Romeu Gomes de Miranda*
“Uma nação que deixa de ensinar, com carinho e disciplina, às suas crianças os hábitos elementares do estudo, sofrerá um enorme prejuízo histórico, pois está desperdiçando boa parte de sua competência potencial.”
As palavras de Antônio Gramsci dizem muito sobre a preocupação central deste texto; a sistemática recusa das elites em possibilitarem uma educação de qualidade para o povo brasileiro.
Nos momentos de ascenso da pressão popular, acabam fazendo concessões; entretanto, mal o movimento reflui, as conquistas viram cinza. Assim tem sido a história da educação pública brasileira. Nesse mesmo sentido afirma Florestan Fernandes:
“A República contou, desde o início, com educadores idealistas, que tentaram remar contra a corrente”.
Incluem-se nesses idealistas mencionados pelo Prof. Florestan, os Pioneiros da Educação Nova, que travaram nos anos vinte e 30 um grande debate visando a modernização da administração, dos conteúdos e dos métodos escolares. Em vários estados esse debate encontrou educadores empunhando a mesma bandeira; aqui no Paraná tivemos o Professor Lisímaco Ferreira da Costa em 1927.
Em 1932, lançaram o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, causando um grande debate entre liberais, católicos, comunistas, socialistas, conservadores, etc. Getúlio Vargas não deixou de tirar uma casquinha. Foi até na abertura do Congresso da ABE – Associação Brasileira de Educação, patrocinadora do Manifesto, dizendo que seu governo não tinha uma política educacional consolidada e entregava aos ” profissionais da Educação”, como denominou os intelectuais da ABE, a tarefa de fornecer-lhe os embasamentos necessários. Em vista dessa simpatia de Getúlio pela ABE, a Constituição de 1934 assimilou muitas das propostas dos “Pioneiros”:
– o ensino primário deveria ser obrigatório e totalmente gratuito;
– tornou obrigatório o concurso público para provimento de cargos no Magistério;
– determinou como incumbência do Estado a fiscalização e a regulamentação das instituições de ensino público e particular;
– determinou dotações orçamentárias para o ensino nas zonas rurais e;
– determinou que a União deveria reservar no mínimo 10% do orçamento anual para a educação e os Estados, 20%.
Embalados por essa onda otimista, o Partido Comunista e setores populares lançaram a Aliança Nacional Libertadora, que ampliava para muito além o “otimismo pedagógico” dos Pioneiros. A ANL conseguiu aglutinar sociais-democratas, anarquistas, liberais-progressistas, trotskistas, stalinistas, tenentistas, etc, numa frente ampla que sustentava um programa anti-imperialista, antifascista, popular e progressista. Propugnava, a ANL, pela elevação cultural das massas, e para tanto reivindicava medidas objetivas em relação ao ensino obrigatório. Outra proposta que mereceu atenção especial da ANL foi a valorização da cultura no interior das massas populares.
Já em 1937, sob o pretexto de combate ao comunismo, o golpe do Estado Novo transformou tudo em letra morta. O debate da Educação saiu da sociedade civil concentrou-se na sociedade política. A esquerda foi perseguida e presa não escapando da polícia estadonovista nem mesmo os expoentes do Manifesto. Paschoal Leme, um dos expoentes do Manifesto, viu sua coleção completa de O Capital entre outros livros ser devorada pelo fogo.
Nos anos 60, novamente a esperança arde no coração dos progressistas, da esquerda de vários matizes, por uma retomada da luta por uma educação popular libertadora. Destacou-se nesse período, o Prof. Paulo Freyre, com seu trabalho de alfabetização de adultos que encantou o Brasil e o mundo. Aqui o movimento estudantil universitário ganhou proeminência e avançou arrastando intelectuais, artistas, secundaristas, professores e trabalhadores.
De novo, a reação não se fez esperar. Veio o golpe de 64 jogando na ilegalidade a mobilização popular, prendendo, torturando e matando centenas e centenas de brasileiros, muitos dos quais até hoje desaparecidos. Paulo Freire foi para o exílio; seu crime brutal, alfabetizar os trabalhadores da cidade e do campo. Até hoje, o Brasil ostenta um número absurdo de analfabetos.
Na fase de elaboração da Constituinte de 1988, defensores de uma escola pública gratuita e de qualidade para todos, organizaram-se em Fóruns Regionais, com a participação de várias entidades como a Associação Nacional de Educação (ANDE), a Central Única dos Trabalhadores, a União Nacional dos Estudantes dentre outras, e passaram a exigir verbas públicas somente para escolas públicas. Este movimento divulgou em 1987 o Manifesto à Nação fazendo uma série de cobranças, estabelecendo como princípio básico a educação como direito de todos e dever do Estado. Era um momento de ascensão do movimento social. Destampava-se a panela de pressão da Ditadura Militar. Por força dessa pressão popular, alguns princípios e direitos foram consagrados na Constituição promulgada em outubro de 1988.
Art. 6°. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (…)
Art. 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Artigo 206º: O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
- pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
- gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
- valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;
- gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
- garantia de padrão de qualidade.
- piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.
Art. 208: O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
- ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria;
- progressiva universalização do ensino médio gratuito;
- atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. (…)
Art. 213: Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas definidas em lei.
São visíveis os avanços; planos de carreira, piso salarial para os profissionais da educação, igualdade de condições para acesso e permanência, atendimento em creches e pré-escolas de zero a seis anos de idade, etc.
Mas a maldição de Sísifo continua prevalecendo. O que ganhou detalhamento, especificidade e organização no corpo da Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases de 1996 ou teve vida curta ou foi pura e simplesmente ignorado, apesar da luta dos educadores do país inteiro. Metas definidas no Plano Nacional de Educação aprovado em 2014 para vigorar até 2024, estão sendo sistematicamente sepultadas pelo golpe promovido contra o governo de Dilma Roussef em 2016. Assumiu Michel Temer. A primeira medida apresentada por ele foi o “ novo regime fiscal”, promulgado na forma de Emenda à Constituição 95/2016. Por essa emenda, nenhum centavo novo do orçamento federal poderá ser investido em Educação, Sáude, Assistência Social, Cultura, trabalho e Renda e demais políticas sociais e econômicas. Assim, a tão sonhada valorização dos professores foi parar na lata de lixo. Aqui no Paraná, só para termos uma ideia, o governo Beto Richa, mesmo tendo recursos para tanto, congelou os salários dos funcionários públicos e o piso dos professores está hoje em $ 1.982,05 por 40 horas de trabalho, 573 reais a menos que o Piso Nacionalmente definido. Há três anos que a data base dos professores vem sendo ignorada.
Não satisfeito, o governo Temer apresentou a antirreforma do Ensino Médio, empobrecendo ainda mais a qualidade do ensino dos demandantes de escola pública no Brasil, os trabalhadores e assalariados. Os mais ricos, matriculados em escolas particulares estão livres dos grilhões dessa reforma e poderão ter, como já há muito vem tendo, um ensino de melhor qualidade. Não entro em detalhes sobre esta tal reforma por não ser aqui o espaço adequado. Mas é um crime que clama aos céus! Para o coordenador da Campanha Nacional pelo direito à Educação, Daniel Cara,
“ O Brasil nunca teve uma política educacional que amplia de modo tão claro as desigualdades socioeconômicas e civis. ”
E mais recentemente, colocando uma pá de cal nas perspectivas de uma educação pública de boa qualidade, no dia 15 de março, o governo editou uma portaria revogando a portaria do MEC 142/2016. Esta portaria tinha como principal objetivo analisar os caminhos para a implementação do CAQi ( Custo Aluno Qualidade-inicial). Além de alijar entidades fora de seu controle como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, a nova portaria – 233/2018 – cria o Comitê Permanente de Avaliação de Custos da Educação Básica que, antes de tudo, tem como objetivo avaliar a viabilidade de implementação dos mecanismos de financiamento da educação, sem qualquer determinação de prazos.
Alguém tem dúvida do resultado emanado por esse Comitê???? Aqui nem se fala em “ qualidade da Educação Básica. Mas não é uma simples mudança de nome. O CAQi, mecanismo criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e encampado pelo Plano Nacional de Educação aprovado em 2014, dava concretude ao que determina a Constituição Federal quando atribui ao governo medidas adequadas para o efetivo aumento da qualidade do ensino público. O CAQi traduzia em valores o quanto o Brasil precisaria investir por aluno ao ano, em cada etapa e modalidade da educação básica pública, visando garantir um padrão mínimo de qualidade do ensino. Para tanto determinava um número adequado de alunos por turma, formação, salários e carreira para os profissionais da educação, instalações, equipamentos e infraestrutura adequados como bibliotecas, laboratórios de ciências, quadras poliesportivas cobertas, materiais didáticos, internet banda larga, etc.
Temer e sua turma foram cirúrgicos. Desfizeram um modelo de “ automóvel” que transportaria a educação brasileira para o século XXI e deram uma buzina na mão de uns serviçais para criarem um automóvel que estacione nossa educação no século 20, se muito.
De novo cito Daniel Caras;
“ As decisões do governo Temer se encaixam perfeitamente,
Submetidas a uma lógica e um objetivo evidente: desconstruir
a Constituição de 1988.
A burguesia que sustentou o golpe tem um objetivo claro quando se trata de Educação popular. Segue fielmente uma máxima de Adam Smith, no seu livro A Riqueza das Nações.
“ Para impedir o definhamento completo da massa operária, resultante da divisão do trabalho, instrução popular obrigatória, mas em doses restritas, homeopáticas. ”
*Romeu Gomes de Miranda Estudou no Colégio Estadual do Paraná, licenciou-se em Letras-Inglês pela PUC-PR, foi professor da Rede Pública Estadual por 35 anos. Estudou com Paulo Freire, Dermeval Saviani, Florestan Fernandes e Maurício Tragtemberg, no curso de Pós Graduação em Filosofia da Educação pela PUC- São Paulo 1983 a 1986. Foi presidente da APP-Sindicato dos Trabalhadores em Educação no Paraná de 1996 a 2002 e presidente do Conselho Estadual de Educação do Paraná de 2006 a 2011.
Referências bibliográficas
- A Educação Negada – Ester Buffa e Paolo Nosella- Cortez Editora- 1991
- História da Educação Brasileira – Maria LuísaS.Ribeiro – Editora Moraes – 1982
- História da Educação- Paulo Ghiraldelli Jr – Cortez Editora – 1990
- Trabalho e Capital Monopolista- Harry Braverman- Zahar Editores- 1981
- Crítica da divisão do trabalho – André Gorz- Martins Fontes-1980
- A Escola de Gramsci – Paolo Nosella – Artes Médicas- 1992