Iremos a um grande enfrentamento

Entrevista com Leonardo Boff

Pátria Distraída – A história brasileira é marcada pela dominação de uns poucos e empobrecimento reincidente da maioria do povo. Como o senhor percebe essa constante?

Leonardo Boff – A maior chaga do Brasil é a desigualdade social. Ela é fruto de dois fatores sempre presentes: o domínio colonial que nos fez dependentes primeiramente dos senhores estrangeiros e depois dos nacionais que os substituíram. Nunca se procurou fundar uma nação. Portugal nos transformou na maior empresa transnacional da época, exportadora de produtos importantes para os colonizadores, especialmente ouro e prata, base para a criação do mundo moderno europeu. Até hoje continuamos uma imensa empresa transacional exportadora de commodities. Em seguida veio a escravidão, nossa maior vergonha, porque não reconhecemos os africanos como pessoas, mas como “peças”, coisas a serem compradas e vendidas no mercado. 62% da população brasileira tem algo de africano em seu sangue. A escravidão criou, por parte dos donos, o desprezo e a humilhação dos negros, jogados nas favelas. Hoje esse ódio foi transferido a todos os pobres e marginalizados. Não é o povo que causa o desprezo e o ódio, são os descendentes da Casa Grande, aqueles rentistas e 71.440 milhardários que comandam a economia do país.

Por que a esperança de um país mais justo e solidário esbarra sempre na maior concentração de renda e na resistência em dividir ou, ao menos, diminuir a desigualdade? O que explica essa situação?

A escravidão criou o imaginário de que trabalhar é coisa de negro. As classes endinheiradas fizeram sempre uma conciliação entre elas de costas para o povo. Nunca tiveram um projeto de nação. Apenas um projeto para si e para o seu enriquecimento. Não há a mínima solidariedade destes para com seus semelhantes. Vivemos situações de barbárie em que 8 milhardários possuem mais riqueza que 100 milhões de brasileiros. As classes endinheiradas vivem de privilégios e não possuem nenhum sentido de direito para todos. 

Há um descrédito grande em todas as instituições, inclusive as essencialmente políticas, e nos políticos, que, com suas mazelas, são constantemente igualados pela imprensa em detrimento da ação política. Como isso ajuda na manutenção das diferenças absurdas entre os brasileiros?

No Brasil sempre possuímos uma democracia de baixíssima intensidade. Se medirmos a democracia pelos direitos sociais, pela justiça e pela participação popular, ela se apresenta antes como farsa do que como realidade. Estes que se apoderaram do Estado e de seus aparelhos vivem da riqueza feita por todos e dela se apropriam, seja através de propinas, seja ocupando altos cargos no Estado a partir de onde desviam milhões para seu benefício. Nunca amaram e não amam a democracia. Sempre se dão bem com as ditaduras. Seu grande aliado é a mídia empresarial, que faz o jogo desta elite endinheirada e participa de suas benesses. 

Como o senhor percebe os golpes oficiais e oficiosos e a imposição do estado de exceção, como nesse momento da história do país?

Sempre que a classe dominante se dá conta de algum avanço daqueles que estão no andar de baixo, ou quando percebe que as políticas sociais, como aqueles feitas pelos governos Lula-Dilma, podem se consolidar, inventa um golpe. Primeiro por via militar, hoje por via parlamentar com o auxílio do mundo jurídico e midiático. O objetivo é o mesmo: conservar seus privilégios e a natureza de sua altíssima acumulação. Somos um dos países mais desiguais, vale dizer, socialmente injustos do mundo.

A quem serve o atual desmanche do Estado brasileiro, da constituição e dos direitos individuais e coletivos?

O atual golpe serve aos interesses da elite endinheirada, mas articulada com as grandes corporações que querem entrar no país para aproveitar do mercado significativo que temos, mais de 200 milhões de consumidores. Agora não se trata mais de privatizar os bens nacionais, mas de desnacionalizá-los e entregá-los a preços irrisórios a seus sócios internacionais. A unidade de petróleo mais rica do Brasil, Carcará, foi vendida à Noruega valendo o barril de petróleo o preço de uma coca-cola. Por aí se mede a intenção de quem não pensa na nação, mas no projeto-mundo, no qual entramos como sócios menores, agregados e dependentes.

O ódio contra os empobrecidos cresce juntamente com a precarização do emprego e do bem-estar das pessoas. Como analisa essa questão?

O analista melhor de nossa realidade, Jessé de Souza, em seu livro “O atraso das elites: da escravidão à Lava-jato” (Leya 2018), mostrou claramente a lógica escravista presente nesse ódio. Ele possui suas raízes na escravidão, com um agravante: não basta manter os pobres na miséria e na periferia, precisa-se humilhá-los e desprezá-los a ponto de perderam a noção da própria dignidade. Que isso aconteça numa país de raiz cristã significa uma blasfêmia que grita ao céu, a introdução da barbárie como raramente na história. Como diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo: “No Brasil não temos elites, temos apenas ricos” desalmados e desumanizados. 

Como manter a esperança e não desistir da luta? Um outro mundo é possível?

A injustiça na história nunca serviu de fundamento para um projeto social e para a constituição de uma nação. Aqui não será diferente. Creio que iremos ao encontro de um grande enfrentamento em que esses pérfidos dominadores e desprezadores de seu povo serão banidos da história. Isso não se fará sem certa violência, que pertence aos processos históricos. A nossa desgraça foi não termos tido uma bastilha. Mas espero que o sofrimento secular não tenha sido em vão. Ele serve de base para um ensaio civilizatório biocentrado, composto por um povo que soube suportar, aprender com o sofrimento e capaz de gestar uma sociedade menos malvada onde seja menos difícil o amor.

*Leonardo Boff escreveu o livro Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes 2018). https://leonardoboff.wordpress.com/

 

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