Encarnação do Demônio (2007): Uma última aventura do mestre Mojica

Vinicius Aranha*

Quarenta anos depois de filmes de terror cujo legado no cinema brasileiro vemos até hoje; quarenta anos depois de censuras e perseguições que o forçaram a se aquietar em pornochanchadas e exílio; quarenta anos depois do início da ditadura civil-militar no Brasil: José Mojica Marins protagoniza, escreve e dirige mais um filme em torno de seu personagem icônico Zé do Caixão, mais uma aventura perturbadora e fascinante, com o título Encarnação do Demônio (2007). Este viria a ser o último longa-metragem do mestre, falecido em 19 de fevereiro de 2020.

Já não há mais tempo para encarar a figura de Mojica com a ironia ou deboche com que se encarou tempos atrás. Primeiro, porque aquele retrato grotesco de um povo brasileiro definido por paradoxos de moralismo, arrogância, delírios de superioridade e patriarcalismo, tudo isso sintetizado na galeria de personagens de À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1965) ou da obra-prima Esta Noite Encarnarei Teu Cadáver (1967), entre outros. Segundo, porque muitos dos seus filmes, apesar de toda a carência de recursos financeiros e outras cafonices consequentes, envelheceram muito bem esteticamente – em termos de estruturação e montagem, Mojica conseguiu diversas vezes estabelecer um método que desse não só corpo (suas performances como Zé do Caixão sempre foram cheias de vida e sentimento genuíno) como carne (no sentido de sensações físicas extremas) à sua visão peculiar de retratos sociais em choque com desejos e perturbações por trás desses retratos. Por tudo isso e muito mais, fiquemos com o gênio Mojica, antes de qualquer análise, e não com um charlatão burlesco com alguma criatividade, preconceito infelizmente ainda comum.

 

Encarnação do Demônio, por sua vez, como O Despertar da Besta (1970), é um filme menos sobre seu personagem atormentado tipicamente brasileiro do que sobre o mundo em volta que essa figura reflete. Zé do Caixão/Mojica carrega consigo o peso de uma História, àquela que diz respeito ao cinema brasileiro moderno (e modernista) dos anos 60 e 70 e tudo aquilo que o cerca e que se procedeu a partir dele. Os fantasmas, os ecos inquietantes, as vozes silenciadas murmurando algo incompreensível dali mesmo dos porões do inferno, caminham junto com o icônico coveiro pelas ruas de São Paulo de 2006/07, coveiro esse que retorna da prisão na trama do filme quase 40 anos depois.

 

São Paulo, também, é uma versão não muito diferente daquela que foi no passado, agora relacionada aos surtos de violência dos conflitos entre a polícia e facções criminosas que naquele momento estavam num ponto crítico: Continua, enfim, aquela cidade brutalista, solitária, entre a hipocrisia da moral burguesa, o autoritarismo das instituições de poder e os pesadelos entre céu e inferno do povo que passa fome. Nos primeiros filmes do Zé do Caixão, a filmagem em locação era limitada e o que víamos era mais uma abstração dos subúrbios da cidade, mas em Encarnação do Demônio, os recursos são outros, e os fantasmas associados à memória coletiva sobre São Paulo são tão claros quanto os fantasmas maquiados de branco que perseguem o velho coveiro. As figuras fardadas são tão essenciais quanto em Tropa de Elite (2007) do José Padilha, mas submetidos ao universo pessoal de Mojica, que coloca-os como vilões grotescos tal qual seu protagonista sádico. Trata-se de uma jogada de um verdadeiro gênio, inclusive, colocar Milhem Cortaz, aquele que fazia um dos policiais corruptos no filme de Padilha, como um padre vingativo sadomasoquista. É tudo bem ao pé da letra em Encarnação do Demônio, como nos melhores filmes de Mojica, porque o que interessa é justamente ver a sociedade brasileira por lentes de aumento, ou melhor, por salas de espelhos tortos vindos diretamente dos fundos de um parque de diversões abandonado – onde se passa o clímax da história, enfim.

 

Se Zé do Caixão fora o antagonista de seus clássicos de terror, aqui ele é colocado como um anti-herói lutando contra forças tão perversas quanto ele, mas esse movimento de forma alguma faz com que Mojica procure afinar as camadas de seu coveiro. Pelo contrário, ele segue mais sádico do que nunca, atualizado para o universo dos filmes de terror pós- O Albergue (2005), ou dos festivais de cinema fantástico que ficaram mais acostumados ao gore. O filme é cheio de fantasias explícitas doentias, à beira da loucura absoluta, inclusive refilmando alguns momentos de seus filmes clássicos com a violência hiper-realista da década passada, como as icônicas orgias canibalistas do inferno.

 

Eu pessoalmente acho revigorante que nosso mestre do horror tenha conseguido um último retorno que, para além do requinte de sátira política e autorreflexão, manteve atualizado seu poder de chocar, perturbar, nos dar mais material para novos pesadelos em berço esplêndido. Se antes o que nos atormentava era a imagem de Zé do Caixão quebrando a quarta parede e enfiando seus dedos com unhas grossas no olho do espectador, agora também podemos muito bem ter insônia lembrando dos policiais torturados com pedaços de metal no porão, berrando alucinados. Mais uma vez, Mojica sintetiza horrores bastante específicos nos devolvendo a certeza de que o inferno do inconsciente perturbado se perpetua, e se existe algo próximo de uma solução para toda essa enfermidade nos ciclos sociais e de poder, é a catarse da ficção pura e simples.

 

 

Vinicius Aranha é estudante de cinema na Universidade Federal Fluminense. Escreve críticas de filmes e outras obras audiovisuais para o blog Conversas de Bandejão. Realizou o documentário Cantareira – Vozes pela Praça, e já trabalhou com edição de som nos curtas Volta pra Casa e Peixe.