Aqui, fora do muro

A centralidade da questão ambiental no momento atual

*Suzana Valaski e Nilson Valaski*

Política é a arte de aniquilar o outro sem guerra. É destruir / impedir o projeto de um grupo em detrimento de outro. O que nos chama a atenção nesse momento, entre tantos disparates, mudanças e rupturas, é o avanço do capital sobre as reservas naturais e populações do mundo.  O que está em jogo é a ruptura de um modelo de bem-estar social que se construiu, com altos e baixos e desse lado do hemisfério com mais baixos do que altos, a partir e sobre os escombros da segunda guerra mundial. A partir da tragédia da guerra os países do capitalismo central constroem o estado de bem-estar social para todos, da regulamentação das atividades em favor do bem comum; do direito das minorias e populações tradicionais, do direito ao meio ambiente saudável.

Não que isso não ocorra sem resistências por quem detém o poder e sem esquecer que a história do capital é a história do saque da natureza e da exploração de uma classe sobre outra. Não que vivêssemos, até então, num sonho de equilíbrio entre as nações, respeito ao meio ambiente e equidade social. Longe disto. Mas ao menos havia/assistíamos a tentativa de regular, intermediar o avanço do capital sobre ecossistemas essenciais à manutenção da vida planetária e certa proteção aos povos tradicionais. A partir da década de 80 do século anterior, o capital passa a entender que o meio ambiente faz parte do processo de acumulação. De problema na década anterior, o processo de acumulação passa a ser a solução.

O que estamos vendo agora é o avanço da globalização neoliberal mais selvagem, com governos de direita assumindo em vários locais do mundo e com o apoio de boa parte da população! No caso do Brasil gera um certo espanto, mas se olharmos nossa história percebemos que voltamos ao lugar onde sempre estivemos. Mais do que voltar para trás, essa eleição evidencia uma escolha de futuro, que sempre esteve nos planos das elites que nos governam! De explorar ao máximo nossos recursos naturais e diminuir direitos conquistados pela sociedade!

Entender como a população votou num projeto de desenvolvimento completamente contrário aos seus interesses e como essa escolha afetará nossos ecossistemas é o exercício que nos propomos com esse ensaio. Todo exercício de síntese é reducionista, mas apesar do processo ser complexo, com muitos meandros que nem chegamos a saber, os motivos são os de sempre: A elite nacional quer continuar a acumular riquezas e perpetuar-se no poder. Pode-se usar três linhas de raciocínio para tentar entender o que aconteceu no Brasil.

A primeira é a questão geopolítica.  De país periférico da economia global, mas com reservas de petróleo, carvão, ferro, minerais estratégicos, água, solo fértil, florestas e com um exército de reserva cordial ao capital, nos encontramos no centro de uma guerra por recursos entre as duas maiores economias globais. Ousamos com o projeto anterior, derrotado nas urnas, um alinhamento com outras economias periféricas, mas também com a China e Rússia nos afastando dos patrocinadores da nossa industrialização. Também tem a questão do trabalho. Estamos assistindo à 4ª etapa da revolução industrial, com o avanço da automação que aumentará os índices de desemprego. A China dá claros sinais de que vai se tornar um país mais sustentável até o final do século, despoluindo seus processos industriais, endurecendo as leis ambientais e proteção aos trabalhadores, enquanto o Brasil parece ávido em querer ocupar o espaço da economia mais poluente do mundo. Os discursos que visam a perda de direitos trabalhistas e flexibilização da legislação ambiental, além de outras bravatas como a defendida pelo futuro ministro do meio ambiente, de que as mudanças climáticas são doutrinação marxista, proposta de extinção do ministério do trabalho e o projeto escola sem partido fazem parte dessa estratégia de atrair um capital que quer menos regulamentação e mais lucro.

O segundo motivo para tentarmos arranjar uma explicação para tudo que aconteceu, de amigos e familiares tornando-se zumbis ideologizados, a cooptação dos mais pobres e para nos prepararmos para aquilo que virá com a ascensão da extrema direita, é entender que sofremos um brutal ataque da chamada soft guerra híbrida, como bem explicado no artigo de Pepe Escobar e tantos outros. O termo guerra híbrida surgiu em 2010 nas forças especiais americanas e trata-se de uma estratégia militar que mistura táticas de guerra política, ataques convencionais, ciberguerra, influência psicológica, através do uso de fakenews, diplomacia, lawfare entre outras táticas. Deve ser usada contra potências hostis, apoiando forças de resistência e vulnerabilidades políticas, militares, econômicas com a finalidade de atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos. Como países hostis entendem-se todas aquelas que se opuserem a uma ordem mundial centrada em Washington e por uma série de motivos os países que compõem o BRICS foram os primeiros alvos.

O Brasil de 2011 para cá foi alvo de todas essas ações com exceção do ataque convencional e a guerra promovida contra o país teve êxito total. Da destruição da nossa indústria de construção civil e naval, pelo abrandamento das leis trabalhistas e ambientais, pelos novos contratos de exploração do pré-sal que beneficiaram as petrolíferas americanas, o congelamento de recursos para educação, saúde e programas sociais evidenciam o sucesso do ataque.

O ataque à soberania nacional contou com o apoio dos ultra ricos, que deram o sinal verde para a mobilização da classe média, que sonha pertencer à casa grande, enquanto é explorada por ela, através de altos impostos, baixos serviços e juros abusivos, segundo a explicação do sociólogo Jessé de Souza. De emergente potência mundial, que decide que os lucros obtidos pela exploração dos recursos naturais com emprego de tecnologia nacional seriam usados em benefício da população e do desenvolvimento nacional, passamos a bater continência a Washington e ver os recursos da exploração serem repassados ao capital estrangeiro.

O terceiro motivo pode ser associado à própria formação social e histórica do país, na sua extensão, nas suas características ecológicas e na evolução política do Estado e suas instituições, que sempre serviram aos interesses da acumulação do capital pelas elites e atuando contra a maioria da população.  As diferenças regionais e as enormes desigualdades entre as classes que formam a sociedade brasileira já estavam formadas antes da industrialização, com atividades econômicas dispersas pelo enorme território nacional. Grandes polos regionais com vocação de exportação de alguma commodity, sistema escravocrata, altíssima concentração de renda, riqueza e poder marcam a economia colonial. Esse período deixara como herança formas autoritárias, dependentes e atrasadas de convivência social. Mas é essa elite que, junto com o capital estrangeiro e investimento estatal, financia o processo de industrialização nacional, perpetuando-se no poder.

No Brasil, nas últimas décadas, o modelo de desenvolvimento hegemônico, centrado no crescimento econômico e nas relações de mercado, impactou fortemente a geografia do campo e das cidades, contribuindo para a expulsão de milhões de pessoas das áreas rurais, que, sem acesso a terras para produzir, deslocaram-se para as cidades, onde experimentam graves situações de exclusão social. O intenso processo de urbanização por qual passou o Brasil é muito mais que uma questão demográfica, territorial ou econômica. A urbanização representou uma mudança nos padrões culturais, nos hábitos de consumo, criação de novos atores sociais, novos valores éticos e políticos, diversificação produtiva e estratificação social. Profundas mudanças econômicas, sociais e políticas que criaram uma complexa sociedade urbana industrial, marcada por ser pobre, de consumo, heterogênea e desigual.

Principalmente durante as décadas de 60 e 70 do século passado, uma massa humana que se encontrava dispersa por um amplo território, com boa parte dela presa em estruturas produtivas atrasadas e de baixa produtividade, uma massa sem recursos e sem escolaridade foi sendo constantemente depositada nas cidades. É justamente essa massa de trabalhadores urbanos vulneráveis, devido aos baixos salários, ao desemprego, às condições precárias de moradia das periferias e da ausência de políticas públicas, que elegeu o novo presidente.

E o novo governo representa o velho, as oligarquias e o interesse do capital acumulativo. Não tem nada de despreparado. Pelo menos nas questões sobre meio ambiente e reservas indígenas, sabem muito bem o que querem e o que vão fazer, dilapidar e entregar ao máximo nossas reservas naturais ao capital acumulativo. O desprezo pelo ministério do meio ambiente, os ataques contra o Ibama e  o instituto Chico Mendes, acusando-os de estar contra o desenvolvimento nacional e reduzindo-os a fábricas de multa, a flexibilização das leis ambientais, como as que regem as unidades de conservação e as que concedem licenças ambientais, a flexibilização das leis da exploração do pré-sal e dos aquíferos, a desistência de sediar a Conferência sobre o clima, os discursos a favor da caça e da enorme importância do agronegócio para o país, indicam que a exploração dos nossos recursos naturais, juntamente com as privatizações, será o grande mantenedor do novo governo, que está a serviço do grande capital.

A centralidade nos discursos das questões indígenas, dos quilombolas e outras comunidades tradicionais no governo eleito também indica o grande interesse do capital pelas áreas naturais. Basta olhar uma foto aérea das principais reservas indígenas do país, ou de um Parque Nacional , para entender o interesse do agronegócio. Já está até desenhado. Vai dar dó perder tanta área de floresta, tanto ecossistema essencial, sem falar nas comunidades tradicionais com sua cultura única.

Para finalizar, trazemos a reflexão do filósofo africano Severino Elias Ngoenha que diz que a era do bem-estar social acabou e que veremos mais muros sendo construídos, mais sistemas como o apartheid surgindo, mais conflitos, mais imigração, mais xenofobia. Muros físicos ou imaginários construídos principalmente par afastar os pobres das ilhas de riqueza, conforto e tecnologia que só quem pode pagar é que pode usufruir. E aqui na terra brasilis estamos a construir muros, distraídos escutando a música que vem das panelas. O problema é que estaremos do lado de fora dos muros.

*Suzana Valaski é física e matemática, especialista em Informática e mestre em Educação pela PUCPR.
Nilson Valaski é biólogo, especialista em Agricultura Biodinâmica, mestre em Tecnologia Ambiental e doutorando de Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR.

 

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