Vinicius Aranha*
A violência pulsa nos meios sociais e imaginário brasileiro desde muito antes de uma ditadura civil-militar ter sido implantada. Trata-se de uma violência que, além de todas as explicações sociológicas possíveis, germina de um inconsciente coletivo, um ódio vindo desde os tempos coloniais e que, de tão pessoal, tão disforme e imprevisível, se torna muito difícil de falar sobre. O cinema brasileiro lidou com isso de diversas formas, da fascinação ao lamento, do deboche ácido à observação dialética, mas também já esqueceu, já deixou de lado, já preferiu abordagens que excluem essa violência imaginária como parte essencial de todo o horror que de repente explode no país. Bacurau é provavelmente a principal tentativa, desde que os anos Lula-Dilma se dissolveram, de tratar dessa violência, cara a cara, sem meios-termos – Kleber Mendonça não tem medo de mapear relações de poder violentas e mostrar gente humilde de todo tipo cooptando com barbárie, por questões de sobrevivência mas também de catarse, de vingança.
É compreensível que Bacurau se esforce tanto em localizar sua premissa e alegoria mais do que abstrair a discussão para torná-la mais abrangente. Como explicar tanta barbárie, tanto sadismo, para além de um dado momento em que se encontra as dinâmicas de poder no país? Todas as referências são sobre populismo economicista, governos entreguistas, e as consequências sanguinárias que podem surgir disso; ou seja, as promessas vazias das políticas austeras do governo Temer e a ameaça de algo ainda pior no futuro (o filme foi gravado antes das eleições presidenciais de 2018). De qualquer maneira, é um pouco decepcionante como tão pouco de Bacurau se deixa levar pelo abstrato, sem se aprofundar tanto em imaginários adoecidos e crises de identidade, por exemplo, ficando apenas nas dinâmicas de poder que se desenham nas referências de momento político do filme. Apesar de ser uma experiência divertida e bem mais enérgica que o “filme de gênero” habitual que estamos acostumados a ver ao menos no circuito artístico do cinema brasileiro, as ambições de Bacurau se encerram assim que os vilões gringos, aqueles caçadores turistas, são revelados ao espectador. Dali para frente, seguem apenas tentativas de humanização, atalhos fáceis na ação e diálogos redundantes até que, finalmente, o ato de vingança que o filme tanto promete pode se concretizar. Kleber bebe da fonte de faroestes americanos e italianos e não pretende fazer muito com essas referências, em termos de construção, subversão ou nuances psicológicas.
Ainda assim não dá para dizer que não é um filme importante, uma cápsula do tempo sobre a cultura nacional que faz por merecer, e algumas coisas da retórica que se inscreve em Bacurau são curiosas de se notar nesse sentido. Kleber Mendonça Filho é de Recife, das cidades mais desenvolvidas no Nordeste, e parte de uma certa idealização para construir a cidadezinha sertaneja de Bacurau; a premissa futurista já propulsiona a suspensão de descrença do filme, e dessa liberdade vemos algumas das coisas mais bonitas no filme: a descrição de um convívio comunitário abandonado por instâncias do Estado, uma simbiose em que prostitutas e shows queer se misturam na noite à roda de capoeira e a igreja local não é o centro do cotidiano daquelas pessoas; um ônibus escolar vira canteiro; todos ajudam na construção de sistemas de distribuição de água e outros suprimentos. Muito diferente das cidades pequenas que conhecemos adentrando o sertão de Pernambuco ou Rio Grande do Norte (onde foram as gravações), com populações num geral mais conservadoras; outra coisa é que o filme também abandona a questão do conflito em torno da água em dado momento.
A violência que irrompe na trama de Bacurau vem menos de um imaginário relacionado à realidade social e política do sertão, do que de um imaginário urbano de massacres em favelas e subúrbios pela política neoliberal de guerra às drogas – a contagem numerosa de corpos, a morte de crianças, as marcas de sangue. Claro que no papel a referência é um conflito como a Guerra de Canudos, mas em imagens o que se expressa (incluindo o próprio visual dos caçadores, snipers de elite) dialoga muito mais com as notícias cada vez mais chocantes sobre a guerra entre as polícias e as facções criminosas – e os cadáveres absurdos de inocentes que se espalham no meio do conflito. Nessa salada de referências culturais, o geral impera sobre as especificidades, mas também um “geral” que não investe tanto numa coisa própria, podendo apenas desaguar no acerto de contas previsível de um gênero. Bacurau, a cidade e o filme, é o Brasil dos noticiários mais do que um Brasil de vivências particulares – ao menos essa é a experiência que Kleber e Juliano Dornelles querem evocar, por isso um filme tão coletivo que não consegue se fincar por muito tempo em nenhum dos rostos que filma. Que verdades podem sair de tudo disso? O que o filme tem a dizer de fato sobre o histórico violento do Brasil e suas diversas camadas sociais e políticas?
Das referências cinéfilas que Kleber e Dornelles acumulam em sua ficção científica antropofágica, do mestre das distopias vulgares Paul Verhoeven até o mestre dos faroestes de horror John Carpenter, o que mais se destaca ao final, ou que mais tem a acrescentar nesse retrato alegórico do nosso país, é William Friedkin, diretor de Operação França e (o que mais me remeteu a Bacurau, desde as primeiras tomadas no caminhão) O Comboio do Medo, ambos filmes puramente físicos, determinados a levar seus personagens numa viagem só de ida rumo à demência e ao inferno. Isso porque, enquanto o estrangeiro sádico ri, enquanto o prefeito corrupto vende sua cidade e a luta de classes assume formas diversas e até obscuras no capitalismo tardio em solo brasileiro, a única solução vital no filme é a loucura, a entrega aos instintos puros como resistência ao mundo globalizado e suas pílulas, suas mídias domesticadas, suas inúmeras máscaras de colonização. Com todos os lugares-comuns e artifícios mais e menos bem-sucedidos de estilo e narrativa (às vezes tão manipulativo quanto um melodrama esquecível de Steven Spielberg, apesar da ousadia na sanguinolência disfarçar muito disso), Bacurau traz o diagnóstico preciso de que o Brasil é um país imerso em absurdo e apenas pela loucura que é possível sobreviver.
- Vinicius Aranha é estudante de cinema na Universidade Federal Fluminense. Escreve críticas de filmes e outras obras audiovisuais para o blog Conversas de Bandejão. Realizou o documentário Cantareira – Vozes pela Praça, e já trabalhou com edição de som nos curtas Volta pra Casa e Peixe.