Desmonte da saúde

Lara Cubis*

Não há como entender os impactos do golpe de 2016 no SUS – Sistema Único de Saúde sem compreender a sua importância e grandiosidade para o país.

Em 2018 o SUS – Sistema Único de Saúde –  completa 30 anos. Ele nasceu com a promulgação da Constituição de 1988 e foi fruto de muitos anos de lutas populares pela Reforma Sanitária. Talvez o mais importante para toda a população brasileira fosse saber que o SUS é universal, ou seja, é para/por/de todos. Nunca antes o Brasil teve um sistema público de saúde universal. Outro ponto essencial para compreender a sua importância é a garantia da participação popular na gestão do SUS. É obrigatória a qualquer instância do SUS (federal, estadual ou municipal) que haja Conselhos de Saúde deliberativos formados em 50% por usuários.

É primordial conhecer o SUS. É preciso entender que não é possível viver no Brasil sem o SUS. Todos os brasileiros, sem nenhuma exceção, usam o SUS todos os dias, várias vezes ao dia. O SUS está na água encanada, em qualquer cosmético ou medicamento que usamos, nas comidas que compramos, no supermercado, na feira, nos restaurantes e lanchonetes, nos hospitais públicos ou privados, entre tantas outras coisas. A ideia de que o SUS se restringe a assistência à saúde, como consultas e cirurgias, é extremamente equivocada. E provavelmente remeta a uma época recente em que saúde pública era para “pobres, desvalidos”. O SUS no imaginário comum é o herdeiro de sistemas de saúde públicos ineficientes. O SUS não é um substituto do INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social, este era restrito somente a trabalhadores com carteira assinada, aos que contribuíam à previdência social e atuavam com a lógica de cuidar da doença e não com a promoção de saúde.

Diante disso, é claro o papel que o SUS tem no exercício de cidadania. Saúde é um direito. Direito de todos e não mais restrito a uma parcela da população. O Brasil passou a contar com um sistema público de saúde nos moldes de países como Inglaterra, Canadá, Portugal e Cuba.

No entanto o SUS não nasceu pronto. O sistema descrito na constituição nunca se efetivou em toda sua amplitude. O SUS veio se consolidando ao longo dessas décadas apesar dos constantes ataques. Não se constrói um sistema de saúde desta magnitude de um dia para o outro. Uma das principais lutas para consolidação do sistema era combater o subfinanciamento. O valor destinado ao SUS sempre foi muito inferior àquele aplicado por outros países com sistemas públicos de saúde. O SUS tem financiamento tripartite, isto é, pelos municípios, estados e governo federal. Mesmo a regulamentação dos valores a serem aplicados obrigatoriamente pelos entes federativos teve idas e vindas nas promulgações da Emenda Constitucional – EC 29/2000, Lei 141/2012 e depois o início do retrocesso pela EC 86. A garantia de aplicação de recursos mínimos previa o aumento gradual de investimento. A despeito disto, que era uma pauta fundamental para sustentação financeira ao SUS, outras fontes de financiamento vinham sendo discutidas e pleiteadas. A destinação de parte dos recursos da exploração do pré-sal, o ressarcimento dos planos de saúde ao SUS de custos do atendimento de seus usuários no sistema público e até mesmo a discussão da isenção fiscal em imposto de renda aos contribuintes que têm gastos em assistência suplementar de saúde. Analisando que o gasto global de brasileiros com assistência privada à saúde é maior que o valor investido pelo governo com o SUS, fica fácil entender o impacto na arrecadação federal com a isenção fiscal dada a gastos com assistência suplementar à saúde (planos e assistência privada). As tais despesas dedutíveis no ajuste anual de imposto de renda. O governo acaba subsidiando e fomentando a assistência privada.

O retrocesso nas políticas públicas de saúde após o golpe de 2016 é enorme e vem se dando em diversas áreas e de diversas formas. Entre elas pode-se destacar:

O retrocesso no financiamento

No mundo inteiro se reconhece que os gastos com ações e serviços de saúde são de natureza crescente. Ano após ano a fatia de recursos necessária para o sistema de saúde (seja público ou privado) abocanha percentuais maiores do PIB. Isto ocorre por conta de fatores como o crescimento vegetativo da população geral, o aumento da expectativa de vida, a agregação de novas tecnologias e medicamentos, crescimento de doenças crônico-degenerativas e a deterioração das condições ambientais. Este incremento era previsto na legislação do SUS. Com o advento do golpe, se deu a aprovação da EC 95, que determina o congelamento de gastos públicos nos próximos 20 anos. Ela afeta principalmente áreas essenciais como saúde e educação, determinando que não haverá incremento financeiro (ganho real) em recursos, apenas reposição inflacionária. Se a questão do subfinanciamento sempre foi exaustivamente pautada, agora ele significa um estrangulamento irreversível do sistema, seu sucateamento.

Além de congelar recursos (e assim decretar a falência do SUS a curto prazo) houve também mudanças no modelo de repasse financeiro do governo federal a estados e municípios, que  foi revisto com muitas críticas e desconsideração da participação popular através dos conselhos de saúde e das entidades de saúde coletiva. O repasse dos recursos do SUS é feito (de acordo com a Constituição e Lei Orgânica da Saúde) via Fundo de Saúde, anteriormente em seis blocos de financiamento: Atenção Básica, média e alta complexidade, gestão, Vigilância em Saúde, assistência farmacêutica e investimento. Essa segmentação preservava a aplicação de recursos municipais e estaduais nas diversas áreas do SUS. Por exemplo, o dinheiro destinado a ações de vigilância sanitária não podia ser redirecionado a pagamento de consultas especializadas. No entanto o governo pós golpe alterou a forma de repasse unificando os blocos para apenas dois. Isto significa que fica a cargo do gestor municipal/estadual a aplicação dos recursos e infelizmente a tendência é que eles sejam utilizados em áreas com maior visibilidade política.

O retrocesso na Atenção Básica

Nos sistemas públicos de saúde, a atenção primária/básica à saúde é essencial e o modelo preconizado mundialmente é de saúde da família, que constitui-se pelo atendimento de profissionais de saúde inseridos e vinculados à comunidade em que atuam. A Estratégia de Saúde da Família, operada de forma adequada, garante a resolutividade de mais de 80% das demandas de saúde da população. Este era o modelo de atendimento preconizado no SUS, amplamente contemplado na Política Nacional de Atenção Básica – PNAB, inclusive com incentivos financeiros para os municípios para sua implantação e manutenção. No entanto, no fim de 2017 foi publicada a revisão da PNAB. Não houve discussão com os diversos setores da sociedade. A despeito da realização de consulta pública, o texto foi publicado sem considerar os apontamentos de diversas entidades e do Conselho Nacional de Saúde. A revisão foi criticada por enfraquecer o modelo de atenção de Saúde da Família através da redução do financiamento de suas equipes, flexibilizar o horário dos profissionais que as compõem, flexibilizar a presença de agentes comunitários de saúde e de equipe de saúde bucal fragilizando o viés multiprofissional e a integralidade da assistência.

O retrocesso da Assistência Farmacêutica

Outra área que sofreu importante impacto foi a de Assistência Farmacêutica através da redução do Programa Farmácia Popular, que consistia na distribuição gratuita de medicamentos à população em unidades próprias ou farmácias privadas credenciadas. Em 2017 houve o fechamento das unidades próprias, o que privilegia o setor privado e gera prejuízos a população, restringindo acesso a medicamentos principalmente em áreas de vulnerabilidade social.

O retrocesso no controle de agrotóxicos

O papel da regulação e monitoramento de agrotóxicos pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária encontra-se ameaçada pela tramitação dos Projetos de Lei 1687/2015 e 3200/15 na Câmara Federal. Talvez essa questão, o risco de contaminação de alimentos por agrotóxicos, seja capaz de sensibilizar uma parte da população sobre como esse enfraquecimento do SUS pode afetar a todos. Aquela parte da população que possui plano privado de saúde e ainda cultiva em seu imaginário que o SUS é um sistema pobre para pobres.

O retrocesso na saúde complementar

Mais que tudo, a contra-reforma neoliberal não afeta só os SUS. É um engano acreditar que usuários que têm plano de saúde estão a salvo dos ataques. O Ministério da Saúde e as agências regulatórias vinculadas a ele como a ANS – Agência Nacional de Saúde, responsável por regulamentar os planos de saúde em termos de cobertura e reajustes inclusive, têm direcionado ações que restringem gravemente os direitos de seus usuários. Como restrição de cobertura e implantação de planos populares, por exemplo.

O neoliberalismo categoriza a saúde como um bem de consumo (produto ou serviço que se adquire). Diante do fato de que operadoras de saúde sempre foram grandes doadoras de campanhas políticas, que o montante do orçamento público destinado ao Ministério da Saúde sempre foi um dos mais significativos, que os planos de saúde privados movimentam bilhões de reais ao ano no Brasil, é primordial nos perguntarmos a quem interessa o desmonte do SUS. Por que as grandes redes de comunicação fazem tantas reportagens apontando as falhas e dificuldades do sistema? Filas em hospitais públicos, mortes por desassistência, entre outras.

Os sistemas públicos de saúde em outros países sempre sofreram ataques, pressões pela lógica do mercado, mas se mantêm e fortalecem pela luta das suas populações em seu favor. Cabe a cada cidadão brasileiro a defesa do SUS. A luta por um sistema público de saúde forte e consistente que possa atender a todos.

*Lara Cubis Formada em Odontologia pela UFPR, especialista em Gestão Clínica nas Regiões de Saúde pelo Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa.

 

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