Crise planetária para quem?

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Mariana/MG (Léo Rodrigues/Agência Brasil)

Suzana Valaski e Nilson Ramos de Mello Filho*

O ser humano relaciona-se com seu meio ambiente através de coisas produzidas, técnicas e recursos utilizados. À medida que avança em produtividade, distancia-se de sua base genética, de seu nicho ecológico de origem. Por isso, para entender a complexidade dessa relação homem e ambiente, é necessário englobar a analise ecológica da sociedade a sua forma de organização econômica. A percepção de que a atividade humana afeta os ecossistemas planetários de forma radical, provocando consequências que podem pôr em risco sua própria sobrevivência, vem sendo denunciada pelo menos desde os anos 1960. Iniciando pelos impactos localizados, como contaminação de rios, ou do ar de certas cidades, ou a extração, até o esgotamento, de minerais e recursos não renováveis, passou-se à consciência dos impactos de escala mundial, como a deterioração da camada de ozônio, o aquecimento global do planeta, perda da biodiversidade ou os riscos de acidentes nucleares. É fácil reconhecer os vários efeitos do que se chama crise global devido ao alto grau de exploração e poluição ambiental em que se encontra o planeta. No senso comum é simples encontrar a culpa na natureza do ser humano, já que todas as sociedades da humanidade tiveram problemas de degradação ambiental. Porém, a forma, a extensão e o ritmo com que uma sociedade explora seu ambiente dependem de suas relações sociais, políticas e econômicas, que refletem a relação da sociedade e seu ambiente.

Engels já afirmava no final do século XIX que “as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as perturbações políticas não devem ser procuradas na cabeça dos homens, nem na sua compreensão da verdade eterna ou da justiça absoluta, mas nas modificações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia do período que se analisa”. Os processos econômicos, isto é, a forma de produção e sua reprodução material, definem as formas que uma sociedade se apropria da natureza, as técnicas que utilizam para esse fim e as formas de divisão do trabalho. Definem como a sociedade se organiza e como a riqueza é dividida. Por isso, para entender a complexidade dessa relação homem e ambiente, é necessário englobar a análise da sociedade a sua forma de organização econômica.

Nas sociedades de classe, onde um grupo se apropria de outros, explorando o trabalho de uma maioria, tende-se a ter a mesma atitude de dominação e exploração em relação à natureza. Nos agrupamentos pré-capitalistas, os problemas ambientais eram localizados e sua técnica e ciência não eram tão agressivas. Já na sociedade capitalista, ao contrário, é o tremendo desenvolvimento das forças produtivas que tem permitido uma pilhagem da natureza em um ritmo e velocidade antes nunca vistos. Não há como ignorar o progresso, o desenvolvimento científico e industrial, bem como a inédita qualidade de vida atingida pela humanidade desde o início do capitalismo. Entretanto, essas conquistas foram às custas da exploração e deterioração da biosfera e das relações humanas, e estende o ciclo vicioso entre crescimento e degradação. Em sociedades em que as bases produtivas são mais comunitárias e com objetivo de satisfazer as necessidades imediatas, a relação com o ambiente tende a ser mais harmônica.

A história do capital é a história que fala do saque da natureza e da exploração de uma classe sobre outra. Entre os séculos XV e XVII, o mercantilismo é então marcado pela incorporação de novas áreas no mundo. Extensas áreas ocupadas por sociedades pré-capitalistas, ricas em minerais, vegetais, animais e territórios ainda não explorados, converteram-se em mercadorias. O capitalismo construiu seu domínio sobre o mundo travando uma verdadeira guerra contra a natureza e as sociedades-pré-capitalistas. O período ainda é marcado pelo surgimento da ciência moderna, que, junto com a técnica, ajuda a elevar o capitalismo, tornando-o a concepção hegemônica do mundo, naturalizando seus efeitos. A ciência da modernidade dessacraliza a natureza, inaugurando uma visão mecânica do mundo. Um método para dominar a natureza e promover avanços no bem-estar e no progresso do ser humano. O sucesso do modelo capitalista hegemônico, que fragmenta os saberes numa concepção determinista, reducionista e mecanicista do Universo, foi tão surpreendentemente eficiente que a sociedade pouco questionou, aceitando-o como verdade absoluta. O universo material e os seres vivos foram reduzidos à visão de uma máquina, com funcionamento e engrenagens perfeitas.

Do século XV ao século XIX, a Ciência Moderna foi conquistando o status e o privilégio não só de definir o que é ciência, mas de avaliar o que é conhecimento válido. Essa transformação epistemológica promovida pela ciência moderna baseia-se na mesma capacidade do capitalismo de destruição-criação. Foi preciso menosprezar, ridicularizar, destruir outras formas de produzir conhecimento para legitimar a Ciência Moderna como a ciência hegemônica. Esse epistemicídio que representa a morte de conhecimentos alternativos foi violento na Europa, mas muito mais nas regiões colonizadas. Nas últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico da humanidade foi inigualável. Em nenhum outro período histórico foram feitas tantas descobertas, em todos os campos da ciência, gerando uma incrível capacidade de produção e de controle dos elementos naturais. Porém, nos tornamos dependentes da tecnologia, tais como energia elétrica, automóvel, avião, internet e celular.  Graças a ela, a qualidade de vida humana aumentou expressivamente, como podemos ver nos avanços da medicina tais como vacinas, anestésicos, antibióticos, transplantes, próteses, cirurgias teleguiadas e diversos tipos de exames e drogas que aumentam a expectativa de vida do homem. A tecnologia define o estilo de vida da atualidade na qual a computação, a automação, a eletrônica e a engenharia genética estão presentes no cotidiano das nossas relações e são símbolos da sociedade de consumo.

Porém, ciência e tecnologia não são neutras, pois refletem os contrastes das sociedades que as desenvolvem, tanto em suas concepções quanto em seus usos, expressando novas formas de poder e de exploração de uma classe de humanos sobre outra e sobre a natureza. Elas acentuam as desigualdades, já que as externalidades negativas do desenvolvimento tecnológico são repartidas entre todos, mas os benefícios são utilizados apenas por quem pode. No entanto, fica cada vez mais evidente – à medida que avançamos sobre o século XXI – que a grande promessa da modernidade – superação dos limites impostos pelo ambiente e a consequente paz e prosperidade para todos – não se realizou. A maior compreensão por parte da opinião pública é a de que a intensificação dos problemas ambientais nas últimas quatro décadas, somada aos problemas de ordem social que persistem até hoje, às inúmeras crises do sistema econômico, ao aumento das desigualdades e ao inchaço populacional nas grandes cidades, tem evidenciado os problemas ocasionados pelo desenvolvimento. Todos esses fatores mencionados podem ser considerados fatores de stress socioambiental, que, de acordo com a percepção de Edgar Morin, constituem a “crise planetária”.

A destruição ambiental não é somente um efeito colateral, mas um elemento essencial da concepção do capitalismo global. A atividade humana é tão intensa que hoje é considerada uma força geológica, o Antropoceno, por alterar o funcionamento básico do sistema terrestre. Porém, a sociedade global cada vez mais urbanizada depende da capacidade de todos os tipos de ecossistemas do mundo para sustentar a vida urbana com serviços ecossistêmicos essenciais, como solos férteis, proteção contra tempestades e absorção de gases de efeito estufa e outros resíduos. Foram identificados nove desses serviços ecossistêmicos que não deveriam ser superados, por serem fundamentais para a manutenção da vida na Terra e essenciais ao desenvolvimento humano. Os limites planetários, como ficaram conhecidos, são: mudanças climáticas; acidificação dos oceanos; interferência nos ciclos globais de nitrogênio e de fósforo; uso de água potável; alterações no uso do solo; carga de aerossóis atmosféricos; poluição química e a taxa de perda da biodiversidade. Três desses limites já foram ultrapassados: mudanças climáticas, biodiversidade e concentração de nitrogênio na atmosfera, como consequência de atividades humanas. Os outros encontram-se no seu limite, como é o caso do elemento Fósforo, essencial para a agricultura moderna, mas com suas reservas esgotando.

Finalmente, não entendemos esse estado de distração no qual nos encontramos como um fenômeno individual, como explica a Psicologia. Entendemos como um processo que vem se construindo historicamente e que, ao mesmo tempo que explora, destrói toda capacidade de organização reivindicatória contra esse modelo de desenvolvimento injusto. Na verdade, não é somente uma distração, mas um projeto que resultou na construção de uma sociedade na qual o sentido de responsabilidade individual e coletiva se desintegra. Como peixes dentro d’água, estamos tão imersos nesse modelo que não percebemos que tudo a nossa volta virou mercadoria com um preço que nem todos podem pagar. Afinal, temos que nos perguntar: crise para quem?

 

*Suzana Valaski é física e matemática, especialista em Informática e mestre em Educação pela PUCPR.

Nilson Valaski é biólogo, especialista em Agricultura Biodinâmica, mestre em Tecnologia Ambiental e doutorando de Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR.

 

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