Conciliação e democracia, um dilema do passado e do presente

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Clóvis Gruner*

Em 2018 comemoramos 30 anos da Constituição que, promulgada em outubro de 1988, foi festejada à época como “cidadã”. O Brasil havia se despedido recentemente de sua última ditadura, e a nova Constituição nascia sob o signo da (re)democratização. Mas as coisas não saíram exatamente como o planejado. Três décadas depois e não são poucos os que sugerem estarem ameaçadas as poucas conquistas que a Carta Magna pretendeu consolidadas, a começar por nossa jovem e sempre frágil democracia.

Esse artigo pretende esboçar, se não exatamente um diagnóstico, uma interpretação possível, além de obviamente provisória, a uma questão que ainda nos atormenta, e talvez mais agora, nesses tempos conturbados e sombrios que atravessamos: por que não fomos capazes de consolidar nossa democracia, mesmo a mais formal, passados 30 e tantos anos do fim da ditadura civil militar?

A hipótese que o atravessa é de que nunca confrontamos nosso passado recente. Mais precisamente, a forma como lidamos com a herança da ditadura, optando mais uma vez pela conciliação, impediu que vicejasse um ambiente favorável ao florescimento de uma democracia insatisfeita com seus próprios limites e, por isso, disposta a avançar em direção a uma efetiva cultura democrática.

Resultou daí um tipo de esquecimento propício à permanência dos restos de uma ditadura, de um passado ainda presente, porque nunca efetivamente afrontado. O ponto de inflexão, talvez único, nessa trajetória, as manifestações de 2013, tampouco resolveram o dilema dessa continuidade, em parte porque as reivindicações de caráter mais progressistas das chamadas “Jornadas de junho” foram desconsideradas pela esquerda que, naquele momento, governava o país, ela própria, aliás, uma das fiadoras do pacto conciliatório.

A conciliação é o limite – É do historiador José Honório Rodrigues a tese, defendida em livro publicado originalmente em 1965, segundo a qual a conciliação tem sido não apenas um meio de defender os interesses de grupos poderosos, mas igualmente uma forma de exclusão das chamadas minorias, estabelecendo uma espécie de divórcio entre a política e a sociedade.

Tal processo foi mais violento porque aquilo que denominou “história cruenta” – a violência estatal, os golpes de Estado, as resistências e conflitos sociais sufocados militarmente, etc… – se fez sempre sob o apelo à conciliação, um mecanismo que serviu, principalmente, como uma reação com fins de fazer prevalecer interesses conservadores e impedir rupturas profundas principalmente com nosso passado autoritário e violento.

Entre outras, uma das consequências foram mudanças superficiais que impediram, quando não reprimiram violentamente – como no golpe de 1964 –, qualquer tentativa de ampliar direitos e a participação política e democrática. De diferentes maneiras, a conciliação prevaleceu também durante a transição “lenta, gradual e segura”. A Lei de Anistia, promulgada em 1979, é uma das faces mais visíveis dessa continuidade. Ela não apenas estabeleceu o marco no interior do qual faríamos a passagem para a democracia, como fez do Brasil caso único entre as ditaduras latino-americanas.

Assim, se países vizinhos, como Argentina, Chile e Uruguai, invalidaram as leis que anistiaram os crimes cometidos durante seus regimes de exceção, promulgadas igualmente na transição dos chamados “regimes militares”, no Brasil produziu-se o esquecimento: somos o único país que perdoou os militares sem exigir deles o reconhecimento dos seus crimes. Mesmo a instalação, em 2011, da Comissão Nacional da Verdade, não mudou substancialmente esse quadro.

O fundamental restou por fazer: nenhum dos governos civis eleitos a partir de 1989 teve força ou vontade suficiente para revisar a Lei da Anistia, peça central no imenso edifício de olvido sobre o qual se estrutura parte de nossa cultura política contemporânea. Desde a Nova República, há uma interdição, um silenciamento a impedir que a tratemos, e as políticas de esquecimento daí derivadas, pelo que elas são: um obstáculo à efetivação de uma democracia sensível, entre outras coisas, aos muitos riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, inclusive institucionalmente, continuam a ameaçá-la.

Há diferentes maneiras de interpretar o alcance dessa limitação e sua capacidade de precarização da democracia: a violência institucional, cometida diariamente pelas Polícias Militares especialmente contra as populações negras e comunidades periféricas; nossos índices vergonhosos de encarceramento; o descaso com as comunidades indígenas e quilombolas; a dificuldade de ampliar e estender direitos civis os mais elementares às chamadas minorias são apenas algumas delas.

Das jornadas ao impeachment – Houve um ponto, um momento de inflexão, nessa trajetória. Em junho de 2013, milhares de brasileiras e brasileiros foram às ruas, em manifestações que mobilizaram principalmente as capitais. Não pretendo, nem há espaço para isso, retomar aqui minuciosamente o que foram as chamadas “Jornadas de junho”, mas tomá-las como emblemáticas de uma experiência, que além de controversa e, a meu ver, mal compreendida, singular em nossa história recente.

À época foram muitas as críticas ao caráter disperso, à falta de uma bandeira ou ainda às muitas “caras” das manifestações – e ainda há quem acredite que o impeachment de Dilma Rousseff começou a ser gestado três anos antes. É verdade que as manifestações colocaram em xeque as políticas de representação, e levaram às ruas a desconfiança com partidos e governos. Mas o ceticismo com a política tradicional tinha seus próprios motivos, que não o desejo de dar sentido e forma a um “golpe” pelo qual os manifestantes de junho não têm responsabilidade.

Havia, de um lado, um crescente distanciamento entre governo, parlamento, partidos e movimentos sociais, uma distância que não deixou de recrudescer mesmo depois de eleito o PT. Antes pelo contrário, o PT promoveu, em nome da manutenção das condições de governabilidade, uma aproximação a grupos e forças conservadores que travou ou desacelerou debates e políticas fundamentais aos movimentos sociais, tais como a reforma agrária; a desmilitarização da polícia; a legalização do aborto; a descriminalização do uso de drogas; ou a criminalização da homofobia, entre outros temas.

Não bastasse isso, investiu em políticas que contrariavam justamente o que se esperava de um governo que ascendeu, em parte, pela promessa de ruptura e aprofundamento democrático. Os exemplos também são muitos: o descaso com os direitos das comunidades indígenas e quilombolas, sintetizado de maneira exemplar em Belo Monte; a ausência de uma discussão ampla sobre as políticas de segurança pública e a desmilitarização da polícia; a repressão às manifestações contra a Copa e a criminalização de muitos movimentos sociais, culminando com a assinatura da “Lei anti-terrorismo”, pouco antes do afastamento de Dilma.

Ao escolher reproduzir as políticas de conciliação, ao invés de confrontá-las, os últimos governos mantiveram a velha tradição de desmobilização e silenciamento dos movimentos sociais, seja incorporando algumas de suas demandas – não as mais controversas – ao Estado, por meio de políticas públicas, ou simplesmente recusando reconhecer seu papel como interlocutor legítimo do governo, característica principalmente do governo Dilma.

Ao mesmo tempo – e essa é uma das muitas contradições do lulismo – políticas distributivas permitiram, de maneira inédita, elevar os padrões de consumo de parcelas significativas dessa mesma população. Nesse sentido, a estratégia da conciliação, aliada ao social-desenvolvimentismo dos governos petistas, diluiu temas importantes ao aprofundamento democrático nos índices de diminuição da pobreza percebidos principalmente na última década.

Com o impeachment de Dilma Rousseff, percebemos de maneira trágica e farsesca que o combate à pobreza e à miséria, em que pese sua urgência, não foi suficiente para amadurecer nossa cultura pública. E isso repercute, inclusive, na consolidação da democracia tomada mesmo em seu sentido mais básico e formal: pesquisa realizada há menos de um ano, em outubro último, revelou que a democracia é a forma de governo preferível para apenas 40% dos brasileiros, e que 15% afirmam que governos autoritários são preferíveis em algumas circunstâncias.

A afirmação de que vivemos, nesse momento, um impasse democrático soa óbvio, mas é o tipo de obviedade que preocupa e merece alguma atenção. No vácuo das manifestações pelo impeachment, em 2015, afetos autoritários foram mobilizados e ganharam força em meio a uma indignação, suposta ou real, que clama por ética na política e pelo fim da corrupção. Além disso, está um curso um novo pacto conciliatório não muito diferente em suas intenções e desdobramentos daqueles que foram objeto da crítica de Honório Rodrigues. Um grande acordo para manter intocados os interesses de sempre, mas também o de insistir na permanência de um passado que não passa e limita as possibilidades de vivermos um outro presente.

*Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da UFPR.

 

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