Caminhos para resistir à ultradireita em Nossa América

A História é um carro alegre

Cheio de um povo contente

Que atropela indiferente

Todo aquele que a negue

Pablo Milanez e Chico Buarque de Hollanda, “Canción por la Unidad de Latino América”

 

Durante o século XIX, as lutas pelo fim da escravidão e pela libertação dos povos latino-americanos deram origem a um pensamento radical que teve entre seus expoentes o poeta e revolucionário cubano José Martí e o venezuelano Simon Bolívar. Martí chamou de “Nossa América” a América oprimida, colonizada, submetida à Europa. A “Outra América” é a opressora e imperialista.

Nesta segunda década do século XXI, a América Latina transformou-se em espaço crucial para a disputa entre a ultradireita – a “Outra América”, de Trump a Bolsonaro – e os que buscam, diante da crise civilizatória, alternativas humanizadoras para integrar os países da região e retomar a construção da “Nossa América”. Esse embate nos remete aos temas essenciais da libertação nacional como condição para a integração latino-americana: igualdade social e soberania em relação ao império (EUA).

O ano de 2019 foi marcado por insurreições populares que estremecem todo o continente sul-americano: Venezuela, Equador, Peru, Argentina, Chile e Bolívia vivem meses de agitação popular, pressões estrangeiras e alterações significativas nos rumos políticos locais, com reverberações em toda região e imprevisibilidade no que virá. O Brasil será certamente centro deste embate – em especial após as esperanças e ódios despertados pela soltura provisória de Lula.

Se em janeiro do ano passado a bola da vez era a Venezuela, agredida mais uma vez por articulações golpistas a partir do governo Trump, em outubro, o Equador entrou em erupção, com o governo neoliberal acossado pelo povo na rua; na Argentina, o governo ultraliberal de Maurício Macri foi fragorosamente derrotado nas urnas.

Em novembro, de forma surpreendente, Chile e Bolívia assumiram o protagonismo no cenário de gigantescos protestos internos que acuam os governos locais – no Chile, o presidente de direita Piñera indica que vai aceitar uma Assembléia Constituinte para elaboração de uma nova Carta que substitua a que está em vigor desde os tempos da ditadura de Pinochet; na Bolívia, o presidente de centro-esquerda Morales, recém-reeleito, exilou-se na Argentina após violentos protestos de empresários e irados católicos, preparados com apoio de assessores do governo dos EUA e asseclas de Bolsonaro.

O golpe na Bolívia estarreceu o mundo pelas atrocidades praticadas por uma elite anti-popular e racista, agindo como milicianos. Meios de comunicação independentes foram atacados e tirados do ar. José Aramayo, diretor de rádio ligada à Confederação dos Trabalhadores Camponeses, foi amarrado a uma árvore. E Patricia Arce, prefeita de Vinto, na região de Cochabamba, teve os cabelos raspados, o corpo pintado com tinta vermelha e foi obrigada a caminhar sob insultos.

A ultradireita na região é fortemente influenciada por Steve Bannon, estrategista de campanhas eleitorais de Trump, baseadas em fake news e manipulação de dados nas redes sociais. Bannon orienta a ultradireita a erguer as bandeiras da luta contra a corrupção e “os políticos”, ao estilo “Lava Jato”, se aproveitando que o sistema político representativo está em crise, em todo o mundo. A população sente-se abandonada pelos políticos, pois a desigualdade econômica tornou-se acintosa, as condições de vida das maiorias deterioram-se e a democracia, sequestrada pelo poder econômico, não oferece alternativas.

A manipulação articulada por Bannon permitiu, a dezenas de partidos de ultradireita em todo o mundo, capturar o ressentimento decorrente destas frustrações. Para fazê-lo, desviam o foco. Jamais atacam a ditadura financeira, que produz a concentração brutal de riquezas e o esvaziamento da democracia. Voltam seu eleitorado suscetível contra uma suposta “elite” – composta pelos mais letrados, pelos artistas, pela cultura em geral; pelos que expressam etnias, culturas, religiões, sexualidades ou padrões morais não-hegemônicos (Evo Morales e Marielle Franco são exemplos notáveis); pelos que podem ser apontados como “politicamente desviantes”, aqui incluídos sindicalistas, militantes sociais, religiosos progressistas.

Se Bannon é a referência para a ultradireita, a alternativa humanizadora e libertadora encontra no Papa Francisco sua inspiração. Desde que iniciou seu papado, em maio de 2013, Francisco age com inteligência política e força mobilizadora que a esquerda latino-americana ainda não compreendeu plenamente.

Primeiro Papa sul-americano, o argentino Francisco lidera um pontificado que já marca a história da Igreja por sua radical fidelidade ao Cristo libertador – “humano, assim como ele foi, só podia ser Deus mesmo”, na síntese poética de Leonardo Boff sobre Jesus.

Francisco lançou em junho de 2015 a primeira encíclica socioambiental da história da Igreja Católica, “Laudato Si”, em que afirma: “Enfatizei como hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente conectado, e a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e da solução dos problemas estruturais da economia mundial”.

O Papa tem feito gestos concretos de acolhimento aos imigrantes, notadamente aqueles que se deslocam da África para a Europa – recorde-se que a questão migratória é central no debate político europeu, e a ultradireita local defende a total exclusão dos que tentam vir à Europa. Não por acaso, Bannon reside desde o ano passado em Roma e passou a mirar no Papa Francisco sua campanha de ódio e conservadorismo.

Em maio deste ano, o Papa fez a ousada convocatória para a Economia de Francisco, indicando que é necessário ir à raiz dos problemas sociais, ou seja, a como está organizada a economia no mundo.

A Economia de Francisco propõe a interconexão entre o cuidado com o meio ambiente, a justiça social e a solução dos problemas estruturais da economia mundial. Nas palavras do Papa, “é necessário corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações”.

O chamado de Francisco dirige-se prioritariamente aos jovens de todo o mundo, de todas as crenças e nacionalidades, para que compartilhem suas pesquisas em busca de uma outra economia e experiências de produção em bases solidárias. Haverá um encontro de cerca de 500 desses jovens na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de 2020 para que, nas palavras do Papa “nos ajude a estar juntos e nos conhecer, e que nos leve a fazer um ‘pacto’ para mudar a atual economia e dar uma alma à economia do amanhã”. Para saber mais, acesse: http://www.ecofranbr.org

No século XXI, a Nossa América precisa realizar uma revolução para se emancipar. É esse pensamento radical que o Papa Francisco retoma e que pode ser a inspiração para derrotar a ultradireita que mostra suas garras. É no enfrentamento radical ao cerne do ultraliberalismo econômico que se devem concentrar os esforços das lutas populares em Nossa América.

E o cerne da estratégia ultraliberal é o desmonte do Estado nacional, através do enfraquecimento e eliminação dos instrumentos que permitem coordenar políticas de desenvolvimento autônomas. A desastrosa década neoliberal (1990-2000) mostrou a rigorosa incompatibilidade entre gerir a economia pela lógica do arrocho fiscal, monetário e de salários e alcançar níveis de crescimento econômico em países subdesenvolvidos que permitam reduzir o desemprego, a miséria e a exclusão. A situação é agravada pela desregulamentação financeira mundial e pela estagnação econômica verificada nos países centrais do capitalismo.

Um dos elementos mais perversos da herança neoliberal continua a ser a interdição do debate sobre alternativas soberanas para a condução dos países no rumo do desenvolvimento. A política econômica interna ultraliberal impele o aprofundamento da posição defendida pelos introdutores do neoliberalismo na região: estabilidade monetária com “responsabilidade fiscal” como condição para a inserção externa baseada no crescimento de exportações de produtos primários (soja, carnes, minério de ferro). Ficam à margem do debate as questões centrais que explicam o subdesenvolvimento dos países e apontam o caminho para a superação da dependência externa.

Como já ensinava há cinco décadas Celso Furtado (1920-2004), paraibano de Pombal, um dos principais economistas latino-americanos, e cujo centenário de nascimento deve ser vivamente celebrado em toda Nossa América ao longo deste ano de 2020, o subdesenvolvimento tem suas raízes na conexão entre o processo interno de exploração e o processo externo de dependência. Quanto mais intensa a adoção de novos padrões de consumo, mais concentrada terá que ser a renda. Portanto, se aumenta a dependência externa, também terá que aumentar a taxa interna de exploração. Em verdade, a elevação da taxa de crescimento tende a acarretar agravamento tanto da dependência externa quanto da exploração interna.

Desta forma, não é relevante para o conjunto da população e o grande contingente de excluídos, discutir se a saída para o Brasil é aumentar ainda mais nosso esforço de exportação para gerar maior excedente. Muito mais urgente é avaliar como a elite econômica do país que sempre se beneficiou do comércio exterior, utiliza os recursos auferidos com as exportações de produtos da agricultura e da indústria extrativista, que perfazem grande parte de nossa pauta exportadora. Um governo comprometido com a superação do subdesenvolvimento e dotado de autonomia externa necessita intervir para limitar a drenagem para o exterior deste excedente, além de constituir estruturas de poder que dificultem a absorção destes recursos pelo processo de reprodução dos padrões de consumo dos países ricos.

As restrições para a vigência de uma política externa soberana são profundas. Está limitada internamente pela lógica neoliberal na condução da política macroeconômica e externamente pela pressão do governo dos EUA, que vem ampliando sua presença e influência militar no continente, aumentando sua capacidade de operação e controle.

Adicionalmente, representantes dos países que integram o Mercosul e a União Européia anunciaram em julho de 2019 que acertaram as bases centrais para um potencial acordo de livre-comércio entre os dois blocos internacionais.

Embora pouco ainda se saiba sobre os detalhes do acerto, que entrará em vigor somente após mais alguns anos de negociação nos Parlamentos nacionais dos países envolvidos, é necessário analisar suas potenciais implicações a partir da condição periférica da economia latino-americana.

O tratado determina que, em até dez anos, não haverá mais tarifas sobre 92% dos produtos brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios exportados para o bloco europeu. Por outro lado, 72% das importações vindas da União Européia também não vão pagar tarifas. Hoje, o bloco é o segundo maior parceiro comercial do Mercosul – em 2018, importou 54,6 bilhões de dólares em produtos, ficando atrás somente da China.

Nos últimos cinco anos, desde 2014, o Mercosul exportou, em média, 48,2 bilhões de dólares por ano para os 28 países da União Européia. Isso coloca os europeus também em segundo lugar no ranking de principais parceiros econômicos do Mercosul, atrás da China (50,3 bilhões de dólares por ano) e à frente dos Estados Unidos (30,6 bilhões de dólares por ano).

O principal produto que o Mercosul exporta para a União Européia é farelo de soja: em 2018, foram 5,7 bilhões de dólares. Para cada dólar de farelo de soja que exportou, o Mercosul importou dois dólares de máquinas – como motores, válvulas e centrífugas, principal produto importado da União Européia (foram 9,5 bilhões de dólares em 2018).

A soja é o alimento que o Brasil mais exporta para a União Européia. Em 2018, foram 5 milhões de toneladas embarcadas. Essa é a mesma quantidade que foi exportada de milho e café, segundo e terceiro alimentos mais exportados pelo Brasil.

Em 2018, para cada litro de vinho que importou da União Européia, o Brasil exportou 37 litros de suco de laranja para os europeus. A cada 9 toneladas de açúcar que o Brasil exportou para a União Européia em 2018, o país importou um carro de passeio.

Por ano, o Brasil exporta uma média de 184 milhões de dólares em carne bovina para a Itália. Isso é cinco vezes mais do que o Brasil importa de bolsas, sapatos e malas de couro italiano (35,4 milhões de dólares).

Após ter avançado o acordo com a União Europeia, o Mercosul estuda a possibilidade de um tratado com a Suíça – país que não faz parte do bloco econômico europeu. Hoje, embora seja o maior produtor de café do mundo, o Brasil tem déficit com a Suíça no comércio desse produto. Por ano, o país exporta 7 milhões de dólares em café não torrado para os suíços, e importa de volta 37,4 milhões de dólares de café torrado, em grande medida encapsulado – valor cinco vezes maior.

Para as sociedades em formação, como as que integram o Mercosul, marcadas pelas profundas heterogeneidades que caracterizam a dependência e o subdesenvolvimento, está em causa a interrupção do processo de formação nacional e a correspondente desarticulação do mercado interno. As forças do capitalismo contemporâneo – cujo centro encontra-se também nas corporações transnacionais europeias – implicam na reorientação do sentido da relação entre modernização dos padrões de consumo e formação econômica nacional, no sentido de sua incompatibilidade.

O aprofundamento da dependência e dos impulsos à modernização dos padrões de consumo derivados da exacerbação do utilitarismo e do consumismo, na base de uma economia em desestruturação, retira a legitimidade que o crescimento econômico do passado conferiu ao modelo latino-americano, como o do “milagre” no Brasil da ditadura. Por outro lado, a ruptura das sinergias entre economia e política, e a desestruturação do mercado interno fazem compartimentarem-se as regiões do território, agora mais vinculadas à dinâmica das empresas transnacionais do que ao mercado interno.

Assim, o estado crônico e estrutural de crise e desemprego, e a compartimentação regional, fazem aprofundar, no quadro do subdesenvolvimento, tensões sociais de potencial explosivo e resultados imprevistos, manifestações violentas da interrupção do processo de formação nacional.

A América Latina ainda é um arquipélago de sociedades e economias subdesenvolvidas, separadas pela distância, por obstáculos geográficos e pela herança das políticas coloniais que as isolavam cada uma das demais e que as vinculavam exclusivamente a suas metrópoles, Madri e Lisboa.

Sobre imensas riquezas do solo e do subsolo, em um território de 20 milhões de km2, vivem e trabalham 440 milhões de latino-americanos, em permanente mestiçagem, a partir de suas origens africanas, indígenas, europeias e asiáticas, com pujante cultura e unidade linguística ibérica.

Um continente extremamente rico em recursos minerais, energia, potencial agrícola e biodiversidade, em que se encontram sociedades que ostentam níveis extraordinários de pobreza e de exclusão, ao lado de riqueza excessiva, ostentatória e de padrões de consumo copiados dos países centrais do capitalismo.

As estruturas econômicas nacionais da região se caracterizam por grandes complexos exportadores de minérios e de produtos agrícolas ao lado de setores industriais de pequena dimensão e de baixa eficiência, que se dedicam ao processamento de matérias-primas locais para o mercado local, tais como têxteis e alimentos, com a exceção de situações específicas como a do Brasil e a da Argentina, que têm parques industriais consideráveis. Mas todos, dos menores aos maiores, são ameaçados e atingidos periodicamente por políticas liberais de abertura comercial indiscriminada, por políticas cambiais que utilizam as importações para controlar a inflação e, agora, pela concorrência avassaladora da China que afeta a integração comercial regional.

As características da América do Sul – riqueza mineral e energética; grandes extensões de terras aráveis não utilizadas; população cada vez mais urbana em processo de estabilização demográfica – tenderão a condicionar o papel da região em um cenário político mundial em que a disputa pelo acesso a recursos naturais e a alimentos será fundamental.

Essas tendências tenderão a se agravar no século XXI devido à subordinada inserção da região na economia global e às resistências das elites em implantar políticas econômicas e sociais capazes de ampliar com vigor a produção e ao mesmo tempo redistribuir riqueza e renda e conferir maior poder político à grande massa da população.

Caso o desenvolvimento de cada país da América Latina seja deixado ao sabor da demanda do mercado internacional e dos humores das estratégias de investimento das corporações transnacionais, as assimetrias entre os Estados da região, e dentro de cada Estado, se acentuarão assim como as tensões políticas e os ressentimentos, o que virá a afetar de forma grave as perspectivas de desenvolvimento latino-americanas.

Ao contrário, a integração regional deve estar necessariamente associada à soberania, exigindo uma política que inverta o sentido da economia, na qual a superação do legado colonial – a América Latina como um negócio – está ligada a um padrão civilizatório – o que potencialmente a Economia de Francisco pode representar para Nossa América.

As massas populares da América Latina começam a discernir os seus verdadeiros inimigos, os seus verdadeiros problemas, as verdadeiras soluções para estes e o preço a pagar por conquistar essas superações. É esta, sem dúvida, a maior evolução. A evolução da consciência das massas. Certamente ainda embrionária, mas efetiva. As sementes da libertação são agora pequenas plantas. Com tempo, empenho e cuidado – especialmente daqueles que sabem que morrerão sementes – poderão se tornar grandes árvores à sombra das quais se abrigarão os povos da América Latina livre.

Os desafios parecem imensos, nossas ações de resistência mostram-se ainda pequeninas. Mas é em cada militante latino-americano que se necessita viver, radicalmente, a conversão à opção de resistir e construir a Nossa América. Como descreveu tão belamente o grande revolucionário poeta chileno Pablo Neruda:

“Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo”.

 

Thomaz Ferreira Jensen é economista (graduado pela Universidade de São Paulo) e trabalha com educação popular em processos de formação sindical. É membro do Conselho Consultivo da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e participa da Articulação Brasileira para a Economia de Francisco. Contato: tfjensen@uol.com.br