Brasil solidário e justo: um sonho ainda possível?

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Francisco Menezes*

O Brasil é um dos países mais desiguais do planeta e isso é de conhecimento amplo, não só internamente, mas presente em todas as análises e estudos que são feitos a respeito. A desigualdade se mostra em diferentes esferas, seja na renda, no acesso aos serviços públicos ou no âmbito dos direitos. A desigualdade tem sua marca de forma explícita nas relações de gênero, de raça/etnia e na distribuição da riqueza no nível regional. E ela é a fábrica da pobreza no país, instaurando um moto-contínuo de produção e realimentação uma da outra. A origem de tudo isso já está bem diagnosticada, com a herança escravista, machista e patrimonialista em nossa sociedade. Mas como foi o enfrentamento mais recente dessas duas chagas sociais que o Brasil ostenta? Há esperança de superá-las?

As conquistas no combate à miséria e pobreza, que ocorreram a partir dos anos dois mil, foram precedidas por um processo muito fértil, na década anterior. A grande protagonista foi a sociedade civil brasileira, ou parte importante dela, que não aceitava mais essa realidade. Exemplo claro foi a mobilização despertada pela Campanha contra a Fome, resultante do cansaço ante a inércia do Estado e que chamou para si uma ação direta que não só saciou de imediato a fome de muitas pessoas que padeciam dessa calamidade, mas plantou a disposição para transformações futuras. Esse e outros processos criaram as condições para o que se daria depois, a partir de 2003. Pronunciando-se nas urnas esse desejo de progresso social, o Brasil passa a viver um período de criação e fortalecimento de políticas públicas efetivas que propiciaram avanços que não podem ser ignorados.

Tais avanços não se deram por apenas um único ou poucos fatores, embora alguns tenham aparecido como motores importantes para até onde se conseguiu chegar. O salário mínimo passou a contar com regras que permitiram a recuperação de seu poder aquisitivo, com inegável e positivo impacto para a economia e o poder de compra dos trabalhadores. Ao mesmo tempo acelerou-se o crescimento do emprego, chegando a partir de 2012 a uma situação próxima do pleno emprego, acompanhada de incentivos bem-sucedidos na formalização do trabalho. Também a transferência de renda alcançou resultados extraordinários, não só contribuindo para a satisfação de necessidades essenciais dos mais pobres, como dinamizando economias locais. Combinadas com estas políticas foram implementadas outras políticas muito exitosas. No âmbito da segurança alimentar e nutricional, por exemplo, avançou-se com programas como o da alimentação escolar e o de Aquisição de Alimentos, que, através de aquisições institucionais, inovaram ao ligar a ponta da produção da agricultura familiar com a ponta do consumo de escolares e dos grupos mais vulneráveis. Foram construídas 1,2 milhão de cisternas para consumo e produção, a partir de iniciativa conjunta de governo e sociedade, confirmando a concepção de que é possível a convivência com a seca para a população do semiárido. O Programa Mais Médicos trouxe médicos brasileiros e estrangeiros para assistirem uma população que muitas vezes nunca tivera acesso a esses profissionais. A política de cotas nas universidades foi outro exemplo nos avanços para a superação das desigualdades, contribuindo para um dia derrotar a vergonhosa exclusão de negros que ocorre em todos os domínios de nossa sociedade. Há que se levar em conta que a participação social em conselhos e conferências, mesmo com todos os limites que enfrentou, foi determinante para que ocorressem esses avanços.

Estima-se que mais de 30 milhões de pessoas ultrapassaram a linha da pobreza e em 2014 o Brasil foi considerado pela ONU fora do Mapa da Fome. Teríamos superado definitivamente esse signo que antes era dado como uma predestinação insuperável?

Um país mais justo incomoda muito as elites, mesmo que tenham preservados seus privilégios seculares. A democracia, para elas, serve se for para manter e ampliar seus ganhos, caso contrário terá que ser anulada ou manipulada. O Brasil, além do mais, possui riquezas e potencialidades que despertam forte interesse dos países hegemônicos e das grandes corporações. Sob a capa de uma falsa ordem institucional e com argumentos pífios, desferiu-se um golpe sobre a democracia, com a cassação do governo legitimamente eleito. Inicia-se, então, a experimentação de um projeto neoliberal de extrema radicalidade.

Já no primeiro ano do governo que assumiu com o golpe aprovou-se a Emenda Constitucional 95, que limitou o aumento dos gastos públicos à variação da inflação durante o espaço de vinte anos. Com ela iniciou-se todo o movimento de destituição de uma série de direitos do povo brasileiro. O direito à saúde, à educação, à alimentação e tantos outros foram sacrificados em prol de uma pretensa garantia ao capital financeiro de que o país reunirá as condições para se manter solvente no pagamento de juros da dívida pública. Seguiram-se, aceleradamente, outras movimentações na destituição de direitos, como é o exemplo daquilo que se chamou de reforma trabalhista, rebaixando a capacidade de negociação dos trabalhadores em um contexto de crise e desemprego. Como consequência, o crescimento da informalidade e a precarização do trabalho. Tentou-se, também, reduzir mais direitos dos trabalhadores através de uma proposta inaceitável de reforma da previdência, com posterior recuo do governo diante da reação popular que gerou. O orçamento público da área social nos anos de 2017 e 2018, já sob a égide da EC-95, sofreu cortes radicais. Alguns programas reconhecidos internacionalmente, como os já citados PAA e de Cisternas, vêm sendo destruídos, sem que se considerem os efeitos dessa ação insana.

Diante da crise econômica e política que se evidenciou a partir de 2015, a promessa daqueles que incitavam o golpe era de que com as políticas neoliberais que seriam aplicadas o país retomaria o rumo do crescimento e do emprego. Não foi o que se viu. Ao contrário, resultou um quadro gravíssimo de desemprego e crescimento do emprego mais precário. Conforme pesquisa trimestral do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego no trimestre encerrado em maio do presente ano foi de 12,9%, penalizando 13,4 milhões de brasileiros. E o pior é de que os mais pobres são os mais atingidos.

Os dados do módulo de rendimento da PNAD Contínua, divulgados em abril desse ano, quando compatibilizados com uma série que se inicia desde 1992 e apresentados no Gráfico abaixo, mostram uma notável trajetória de redução da pobreza e da extrema pobreza entre os anos de 2003 e 2014 e a brusca inflexão que se inicia em 2016 e prossegue em 2017. De 2014 para 2017, um total de 8,5 milhões de pessoas ingressaram no contingente da pobreza e  6,6  milhões de pessoas na condição dos extremamente pobres. E, o mais impressionante, o país regressou ao número de pessoas extremamente pobres que foi registrado doze anos antes.

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É possível voltar a se sonhar com um Brasil mais justo e solidário? Sabe-se que o caminho será árduo, face ao nível de destruição que a aventura antidemocrática provocou. Sem dúvida será necessária a formação de uma maioria na sociedade disposta a retomar não só o que foi conquistado, mas avançar na intensidade da própria democracia, com o fortalecimento de suas formas participativas e diretas. Obriga-se também a avançar na construção de um modelo de desenvolvimento edificado sobre prioridades sociais e de respeito ao meio ambiente. Portanto, não poderá ser a mera repetição daquilo que em um determinado período foi bem sucedido.

Mas os passos imediatos precisarão passar pela revogação de todos os retrocessos perpetrados nos dois últimos anos. Nesse sentido, deverá ser tomado um conjunto de medidas, iniciando-se pela convocação de um plebiscito revogatório das emendas constitucionais e legislações aprovadas, que são contrárias aos interesses populares, entre as quais a EC-95, do congelamento dos gastos e a Lei 13.467, referente à Reforma Trabalhista. Será também necessária a reconstrução com ampla participação popular de políticas de enfrentamento da pobreza e da desigualdade, devendo as mesmas assumir uma condição de direito para aqueles que as auferem. No processo de perdas atualmente vivido tem se acentuado as desigualdades regionais. Será necessário garantir recursos que permitam reverter esse quadro de empobrecimento, sempre com uma perspectiva de reforço da territorialidade. E não menos difícil, mas absolutamente necessária, uma profunda reforma tributária, que altere o caráter altamente regressivo do sistema brasileiro.

O Brasil já enfrentou ao longo de sua história pesados desafios. Poderá fazer do atual momento por que passa a oportunidade para avanços consistentes na direção da emancipação da pobreza e da desigualdade.

*Francisco Menezes é economista, pesquisador do IBASE e de ActionAid Brasil.

 

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