DIALOGANDO COM “MINHA ALMA” DE O RAPPA
Francisco Carlos Rehme
”Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos… Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum, Aquarium, Laudanum e Petibonum…”[1]
Creio que muitos dos leitores devam se lembrar de tal introdução em álbuns de HQ que tratam de um grupo de aldeões gauleses, os tataravôs dos franceses, em sua interminável luta diária para resistir ao império romano. Certo, mas… e no que isso se relaciona com a composição da banda O Rappa? A despeito da distância temporal de meros vinte e dois séculos…muito, ou quase tudo se relaciona!
A fronteira entre o império romano e a “barbárie” (na ótica romana) não se demarcava apenas na oficialidade da língua latina, mas na presença “pacificadora” de catapultas, simplesmente as mais poderosas máquinas de guerra daqueles idos. Uma espécie de míssil nuclear do mundo romano e do medievo. Peça importante da estratégia da Pax romana, as atiradeiras apontadas para os territórios habitados pelos ditos bárbaros (a discussão de barbárie poderia valer outro valioso debate), pareciam vociferar de suas conchas não apenas pesadas pedras ou materiais inflamáveis, mas uma advertência aos gauleses e outros “bárbaros” que pretendessem resistir: “Não ousem! Calem-se e se contentem com a situação”. Ou seja, a benção de paz, tão gentilmente oferecida por César e suas legiões, dependia da não resistência dos povos, ainda que, tais concordância e acomodação não lhes garantisse, para um futuro próximo, o avanço do império latino sobre suas terras. Uma clara imposição de paz, por meio do estandarte do medo. Uma paz oferecida pelo militarmente mais poderoso em nome da força. Paz sem voz. E paz sem voz …não é paz, é medo.
Para quem tem mais de quarenta, se recorda que em sua infância ou juventude esteve engatada o espectro da guerra nuclear. Um ou outro de nós talvez tenha sonhado com um certo botão vermelho sendo apertado por algum ensandecido de plantão no poder – para variar um pouco na história da humanidade – de uma das superpotências (Estados Unidos ou União Soviética). O paradigma da Pax Romana voltava a ser empregado pelos dois protagonistas do teatro da tragicomédia sem graça da Guerra Fria. Tão logo aumentava a quantidade de ogivas atômicas de um dos lados, logo o outro equilibrava o arsenal. Nessa corrida armamentista sem perspectiva de final – exceto se algum muro viesse a ser derrubado -, a ideia milhares de vezes repetida (que é a estratégia para muita baboseira virar verdade, hoje atualizada na forma de replicar postagens) era de que armais-vos uns contra os outros era a garantia de paz… Quanto mais afiados os dentes que um exibia para o outro, mais o outro passaria a respeitá-lo. A paz da Guerra Fria foi tão gentilmente presenteada por soviéticos e estadunidenses ao resto do mundo. Comovidos, não ouvimos vozes na paz. Não era paz, era medo.
Um ciclo que alimentava principalmente a poderosa indústria armamentista, com fortes laços, principalmente financeiros, com os poderes governamentais. (Aliás, eis aí uma indústria que jamais se rendeu às crises.)
A paz sem voz, imposta pelas baionetas encontrava na explanação dos resultados dos estudos científicos, como também nas letras de músicas e na literatura, na arte plástica e no cinema, bem como nas ações tanto de superstars como de pessoas comuns, um afrouxamento na mordaça, uma fresta para os raios de luz do grito. Em outras palavras, em meio à imposição arrogante do poder militarizado das guerras frias ou requentadas e apesar das censuras impostas por lei ou pela mídia amancebada, havia os ousados, os corajosos e até mesmo os que lidavam com inspirada sensibilidade para desarmar desalmados (fardados ou engravatados, do ocidente estrelado ou do rubro oriente). O que pensar, além de se orgulhar, de espíritos e almas armadas de inventividade e sensatez de jovens hippies e de outras tribos ornando de flores as pontas das baionetas dos soldados que protegiam o Pentágono no final dos anos sessenta… A voz da paz, em gestos silenciosamente sonoros. Há quem garanta até hoje que num determinado dia esses (doces) bárbaros fizeram o Pentágono levitar.
Mas, afinal, paz, de fato, se impõe?
A (minha, sua) alma se inquieta e se arma (há ótimas formas de se armar que não dependem de projéteis ou lâminas de aço) contra a velha forma romana, espartana, dos conquistadores ibéricos e, por fim, de um modo geral, dos que expandiram seus domínios e riquezas por meio da opressão. A paz da mordaça, essa é hipócrita, e em terras brasilianas tão bem a conhecemos, apesar da relativamente tenra idade da nação. Isso é a vida quem diz, a quem, de vez em quando, fala com a vida. É a vida quem conta, em sua linguagem por vezes tão dolorosa e sofrida, outras vezes.
Como também é pouco legítima e duradoura a sensação de paz no interior de bastiões e fortificações, sejam em cidades medievais amuradas ou em condomínios horizontais nas metrópoles atuais. Se a neblina que encobre a segurança privada, motorizada e alerta 24 horas, as cercas elétricas e as grades do condomínio confundem a percepção de segurança e de quem está livre ou preso, se é o que está fora ou dentro das grades. Nesse caso (nesse caos, se preferir), a paz que tanto se preza está, perceptivelmente, com a voz trôpega, meio engasgada, insegura.
As grades do condomínio são para trazer proteção …Tal segmento na composição de O Rappa instantaneamente me conectou a uma estrofe da música de uma banda curitibana cujo nome, Diógenes, homenageava o filósofo da Grécia Clássica:
“Colocaram grades nas casas da rua Brasilino Moura. Era um dos últimos resquícios de civilização. Na cidade sorriso, social, cultural, ecológica, do natal, muita gente anda com muito medo de ladrão.”[2]
Via e admirava, em minha juventude, essas casas da rua Brasilino Moura, no bairro do Ahu, na região norte de Curitiba. Eram três ou quatro, se não me engano, compartilhando um mesmo extenso terreno, cujo jardim ora terminava diretamente na calçada da rua, ora dela se separava por uma cerca de menos de meio metro de altura. Resquícios de civilização exterminados pelas pontas das grades que aprisionaram a quem?
Talvez a paz que não se quer, essa paz sem voz.
[1] Segmento de abertura de cada aventura de Asterix, o gaulês, uma das coleções de história em quadrinhos mais lidas no mundo.
[2] DIÓGENES Gárgulas – terceira faixa do CD “Carro do Sonho”(2007), produção independente.