um saber à disposição da arte, como um esteio pelo qual a cultura do povo infunde em cultural nacional.
Carlos Alberto Rizzi – doutor em geografia pela Universidade de São Paulo e professor no Instituto Federal de Santa Catarina
Lidiane Grutzmann – doutoranda no departamento de Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo e professora no Colégio Medianeira