Adalberto Fávero (Beto)*
Ilustração de André Dahmer.
“De tanto sacrificar o essencial em favor do urgente,
acabamos por esquecer a urgência do essencial.”
(Edgar Morin)
“Um outro Mundo está a caminho.
Muitos de nós não estaremos aqui para assistir à sua chegada.
Mas quando há silencio em volta,
Se mantendo o ouvido atento,
Eu já consigo ouvi-lo respirar.”
(Arundhati Roy)
“Vale a pena morrer por tudo aquilo que, sem existir, não vale a pena viver.”
(Salvador Allende)
Os dias atuais parecem misteriosos, sombrios, tenebrosos, bárbaros e assassinos na volúpia do tempo e lugar aqui na terra brasilis, ou terra de santa cruz, para homenagear o pau brasil ou a cruz dos humanistas que usaram sempre seu humanismo como suástica a assassinar nativos, escravos e a história da nação. Chamaram isso de civilização!
A colonização foi assim: com espadas e arcabuzes mataram os viventes; com a cruz mataram os deuses daqueles que sobreviveram.
Onde estão as vozes do humanismo, cristão ou não, para falar de nossa inumanidade? Tenho a tentação de afirmar que o humanismo ocidental criou monstros e na hora da dor e impotência continuamos a chamar os monstros para nos salvarem.
Isto parece visível ao se constatar que cerca de 95% dos crimes cometidos nessa terra pelos desfavorecidos (maneira descafeinada de chamar os pobres despossuídos e empobrecidos) se devem à necessidade de sobrevivência; os outros 5% são de jovens que aprenderam a manejar uma arma pela mão dos mais velhos. Estão quase todos presos, quase todos pretos, quase todos mortos, quase todos desesperançados…
A economia de mercado (neoliberal, se fosse usar expressão mais comum) comete sete pecados capitais, os quais parecem fazer seus promotores merecerem o inferno, embora tenha a sensação de que o inventem para os demais: a economia tem primazia sobre a política, por isso o mercado prevalece; a economia é uma ciência absoluta e seus dogmas são irrefutáveis; a felicidade está no futuro sem escassez, sem desgraças e, sempre, virá amanhã; caso não se alcancem os resultados prometidos é porque desregulamentações e outras flexibilizações não foram realizadas; o desdém e a arrogância são autossuficientes e não é permitido nem mesmo o bom senso; cabe à minoria de vanguarda esclarecer a todos a direção a ser seguida e os rumos da felicidade; a revolução pelo mercado consiste em fazer tábula rasa do passado, da proteção social e da solidariedade coletiva.
Esses pecados e seus donos têm criado um jeito próprio de nacionalizar o roubo da nação, sob a defesa de que não seguir seus projetos e regras equivale a voltar ao atraso, às trevas, à colônia, ao passado vilão.
O estado (neo)liberal vem privatizando não só empresas dos setores de energia como também permitindo que grandes conglomerados econômicos abocanhem fatias da água de nosso solo e subsolo, da energia, da educação e da saúde com as promessas – sempre futuras – de melhorar as condições dos deserdados da terra. Esta falácia se releva um grande engodo, pois concede fatia insignificante do bem-estar-social aos empobrecidos.
A prisão e/ou a instituição de um estado prisional, bem como a judicialização das relações e da política, transformou-se em saída para uma elite atrasada, que mora no Brasil mas vive de frente para o mar e sonha acumular mais um punhado de dólares para viajar a Miami ou Paris… ainda que incapaz e/ou sem interesse de perceber que a Europa e os EUA são “dois continentes” gordos e pálidos.
A desigualdade, insista-se, é um projeto de sociedade de mercado, embora inconfessado e inconfessável. Chama-se de adaptação à economia mundial, globalização ou mundialização. No entanto, a desigualdade é uma escolha política, onde o valor tornou-se produto e o produto virou valor.
Teria o homem chegado ao tempo de uma evolução inevitável da sociedade mercantil, a um tal resultado incrível de se produzir a si mesmo como mercadoria?
“Na arte de matar não evoluímos muito desde os tempos primitivos. A bala o que é senão uma pequena pedra que aprendeu a voar?”
(Mia Couto)
A maioria pobre e invisível à grande parte da população continua, ainda, bastante cega de si. Enquanto muitas crianças choram como quem aprende a rezar, as crianças excluídas choram sem voz para si mesmas, sem nada esperar. Se o povo pobre resiste, prendem e matam; se se submete, já não é mais um homem ou uma mulher, porque desumanizado.
Trata-se de um modelo de sociedade galinheiro, na qual quem está em cima acostumou-se a sujar quem está embaixo. Esse tipo de sociedade organiza-se, mais ou menos, assim: todos estão viajando num ônibus e pagam igual. De repente, o ônibus encalha em um atoleiro da estrada de chão. O motorista ordena: os de 1ª classe ficam no ônibus; os de 2ª classe desçam do ônibus; os de 3ª classe empurrem o ônibus.
Nessa sociedade, aparentemente despolitizada e centrada no progresso pela tecnologia ou pelo agronegócio, as empresas proclamam transparência através do controle de desempenho, eficiência, resultados e da política de recursos humanos (humanos recursos). Talvez seja por isso que os RHs são mais importantes que as pessoas, a formação e a inserção humanizadora.
Se a revolução francesa (a base iluminista-humanista) tinha a pretensão de formar as próximas gerações para o mundo das ideias e do trabalho (separação que se mantem até a presente data), hoje a formação das crianças e jovens centra-se nas competências e nas habilidades que investem no pragmatismo e na eficiência do fazer e não no pensar e transformar… ou investe, como diria Gramsci, em formar “gorilas amestrados.”
Para dar exemplos mais objetivos e destacar uma das dimensões desse contexto (outros artigos certamente destacarão diferentes eixos de análise): a atual reforma da educação básica, juntamente com o controle de gastos da União por vinte anos, implementa um retorno à década de 40 do século passado. Assim, História, Geografia, Filosofia, Sociologia já podem ser dispensadas, pois há uma elite a pensar pelo povo e a dirigi-lo até a felicidade no futuro, amanhã. Talvez seja por essa razão que se costume dizer que sempre o pior de uma guerra são os vencedores, porque acham que podem fazer o que querem depois da vitória.
Nesse contexto e direção, depois das escolas terem copiado das empresas de produção de bens de consumo as experiências de gestão de qualidade total ou a sua versão atual centradas na eficiência, competências e resultados – dentro de uma realidade cultural que se importa com o jeito de pensar, ser e falar externo (prioritariamente norte-americano, com expressões e modos de proceder no seu cotidiano) –, multiplicam-se as escolas bilíngues com a sanha da classe privilegiada em dominar mais que fluência, os sentidos e a cultura de outrem. O inglês, a língua e o jeito de pensar do império parecem ser indispensáveis e estão na moda!
Perceba-se que ser bilíngue é mais que dominar a comunicação em outro idioma (o que pode ser rico e trazer alternativas de pesquisa e/ou trato com o outro na perspectiva planetária). Trata-se de mergulhar a criança, desde cedo, em um mundo próprio com padrões de pensar, comportar-se, alimentar-se, relacionar-se e ver o mundo, pois apenas com a sua imersão torna-se natural a comunicação e a expressão.
Toda língua-mãe está grávida de cultura, de vida, de história, de esperança e de identidade locais. Quando a língua materna morre ou perde espaço para outra língua que vem de fora, o mundo diminui. É como a morte dos bichos e a diminuição da diversidade. Nossos sonhos e nossas vidas nascem das palavras em nossa língua prenhe de história e, por essa razão, é traição mudar ou diminuir seu espaço para dar lugar a outra língua, trazendo outras vidas e/ou histórias alheias.
Há, de maneira visível e vivenciável, um fantasma viajando pelo país; ele faz lembrar Hitler ou Mussolini? O eu, a família e um deus à sua imagem é a sagrada trindade do homem/mulher branco/a atual; mais ou menos como uma espécie de prato pronto e a gosto dele (do cliente)… o resto que se lixe.
São tempos dominados por “amos” (senhores) que querem nos dizer o que fazer, de que cores gostar, o que pensar e o que falar.
Mas “a deusa terra recolhe nos braços os cansados e os maltrapilhos que dela brotaram, e se abre para lhes dar refúgio no fim da viagem. Lá embaixo, os mortos florescem”
(Eduardo Galeano).
Parece ser real que num contexto histórico com estas e outras cores e diante da sensação de impotência ou desesperança, alguns fiquem sentados em segurança como se fossem a maior bunda do mundo. Quando chegará o dia em que as pessoas briguem até pelo capim que cresce nas calçadas? Quando seremos capazes de abaixar os céus com as mãos? Quando ocorrerá o grito: “basta”? Quando se deixará de parecer manco, uma perna sempre atrasada?
O momento apresenta-se sombrio. No entanto, é do conflito e da maior tensão que nascem as possibilidades. Nesse sentido, parece ser rico e intransferível viver plenamente esse instante da história. Cabe a essa geração desamarrar as vozes, des-sonhar sonhos antigos e sonhar novos sonhos.
As barricadas se fecham, mas quase sempre abrem caminhos e fazem caminhar! Nossa casa é o caminho… Caminho, caminhante, caminhando!
Por essa razão é que se há de buscar o alternativo, o plural, o diverso; o retorno da reciprocidade; a recuperação da razão e a sensibilidade do outro que foi perdida ou assassinada. Nosso tempo não pode ser aquele em que se esqueceu a vontade de viver e brincar. Talvez já seja hora de gostar de nascer nascendo a cada dia!
Quem sabe seja o momento de transformar as crenças e as esperanças. Que nossos anjos sejam bêbados e foliões, sem deixar que nossas religiões os transformem em entidades carrancudas, sérias, arrogantes, inflexíveis e catadoras de dinheiro; reviver nossas memórias porque trancadas são feridas que não saram!
Se não há futuro, se não há sonho, tornamo-nos iguais às pedras. É preciso deixar-se olhar pelo futuro e pelos sonhos; voltar a acender o fogo com as mãos, bater palmas até com os pés; desumilhar os humilhados; tornarmo-nos, outra vez, “brincantes, brincadeiros e inventadores” de utopias.
A diversidade e a pluralidade na reflexão e ação, nesse momento, estão em crise. Querem fazer que se escolha entre a mesma coisa e a mesma coisa na mesa, na televisão, nas eleições, nas conversas, no encontro de família. E não se possa falar do diverso, do diferente, da possibilidade e do alternativo. Enquanto isso, as conquistas humanizadoras dos últimos séculos vão se tornando quinquilharias, escritos de palavras mortas!
Importa refundar a comunidade, qualquer forma de comuna, pois nela que é tecida a identidade e os abrigos são maiores, porque o único sentido de história e a história que nos faz sentido. Há que se defender imperiosamente essa possibilidade porque não se está mais disposto a viver junto, e a coesão social, juntamente com a reciprocidade e a humanização, ficou fragmentada.
Como reencontrar o coletivo da solidão na multidão? Como reencontrar o outro e os outros sem cair em mutilações holísticas? Como reeditar ou refundar o sonho desse mundo melhor e novamente voltar a estarmos, como diria Levinás, “acostumados à ideia de que o tempo caminha para algum lugar” onde haja esperanças e possibilidades? Não há carência de lugares onde a esperança possa ser preservada?
O mesmo Levinás diria que “nosso rosto e nossa alma, nós os vemos e conhecemos ao olhar os olhos e a alma do outro – esta é a identidade que cada um se dá nesse entrecruzamento de olhares.” Isto porque a humanidade começa nos que nos rodeiam, não em nós mesmos.
Insista-se nisso, pois não parece existir outro caminho que não seja a ação pessoal e coletiva na direção da tessitura de um outro momento histórico, no qual a igualdade, a reciprocidade, a justiça entre e para iguais transformem-se em projeto de sociedade para todos e de um país tecido por cidadãos livres.
A vida parece mais vasta que a história, porém sua tessitura precisa ser realizada em conjunto e em toda a sua complexidade de momento e lugar. No mundo do olho por olho todos ficam cegos!
Parece-me importante sugerir seis anúncios para um mundo melhor (algo que já lembrei em outro texto e lugar): a esperança no lugar do desdém; a igualdade no lugar da dominação do mais forte; a reabilitação da política no lugar da fatalidade do mercado; a razão crítica no lugar do cientificismo; a solidariedade em oposição ao individualismo vingativo; a justiça (não a judicialização) no lugar da vingança física, ética, econômica e/ou cultural.
Enfim, a tessitura de um outro mundo melhor, mais solidário e mais justo, na hora e lugar em que vivemos, passa necessariamente pelo retorno à capacidade de sonhar utopias que nos façam caminhar e reencontrar caminhos, caminhando.
Como diria Pablo Neruda,
Esto quiere decir que apenas
desembarcamos en la vida,
que venimos recién naciendo,
que no nos llenemos la boca
con tantos nombres inseguros,
con tantas etiquetas tristes,
con tantas letras rimbombantes,
con tanto tuyo y canto mío,
con tanta firma en los papeles.
Yo pienso confundir las cosas,
unirlas y recién nacerlas,
entreverarlas, desvestirlas,
hasta que la luz del mundo
tenga la unidad del océano,
una integridad generosa,
una fragancia crepitante.
*Adalberto Fávero é licenciado em Filosofia, Teologia e História. Mestre em Educação. Área de atuação: professor e gestão escolar.