Música: Comportamento geral
Autor: Luiz Gonzaga Jr. (Gonzaguinha)
Canção lançada em compacto simples, em 1972, pela Odeon.
Faixa do 1º LP de Gonzaguinha, Luiz Gonzaga Jr. – 1973, Emi-Odeon.
Remasterizado digitalmente em CD em 1998 – PolyGram/Philips
Produtor fonográfico: EMI-ODEON, Fonog. Ind. e Eletrônica Ltda.
Direção de Produção: Milton Miranda
Direção Musical: Maestro Gaya
Assistente de Produção/Orquestrador e Regente: Meirelles
Foto de capa (arte e fotos): Eduardo Andrade e Eduardo Chalita
Links:
“Comportamento geral”, áudio do LP Luiz Gonzaga Jr. – 1973: https://www.youtube.com/watch?v=vyMTibFS4qQ
“Comportamento geral”, programa Ensaio com Gonzaguinha – TV Cultura – 1990: https://www.youtube.com/watch?v=Cokqqpb8fCE
“Comportamento Geral”, por Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha, clipe oficial: https://www.youtube.com/watch?v=v-GjcZAZdfQ
“Comportamento geral” por Criollo, no 27º Prêmio da Música Brasileira, em homenagem a Gonzaguinha: https://www.youtube.com/watch?v=nqBQB_blbBQ
Letra:
Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado
Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã
Seu Zé se acabarem teu carnaval
Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre muito obrigado
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado
Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã
Seu Zé se acabarem teu carnaval
Anestesia geral
Martinha Vieira*
Dormindo a dor passa? Em berço esplêndido deita o país e adormece a razão, o corpo amortece, a consciência desfalece. Doida dor recolhida na perda do direito fundamental, a liberdade. Perda que inverte o caminho, guiando a grande massa para o matadouro da consciência coletiva. A recompensa pelo silêncio é a mordaça do futuro, da dor que se anestesia, mas não cura. Analgesia na veia, sono profundo retendo a vontade e a esperança de quem se entrega à tentação de não ver e esperar tudo passar.
Ah, pátria sonolenta, bela adormecida à espera do seu salvador! Turbilhão encarcerado na masmorra do quem pode mais chora menos, onde a lei do mais forte é que manda no jogo das cartas eternamente marcadas pelo favorecimento de poucos em detrimento do coletivo.
Mas o sono não paralisa a dificuldade, a miséria, os abusos contra os direitos que vão tomando forma crônica e se consolidando de tempos em tempos no Brasil. O sono apenas deixa o caminho livre para toda sorte de contratos espúrios que beneficiam cada vez mais os donos de tudo e multiplicam seus polpudos bens e seus podres poderes. Enquanto a grande maioria dorme o ladrão entra e faz a festa. A visão da casa arrombada é evidente, mas a paralisia diante da violência domina qualquer esforço de combater o inimigo declarado, que já assola com a falta do essencial. Desemprego e subemprego, baixa renda e desigual distribuição de riquezas, ausência de garantias sociais, florescimento de rede de informação e entretenimento de grande porte jorrando anestesia em forma de imagem e som, fabricando mentiras para um faz de conta real. O terror é real, nele submerge a nação inerte, acreditando que “tudo vai bem, tudo legal” e que tudo isso é para “o nosso próprio bem”.
1973, quase uma década de ditadura militar no Brasil, boa parte dos movimentos sociais e culturais já se desarticulava. A arte estava amordaçada. O debate político abatido na arena do silêncio. O período pós AI-5 foi o mais cruel. Prisões, torturas, desaparecimentos, assassinatos, a UNE na ilegalidade, repressão aos artistas, intelectuais e estudantes que se articulavam contra o regime de força e consequentemente o esvaziamento dos CPCs (Centros Populares de Cultura) e outros movimentos culturais ligados ao meio estudantil, como o MAU (Movimento Artístico Universitário). Os grupos de teatro que traziam à cena as grandes questões do país, como o Arena e o Oficina, e espetáculos musicais/cênicos, como o Opinião, também já se desintegravam, assim como os festivais de música, pela quantidade de obras censuradas e artistas, diretores e autores presos e exilados.
O caminho era tentar sobreviver ao momento na queda de braço com a censura, buscando a expressão simbólica, cujo significado poderia ser negociado e acabar convencendo. Trocando uma palavra aqui, outra ali, às vezes era possível não perder o sentido, o questionamento da situação precária a que se entregava o país. E nesse contexto é que Gonzaguinha lançava seu primeiro disco, marcado pela coragem que sempre lhe foi tão característica. Integrante do MAU (Movimento Artístico Universitário), entrava agora no caminho da canção popular trazendo uma crítica aguda ao sistema de opressão vigente no país, cuja porteira escancarada liberava o quintal para o capital estrangeiro injetando um modelo de desenvolvimento espoliativo e sugador da seiva vital dos filhos da pátria, entregues ao sacrifício para o “crescimento” nacional tão alardeado pelo aparelho de TV, cuja missão era gerar aceitação passiva da derrocada da vida pública, do estado de direito e das conquistas populares, fazendo crer que tudo ia muito bem. A propaganda entrava nos lares com uma doce mensagem de merecimento pessoal, criando o hábito de acreditar na promessa do benefício pessoal, criando um tipo de cidadão ideal que comprando os produtos compra junto a ideia de que agora nós podemos, agora somos um pouco norte-americanos, consumidores: compramos a modernidade e combatemos a “praga do comunismo”.
Ancorados no ideal do capitalismo, passamos a acreditar sermos menos terceiro mundo. Confundindo o servir desenfreado com participação no crescimento da nação rumo ao “American way of life”, passamos a catar migalhas, a xepa da feira, a sobra. Essa é a recompensa que naturaliza a condição de vencidos e vencedores, inferiores e superiores, mandados e mandantes.
Nesse cenário Gonzaguinha emplacava um grito concentrado de ironia na tentativa de despertar o dormente, colocando o dedo na ferida do conformismo e da apatia que ganhava no cansaço, no jogo desigual da força bruta contra a massa carente de dignidade, usurpada de seus direitos. A canção “Comportamento geral”, de sua autoria, lançada em 1972 em compacto simples e em 1973 no seu primeiro LP “Luiz Gonzaga Jr.”, teve sua divulgação proibida, apesar de o LP que a continha poder ser vendido, e ainda rendeu a Gonzaguinha o embate constante com a censura. Antes de lançar seu segundo LP, Gonzaguinha teve 15 canções vetadas na íntegra e ficou marcado perante emissoras de rádio que boicotavam suas canções mesmo quando liberadas pelos censores.
Gonzaguinha não fazia o tipo bem comportado por ele abordado em “Comportamento geral”. Sua miúda figura se agigantava na potência da crítica aguda à opressão e ao adestramento, propiciados pelo regime vigente. Gonzaguinha nunca abaixou a cabeça, nem se deixou enfraquecer diante das pressões que sofria, mantendo sempre a consciência política como marca do seu trabalho e de sua pessoa. Em 1974, declarou, em entrevista ao Jornal do Brasil, que “toda música é política. Se ela não se coloca nem contra, nem a favor, ela já é, por sua inércia, a favor. O que lhe dá a dupla característica de alienada e alienante.”
Assim como na vida diária a aceitação silenciosa da opressão a perpetua, fazendo milhões de cúmplices silenciosos e desavisados que passam a crer no chicote como necessidade básica para a manutenção da ordem nacional.
E assim, com uma fina ironia, a canção de Gonzaguinha alerta contra a apatia, contra a opressão do trabalhador, contra o comportamento geral permitido, desejado e induzido pelo poder de força. “Você deve aprender a baixar a cabeça”, “e dizer sempre muito obrigado”, “e dizer tudo tem melhorado”, “e ser um homem bem disciplinado”, “e só fazer tudo aquilo que for ordenado”, “e esquecer que está desempregado”.
Qualquer semelhança com o presente momento na vida política brasileira não é mera coincidência. 1964, ano do golpe. 2016, ano do golpe. 2018, a história se repete no vacilo (cochilo) nacional, passadas mais de cinco décadas. Não bastou o exemplo, a lição não foi aprendida. A roda gira e estaciona no mesmo lugar. A tecnologia evoluiu, mas a caixa de som e luz agora com incrementos continua produzindo o mesmo comportamento geral de paralisia e incapacidade de compreensão dos fatos. Brasil de ontem, Brasil de hoje, o efeito da anestesia ainda está ativo. O ladrão ainda faz a festa, e não dizemos nada além do que nos deixam dizer.
Martinha Vieira é formada em Letras Português, pela UFPR (1990), pós-graduada em Currículo e Prática Educativa, pela PUC-RJ (2002) e em Produção da Arte e Gestão da Cultura, pela PUC-PR (2014).