Crônica de Luiz Carlos Heleno
No mercadinho da vila, chegando ao caixa para pagar os produtos escolhidos, o advogado Dr. Ladislau estranhou que todos estavam para além da porta de saída, quase na rua: inclusive o proprietário e os dois funcionários. Havia ali um tumulto. Aguardou um pouco, e todos retornaram falando alto, de forma atropelada e espalhafatosa. O proprietário dizendo “bom dia, doutor, desculpe a desatenção, é que aconteceu um assalto agora, ali no ponto de ônibus”. Enquanto pagava a conta, Ladislau ouvia com atenção os comentários. A mocinha empacotadora, enquanto ensacava os itens, sacava com entusiasmo seu ponto de vista: “Tá vendo, se a mulher tivesse armada, não teria sido assaltada. Se os bandidos podem ter armas, a gente também pode”.
O advogado reparou que a dona do mercadinho estava socorrendo a vítima do assalto num outro canto do estabelecimento. Um outro funcionário, pouco mais velho que a mocinha, comentou que a mulher assaltada estava tremendo, e que a dona do mercado estava acalmando a coitada. Concluiu ainda informando que o bandido levou a bolsa da mulher.
O advogado se dirigiu à mocinha e falou:
– Você ouviu? O assaltante levou a bolsa dela.
– Eu sei, senhor (disse a mocinha), mas se ela tivesse armada ele não teria levado.
O advogado, de forma quase paternal, perguntou:
– Se a mulher tivesse um revólver, por exemplo, onde estaria guardada esta arma?
A mocinha meneou a cabeça e disse baixinho “acho que na bolsa”.
O advogado espalmou as mãos e indagou:
– Eee…?
A mocinha respondeu de forma interrogativa:
– E o quê?…
De forma ainda mais calma, Dr. Ladislau, arguiu por sua vez:
– …E o que foi que o ladrão levou?
Dr. Ladislau deu bom dia a todos e seguiu seu caminho. Advogado trabalhista, jamais teve qualquer pretensão de atuar em outras áreas do Direito; muito menos na área criminal. Mas, matéria afeta aos brasileiros de plantão, Ladislau tem lido muito e refletido sobre o famoso “pacote anticrime” apresentado pelo ex-juiz Sergio Moro, para apreciação e aprovação do Congresso Nacional.
Embora a situação cotidiana vivenciada no mercadinho da vila tenha relação quase periférica com o “pacote anticrime”, deduziu que de alguma maneira a passionalidade da mocinha sobre a assaltada “ter uma arma ou não”, é a mesma passionalidade que perpassa a relação entre os poderes constituídos nas grandes esferas de decisão nacional. A mocinha possivelmente é mais sincera (ou ingênua, talvez) em sua manifestação de querer o bem da mulher que foi assaltada. Ainda que de forma perigosa. Numa situação desigual, em que o ladrão possuía a arma, a senhora (desarmada) entregou a bolsa. Num assalto, a iminência da morte estará sempre presente. Com relação ao pacote anticrime, juristas e entidades identificam subjetividades ameaçadoras subjacentes ao texto apresentado: dependendo de interpretações, interpelações e contextos em que se mensura a quem se quer proteger, a iminência de muitas mortes estará igualmente presente.
Já no interior de seu apartamento, o advogado continuou seu exercício pensante, falando consigo mesmo: “ora, seja visto (lido, assistido, ouvido) o conjunto de vazamentos – sem entrar aqui no mérito da veracidade parcial ou total – das trocas de mensagens entre o ex-juiz Moro e o Dr. Deltan: o que pensar disso tudo? Fins justificam os meios? A história da humanidade é repleta de exemplos em que esse tipo de conduta imperou, à esquerda e à direita dos lados envolvidos”.
Dr. Ladislau sentou-se à sacada de seu apartamento, e leu atentamente dois trechos grifados por ele numa matéria impressa a respeito do pacote anticrime:
“As mudanças, segundo Moro, foram organizadas em 19 objetivos, que visam atacar três questões centrais: a corrupção, o crime organizado e os crimes violentos”.
UOL, Congresso em Foco.
“… a organização Conectas Direitos Humanos criticou a proposta frontalmente. ‘Esse pacote cria uma legitimação de mortes praticadas pela polícia, o que é muito preocupante’, avalia o coordenador do Programa de Violência Institucional da organização, Rafael Custódio”.
UOL, Congresso em Foco
Observando a praça do bairro, e ouvindo o gorjear de algumas aves, o advogado assuntou seu espírito com alguns acontecimentos e fatos ilustrativos associados aos temas “violência”, “crime”, ou “corrupção”: o aumento do número de feminicídios no país, com agressores sendo orientados para se manifestarem que agiram sob o efeito de “forte emoção”; o acirramento do ódio nas ruas, com agressões moral e física em alguns casos; o próprio vazamento das conversas entre o ex-juiz (agora ministro e autor do “pacote anticrime”), orientando a parte da acusação em processo contra um ex-presidente da república. Se as conversas vazadas confirmarem que houve um crime praticado pelo autor do “pacote anticrime”, não será de estranhar que alguém, tão passional quanto o autor, seja capaz de detectar “pseudos perigos contra a nação” e desandar a dar ordens para que destacamentos paramilitares venham acometer ações de “legítima defesa” Brasil afora, tendo como justificativa o pacote virado lei. E pode ser que esse alguém passional (ou parcial), em nome da coisa pública, continue defendendo piamente (ou por convicção) que a “legítima defesa” foi realizada em nome de um “bem maior”. Resumo da história: se a senhora assaltada tivesse uma arma na bolsa, o ladrão a teria levado. É de se pensar que no caso do autor do pacote anticrime, em se verificando a veracidade das conversas vazadas, ele tenha se apoderado da única arma do réu: o direito de ter garantido um julgamento com lisura e imparcialidade no processo.
Por fim, o Dr. Ladislau fez associação ociosa e descompromissada com relação às personagens envolvidas nos episódios: um ladrão e um juiz. Rindo, recordou de cenas na Arena da Baixada, quando o seu Atlético está em campo. O juiz, quando comete um erro por equívoco ou por intencionalidade, prejudicando um dos times, uma das torcidas se revolta aos berros: juiz ladrão!
Sem contar o coro que se segue afinado e injuriado:
– Ei, juiz, tchá tchá tchá tcho tchú!