“Democracia em Vertigem”, arte e política: Construção de memória e a representação paradoxal no cinema brasileiro.
Guilherme Heleno*
“Vejo um projeto histórico preocupado em lançar uma ponte entre o agora e o antes, para que o antes não fique sem futuro e o agora não fique sem passado. ”
Jean Claude Bernardet
O primeiro plano do filme mostra a visão de dentro de um carro à noite. Do lado de fora, uma multidão caótica de jornalistas e fotógrafos. No início do plano o som preserva o som gravado pela câmera, um tipo de crime de edição, que gera um som conhecido por todos e que aqui funciona como recurso de linguagem, que denuncia ao espectador que existe alguém ali operando aquela câmera, balançando-a para os lados, confusa, como se tentasse encontrar em meio ao caos o que ver. Essas escolhas formais estão nos conectando com a primeira personagem, a própria diretora, Petra Costa. Logo depois entra uma voz, dissociada de seu emissor, que diz “não havia expectativa de uma prisão assim tão rápida. ” Assim abre-se a apresentação de todos os demais protagonistas: Lula, Dilma e a representação de um povo segmentado entre direita e esquerda. O prólogo do filme, adianta uma construção narrativa que irá ordenar fragmentos de uma história, que está a se perder no oceano de informações, na tentativa de caminhar, como em um labirinto ou na jornada do herói, até o coração, que tanto irradia quanto canaliza, de uma situação política que massacrou os sonhos de um projeto de sociedade.
O prólogo do filme, que antecede a cartela com o título, termina com a primeira narração, sobreposta a planos monumentais do Palácio do Planalto. Este pequeno trecho de narração opera individualmente da mesma forma que a construção narrativa de todo o filme, encadeando fatos cronologicamente em torno de uma construção dialética, que não só não esconde como coloca a subjetividade de quem narra em destaque.
Nos dez minutos seguintes ao título, o filme traça uma trajetória do projeto político da esquerda, da militância massacrada pela ditadura militar em uma crescente ascensão, passando pela reabertura democrática e culminando na gloriosa primeira eleição de Lula. Todo esse processo de reconstrução histórica, através de vestígios, é traçado por meio das narrativas da família de Petra. São as histórias e imagens sobre a militância de seus pais que nos guiam sobre a luta pela democracia, é uma foto da pessoa a qual seu nome é dedicado, que foi assassinada (Pedro Pomar) que nos lembra da repressão violenta, seu primeiro voto marca a primeira eleição de Lula. Em concordância a isto, a frase motriz da argumentação se inicia com a primeira pessoa do singular em uma amarração simbólica da dimensão mais pessoal, seu tempo de vida, com a própria ideia de democracia: “Eu e a democracia brasileira temos quase a mesma idade (…)” Há aqui uma mutualidade entre a argumentação sobre um tema e a subjetividade em torno deste tema.
Se considerarmos que este filme se debruça sobre uma série de processos sociopolíticos, que envolvem uma mudança cultural na população, os trâmites e conflitos de uma extensa classe política e as ações de alguns determinados indivíduos que afetam o coletivo, seria possível se considerar ambígua a escolha por uma narração subjetivada. Podemos comparar a outros filmes com projetos semelhantes como “Viramundo” (Geraldo Sarno 1965.) Este filme, através de entrevistas com trabalhadores, imersas em uma linguagem amarrada a uma narração, traça dissertação sobre quais aspectos culturais fizeram possível o golpe de 64 – em um momento que se acreditava em uma classe trabalhadora politizada e organizada – tal como alguns momentos de “democracia em vertigem”, que se dedica à insurreição de uma nova direita que respalda o impeachment de Dilma e todos os acontecimentos políticos posteriores. No entanto, a diferença desses filmes é como a forma lida com o real. No filme de Geraldo Sarno, as entrevistas são construídas, e ordenadas pela montagem, a serviço de uma dissertação narrativa, que se apoia neste real que construiu para sustentar uma argumentação, que, através da elevada coesão interna, não abre espaço para ser questionada. A voz no filme é a voz do saber. A narração no filme de Petra Costa também possui um alto nível de coesão, com fatos que se ordenam em causaóefeito e geram determinadas conclusões. Porém, há a presença do “eu” que, ao indicar a existência de uma perspectiva, permeada por vivências, limitações e afetos, elimina a possibilidade de verdade.
As implicações ético-estéticas que recaem sobre os documentaristas, frente aos seus objetos, são o desdobramento do paradoxo da relação entre arte e política e, obviamente, protagonizam as principais questões do cinema brasileiro. Este, durante o século XX, principalmente após a década de 60, coloca a arte como veículo de perturbação da ordem estabelecida, e, portanto, instrumento político, e o artista intelectual, sensível às aspirações latentes do povo, com o papel de engatilhador da consciência social. (BERNARDET, 2013) Foi dentro deste preceito que o cinema novo construiu seu projeto estético. Podemos tomar como exemplo o filme “Maioria Absoluta” (Leon Hirszman, 1964) que pretende tensionar relações sociais em torno da questão do analfabetismo, dissertar sobre os problemas que o rodeia e direcionar conclusões de uma solução, ligada à questão do voto. O filme opera na criação do contraste de classes, evidenciando uma classe média beneficiada pela marginalização de uma população analfabeta. Há neste filme um primeiro prolongamento das questões em torno da arte e política, que diz respeito ao sujeito realizador frente ao outro de classe – questão que durante os últimos anos foi reapropriada pelas militâncias das questões do indivíduo a partir da ideia de “local de fala. ” A narração possui o mesmo caráter de voz do saber que de “Viramundo, ” porém perde a objetividade ao usar a primeira pessoa, em frases como “irmãos nossos” para se referir aos analfabetos. Essa aproximação, se soma a outras operações formais a fim de validar a ação do narrador como mediador principal desta discussão. Há um momento no filme que a montagem apresenta de maneira clara a busca pela legitimação do papel do narrador: A voz over diz, depois de uma série de posicionamentos e informações já terem sido proferidos sobre o assunto: “Agora passemos a palavra para os analfabetos, são eles a maioria absoluta” e o plano que se segue apresenta um homem, portador de alguma doença que o impede de falar, e dele só se ouve gagueira. A segunda questão que se apresenta, se relaciona a crença da arte como uma ação transformadora do sensível, que toca o espectador a fim de gerar uma ação. Logo no início de “Maioria absoluta” a narração alerta que irá colher depoimentos de pessoas que vivenciam de diferentes formas o problema em questão. Este aviso se desdobra em uma série de depoimentos de membros da classe média, que serão contrastados durante o filme, enfatizando seus discursos marcados por generalizações simplistas e preconceituosas. O filme constrói com o espectador, em especial o espectador de classe média, uma troca afetiva, em torno do sentimento de culpa. “Democracia em vertigem” também toca no outro de classe, já que se debruça, de certa forma, sobre todas – e caminha também na busca da voz do povo. Também tangencia a oposição de recortes do mundo sensível. No entanto a presença do “eu” no filme pretende revelar a que classe o realizador pertence, elucidar as limitações de sua perspectiva e, ao não negar o dissenso (RANCIERE, 1996) se eximir de uma ação – ou ataque – afetiva enquanto ação transformadora. Ou seja, ao se colocar no filme, Petra Costa assume que a forma fílmica parte da posição de um indivíduo e, portanto, um recorte do mundo sensível específico, sendo este o de um determinado segmento da esquerda brasileira. Desta forma, as circulações de afeto entre espectador e a obra caminham para outros lugares que não o de engendrar consciências específicas em torno de determinados temas. Isto torna-se altamente relevante pelo próprio contexto a qual o filme se dedica, que tem como pilar a polarização de duas perspectivas políticas em conflito.
A perspectiva do lugar do cineasta neste filme é uma herança de transformações no pensamento sociológico, que no século passado culminaram em projetos de cinema como o de Eduardo Coutinho em “Cabra marcado para morrer. ” O filme feito em 84 busca os vestígios que existem nesse tempo de um outro filme, de mesmo nome, que estava sendo gravado em 64. Este era pautado na construção ficcional em torno da vida de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Galileia, assassinado pelas forças oligárquicas, da qual os registros estavam a se apagar. Não havia nem se quer uma fotografia de João Pedro vivo. O filme usava como atores os próprios personagens da história, com ênfase em Elizabeth Teixeira, companheira de João Pedro nas atividades políticas e esposa. O filme teve sua filmagem interrompida pelas forças do governo militar, que se esforçaram no apagamento do filme e na perseguição dos envolvidos. O filme de 84 pretende-se uma ponte entre os três tempos: O da luta por um projeto de sociedade – anterior ao golpe, – o do tempo das gravações do primeiro filme e o ano de 84. É este caráter que é o maior ponto de semelhança entre estes projetos, pois nos dois filmes a narrativa têm a ruptura como gatilho e a decadência como efeito.
O filme dentro do filme, em “Cabra marcado para morrer” puxa para a narrativa os realizadores como núcleo de personagens, centrados na imagem de Eduardo Coutinho. Desta forma, muito diferente do “Cabra” anterior, o autor revela o processo de mediação do espectador com o real. Assim como em “Democracia em vertigem” também há a presença do “eu” na narração e de corpo inteiro na imagem, algo absolutamente incomum no documentário nos anos 80. No entanto, a presença de Coutinho no filme caminha em uma direção menos subjetivante que a de Petra Costa e seu filme, pois estimula a confidência do processo fílmico e o uso do encontro entre realizador e personagem – tanto em ocasião da realização do primeiro filme quanto do último – enquanto ferramenta de mediação do espectador com o objeto a qual linguagem se debruça.
Contudo, ambos os filmes se lançam em buscas minuciosas em torno de fragmentos – possuídos por fantasmagorias e ausências – de projetos de sociedades, dizimados por rupturas abertas pelos poderes oligárquicos totalitários e revelando a violência e as perdas destes processos. O importante aqui é, primeiro, impulsionar a circulação da memória em torno dos processos históricos. Também se dedicam, os dois filmes, às narrativas em torno do dilaceramento de núcleos familiares, da vida na clandestinidade e em mostrar, com ênfase visual, a violência do Estado. Exemplos marcantes desta intersecção entre os filmes é a presença de fotografias fixas de pessoas assassinadas pela ditadura militar, sendo no filme de Coutinho a imagem de João Pedro (que aparece 4 vezes durante o filme) e no de Petra Costa a de Pedro Pomar. Ambas, possuem grande força plástica e simbólica, na construção linguística do filme, e são até bem semelhantes entre si. Contudo, “Democracia em Vertigem” dilui e ameniza enquanto “Cabra marcado para morrer” assume o caráter fragmentário de sua matéria prima, mesmo que ambos utilizem materiais provindos de diversos contextos. É aqui que se abre a principal diferença entre os regimes estéticos desses filmes, pois o segundo, muito diferente do primeiro, não pretende ordenar fatos cronologicamente e criar encadeamentos de causa efeito, construindo uma narrativa histórica. A diferença está no controle que se toma na relação semântica e afetiva do espectador com a obra. Esta diferença fica clara se compararmos a forma como os dois filmes tratam cenas de caráter semelhante: nos dois filmes, muito perto do final, há lideranças políticas da esquerda – Elizabeth em um e Lula em outro – dissertando sobre o futuro, dando ideia da continuidade da luta e do projeto político. A fala de Elizabeth é dita na despedida desses dois núcleos principais de personagem. O plano é gravado de dentro do carro, Coutinho e Elizabeth estão em quadro, concedendo à mise-en-scene uma enorme força simbólica. Ela termina sua fala dizendo “a luta continua. ” Ressalta-se o poder emotivo que esta cena poderia ter, caso fosse o último plano do filme. Ao invés disso, há a entrada de um plano mostrando outros personagens enquanto a narração nos conta sobre o falecimento de um deles. Enquanto em “Cabra” a forma não se preocupa em diluir o apelo emocional, desta e de outras cenas, em “Democracia em vertigem” os elementos da forma operam para o inverso.
Logo depois que o Senado aprova o impeachment de Dilma, na progressão narrativa do filme de Petra Costa, a imagem em tela é um passeio pela sede do Senado, no palácio do congresso. Enquanto a imagem focaliza um homem com um crachá construindo com as mãos, no tapete azul do Senado, a bandeira brasileira, a face dissertativa da narração – que auxiliou no encadeamento e organização da absurda quantidade de fatos tirados a partir dos registros do nosso mundo concreto – termina sua conclusão: “É natural discordar sobre as questões legais que determinaram todo esse processo político, o que me parece inaceitável é que um lado da disputa tenha o poder de ligar e desligar as instituições, de acordo com seus próprios interesses.” Aqui, faltando ainda vinte minutos para o final, há um encerramento de parte do discurso narrativo do filme. A partir daqui é o eu lírico – provindo da presença do autor no filme e que dividiu espaço de maneira não heterogênea com a voz narrativa – que, crescentemente terá maior participação pela coordenação da forma, assim como o era no início do filme.
Na narrativa clássica, inícios e finais costumam possuir um caráter aerófano, dispersivo em relação a concretude das partes centrais, dominadas pelas demandas em torno da trajetória do herói até a glória. Dentro dessas oscilações das propriedades da narrativa, são os inícios e fins os momentos mais oniscientes, autoconscientes e comunicativos. (BORDWELL, 2005) Desta forma, nos debruçando sobre a narrativa, enquanto estrutura, podemos dividir o filme em 6 atos: um prólogo, que se situa no tempo do dia da prisão de Lula, anterior aos créditos e termina com imagens simbólicas do Palácio da Alvorada; um segundo, na qual o projeto político de esquerda ascende, culminando na eleição de Lula, que este é o protagonista; um terceiro, iniciado aos quinze minutos de filme, que começa com a eleição de Dilma e termina com a votação na câmara dos deputados, em que esta é protagonista; um quarto, iniciado no meio do filme, em que os processos de Lula e Dilma são finalizados e Bolsonaro ascende como um personagem relevante; um quinto, que retorna e aprofunda o dia da prisão de Lula e termina com imagens de manifestações em comemoração à eleição de Bolsonaro; e um epílogo. Em todas as fases, obviamente, o protagonismo da narradora está presente. “Democracia em vertigem” aponta com sua forma não só para a narrativa clássica da jornada do herói, mas para maneiras mais hegemônicas, das quais a narrativa clássica deriva. O modelo épico parnasiano-realista, por exemplo, constitui em si mesmo a macroestrutura da representação da narrativa histórica do homem ocidental, inclinando-se para o recorte do real e análise do detalhe. Aqui o caráter subjetivo faz com que a experiência lírica parta da reação do eu-lírico ao fragmento histórico, se realizando no âmbito da imagem de mundo. Assim, a narrativa épica pode-se construir a partir desta visão de mundo, pois o recorte causado pela subjetividade no fragmento histórico está vinculado a cadeia factual da realidade objetiva, e é este mesmo fragmento histórico que constitui a proposição da realidade pressuposta que desencadeia a reação do eu-lírico. (SILVA, Anazildo Vasconcelos da; RAMALHO. 2007) O modelo épico, assim como os modelos de operação que compõem as várias ramificações de descendentes, da qual o barroco faz parte, precisam ser entendidos não como um estilo artístico, mas como um fenômeno cultural, que muda e ressurge, como um impulso criativo, não apenas reflexo especular do mundo exterior à realização das obras mas: “trata-se de um tipo de reflexo, no sentido de manifestação indireta de uma tensão, capaz de propiciar o movimento, a criação, o reaproveitamento, a multiplicação e a disseminação dessas formas: trata-se de refração, capaz de desviar e enviar imagens artísticas e culturais, modificando-as.” (FONSECA 2004)
O cinema enquanto perturbação da ordem estabelecida, da contraconquista, e, portanto, político por excelência, é a base da cinematografia de Glauber Rocha, principal nome do cinema novo. É possível se esperar, de um projeto político estético que se pretende perturbador, uma necessidade de caminhar na direção contrária das estruturas formais hegemônicas. Assim como outras escolas artísticas que caminhavam para a insurgência, o que se encontra na verdade é um uso formal e estratégico da linguagem hegemônica. “Terra em transe” (1997) conhecido filme de Glauber Rocha é construído a partir do uso de uma série de operações barrocas muito marcantes. A narrativa é uma construção histórica ficcional que usa as relações pessoais de membros de uma classe política para estabelecer o contexto histórico, de um país fictício, que permite que um golpe de estado seja aplicado. Assim como em “Democracia em vertigem” existe uma estrutura narrativa associada à tradição épica, que cria uma estrutura cíclica de repetição simétrica: O filme se inicia com o momento em que o golpe ocorre, e depois de várias cenas de caráter alegórico e tempo impreciso, um pouco após o décimo minuto do filme, a narrativa se inicia, de um tempo bastante anterior ao golpe. A progressão narrativa está atrelada ao protagonista, que é a ponte de conexão entre os personagens e a força motriz. E não por acaso, ele não é um líder político e sim um artista, um poeta, com uma ambição latente de sair do universo lírico da poesia, inerte, e usar suas ferramentas em ações de transformação. Depois de uma narrativa atordoada e marcada por rupturas, faltando seis minutos para o fim do filme, a cena inicial é retomada e o golpe é aplicado e concretizado. A estratégia de repetir cenas e planos do início, porém, ir além no tempo se repete também em “Democracia em Vertigem”, não só com a cena que antecede a prisão do Lula, mas também com o plano final.
Após o sexto minuto inicial de “Terra em Transe”, que se concentra no processo de golpe a ser aplicado, existe uma mudança significativa na forma, em especial na relação que o filme terá com as palavras. Neste momento, o protagonista e seu par romântico estão no carro discutindo sobre os acontecimentos políticos, como farão o filme todo, todas as palavras proferidas, apesar da linguagem de encenação exagerada, permaneciam com os pés em uma concretude. Então Sara diz “Não precisamos de heróis, ” a imagem sai de seus rostos e se volta para a estrada, mostrando o carro avançar em direção a carros policiais – aparentemente policiais de trânsito. É como se uma vertigem tomasse conta das palavras a sair pela boca do protagonista, a contaminar seu corpo que cambaleia, e da própria forma fílmica. Ele responde “é preciso resistir, resistir e eu preciso cantar. ” As palavras proferidas a partir daqui têm uma outra conotação, perdendo qualquer possibilidade naturalista, tomadas pelo lirismo e em um fluxo incessante de palavras que irá se alastrar pelo filme, comprimindo até uma certa parte do filme e depois expandindo radicalmente. O primeiro plano, após esta cena, mostra o protagonista agonizando em dunas, armado e após um pequeno tempo aparecem, com uma fonte muito diferente da usada nas cartelas do filme, as palavras “não conseguiu firmar o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura (…) É bastante adiáfano ao espectador, principalmente neste momento tão inicial do filme, o tipo de operações de significação que se estabelecem a partir destas palavras. Há um primeiro sistema que se estabelece das palavras cerceando e ressignificando o sentido da imagem a que elas se sobrepõem, em uma construção dialética em que o espectador é aprisionado a ver os signos das duas linguagens juntos, como uma legenda, e neste caso, como epitáfio, pois resume a trajetória heroica. Os elementos juntos, neste plano, significam na composição da antítese da arte e política: Um herói artista e suas duas instâncias inconciliáveis: “A alma pura” com que a arte se coloca enquanto transformadora do contexto em que se insere, e o contexto, o “cosmo sangrento” do qual o artista será vítima, narrador e construtor. O diálogo colocado entre metáforas visuais e verbais, através de emblemas, gera aqui umas das formas mais canônicas de alegoria, que se apresenta como um dos principais recursos estéticos do barroco.
“Walter Benjamin, em A origem do drama barroco alemão, soube compreender a alegoria barroca tanto em seu sentido restrito, quanto em sua noção ampliada, em que se percebe que a visão alegórica, tomando uma coisa por outra, faz emergir o outro da história. O que foi reprimido vem à tona graças ao deslocamento propiciado pela alegoria. O seu desvelamento ocorre pela contrafação que se dá a conhecer: algo está velado ali e, no entanto, se mostra. A alegoria dá a medida do artificial e do arbitrário da relação entre signo e objeto, entre significante e significado, ao contrário do símbolo, compreendido pelos românticos como forma de expressão em que tais relações seriam orgânicas, imediatas e transparentes. Já a alegoria pode ser identificada ao barroco justamente por seu caráter artificioso, enigmático, a sua obscuridade e ambiguidade” (FONSECA, Jair Tadeu da 2004)
Em “Terra em transe” e em “Democracia em Vertigem” a subjetividade do narrador enquanto pessoa – acometida por afetos o transforma em agente político a partir do momento em que esta subjetividade passa a mediar com seus espectadores o real. A alegoria nasce naturalmente como resultado deste paradoxo: No primeiro, a trajetória do casal, suas idas e vindas, guiam, de forma alegórica o afeto do espectador para com a trajetória heroica. É importante frisar que esta é uma operação bastante marcante do cinema clássico hollywoodiano, no entanto, aqui as duas esferas da vida do herói são muito mais homogêneas. Já em “Democracia em Vertigem” é a relação da autora que constrói a alegoria que significa o contexto político. Ambos os filmes foram feitos em momentos de ruptura, como reação a uma situação política que massacrou um projeto de sociedade. E ambos utilizam de circulações estéticas hegemônicas que, para construir narrativas históricas, estimulam a subjetividade tornando as obras, principalmente, um registro histórico do afeto. Com toda a ambiguidade de obscuridade e claridade que a subjetivação pode causar. A diferença que se pode ver nos dois filmes é que enquanto o herói de “Terra em Transe” se materializa na imagem do artista, em “Democracia em Vertigem” a artista é alegórica, mas não chega a ser heroína. Porque talvez o herói deste filme seja o próprio projeto de sociedade.
A presença da palavra no plano já citado, o duplo cerceamento da palavra e da imagem não explica a presença desta operação em um filme em que a palavra possui tantos agentes, iniciando por um narrador épico-lírico. No plano seguinte ao citado anteriormente, o futuro ditador, em um carro em movimento, ao ar livre, segura uma bandeira completamente negra e uma cruz nas mãos. Nos planos que se seguem, recheados de elementos simbólicos, o personagem, com estes objetos em mãos, caminha por praias vazias, participa de rituais e por fim sobe as escadas de um prédio classista. Ao terminar a subida, a música cessa e ele passa a proferir um oceano de palavras, em tom de discurso. Daqui em diante os personagens parecem acometidos por uma obsessão compulsiva pela palavra, como uma doença, um complexo de polônio, provinda da impotência em relação ao mundo em que se insere. Desta forma o fluxo de palavras, oralizadas tanto na voz dos personagens, como narrador e outras vozes que se sobrepõem na paisagem sonora, será tão intenso que as palavras são tiradas, em parte, de seu lugar de símbolo e retornadas a um lugar de som, que compõe o sentido pela entonação, pela duração e pelo conjunto. Aqui a palavra é um elemento estético. Esta operação tem seu ápice no final, quando os discursos do presidente e seu conspirador são sobrepostos em uma frenética montagem paralela, que ao mesmo tempo que contrasta os discursos, os unifica, de forma que parecem continuidade um do outro. Esta operação tem fim nesta mesma escada em que se iniciou, quando a barulhenta paisagem sonora se torna silenciosa abruptamente e o ditador revela suas verdadeiras intenções. O que acontece com as palavras neste filme prevê o que ocorreria na pós-modernidade com a cultura: o fluxo excessivo de informações reduz o valor simbólico dos objetos fazendo com os mesmos percam confiabilidade. Talvez possamos ler “Terra em Transe” como uma antecipação ficcional do mundo concreto de “Democracia em Vertigem, ” no qual um fluxo de informações incontrolável esvazie e tire a confiabilidade das informações ao mesmo tempo que deposita sobre qualquer uma um enorme valor. Estes processos fizeram do Brasil um país sem passado. ´É no caminho do resgate e do registro do que fomos, para que possamos ser algo no futuro, que “Cabra Marcado pra Morrer”, “Terra em Transe”, “Democracia em Vertigem” trabalham.
No livro “Análise do filme” os autores, Jacques Aumont e Michel Marie, propõem uma metodologia de análise cinematográfica que se debruce sobre as operações das estruturas componentes das obras como autônomas em seus resultados, usando como metodologias ferramentas como a comparação. Estão, portanto, excluídas desse tipo de análise o confronto que as obras podem apresentar em relação a outras manifestações culturais como implicações em torno de seus realizadores, espectatorialidade, significação que a obra possa ter no contexto sociopolítico do país, pois seria este outro tipo de análise. Portanto, em questão de leitura cinematográfica não importa – ou não existe – ingenuidade de criação nem planos de motivação extrínseca. Se não opera no filme então não faz parte da obra. Desta forma, às críticas que pipocam sobre o filme a que este texto se debruça, provindas de ambos os lados da rachadura, que apontam para a ambiguidade, não poderiam estar mais corretas, no entanto o erro está ao encarar isto como falha ou descuido e não como um fato de caráter objetivo. Se a subjetividade presente em “Democracia em vertigem” tensiona os conflitos entre arte e política é a estética que a torna coesa, pois não nega as implicações da separação de uma vida pública para a privada, indivíduo e símbolo, afeto e ideia, arte e política, impossíveis na realidade material. Gerando desta forma cenas como a já citada do discurso de Lula, em que ele propaga a ideia de uma continuidade do projeto da esquerda, que é preenchida por dois importantes elementos estéticos do filme: os planos gerais de multidão e as lágrimas. Assim que seu discurso termina – muito diferente dos discursos verborrágicos de “Terra em Transe” – entram planos de monumentalidade, deste líder à beira de sua prisão, com sua obra dilacerada, sendo carregado por uma multidão em lágrimas. Isto me leva a questionar se Paulo Martins, o poeta de “ Terra em Transe” estava certo ao afirmar que não se muda a história com lágrimas, e se talvez líderes políticos e artistas sejam eles mesmos ao mesmo tempo as próprias alegorias e os diretores do mundo sensível, responsáveis por ordenar as multidões reunidas em comunidades imaginadas.
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*Guilherme Heleno é estudante de cinema da UFF (Universidade Federal Fluminense). Atua com realização audiovisual, com foco em direção e direção de arte. Participou de diversos projetos na área, entre eles: “A incrível história do homem desalmado,” “Feliciani Vol 7” e “Prisma.”