Karine Vicelli
Uma consequência devastadora é observável na sociedade à medida que ideias nacionalistas ganham repercussão: a segregação. Em meados da década de 60 o psicanalista francês Jacques Lacan já previa uma reedição do horror dos campos de concentração em nome dos avanços da ciência aliada ao mercado. Baseando-se na teoria freudiana sobre a psicologia das massas, Lacan testemunhou que o fator unificador de um grupo é a existência de um inimigo externo consistente, ou seja, ao passo que um grupo se une, certamente será encontrada fora dele uma oposição. Assim, quando um agrupamento propõe o nivelamento de uma categoria, o que ocorre em uma proposta de unificação patriótica por exemplo, em algum lugar será constituída uma parte desprezada que, via de regra, será excluída e hostilizada. Portanto, quanto mais agregação, mais segregação.
De acordo com Freud, o ego (o “eu”, a concepção de si) se estrutura tal como se compõe um grupo, tornando intrínseco todo o conteúdo que lhe é agradável e expulsando de seu território psíquico tudo o que é oposto a seu bem-estar. Nesse processo, ao expulsar uma ideia inconveniente, o ego projeta o conteúdo desagradável no seu exterior, ou seja, em outro(s) indivíduo(s). Isso é mais facilmente observável em crianças bem pequenas, quando uma faz uma travessura, entretanto, acusa outra de ter agido no lugar dela. No caso, não se trata de uma mentira infantil e sim de uma projeção, já que a criança protagonista crê que foi a outra que cometeu o ato. Mas a realidade aponta que não são as crianças as únicas a fazerem projeções deste tipo.
Esse rechaço de uma ideia própria é uma operação psíquica inconsciente, estrutural e atemporal. Funciona como a produção de lixo: o consumo do dia a dia deixa uma tarefa insatisfatória, a de ter que fazer algo com o resto. Assim, reserva-se um espaço para despejo deste resto com o propósito de jogar esse material “fora”. Ora, não há uma cava no planeta que constitua o espaço de fora, portanto é preciso designar um lugar para o lixo, de preferência longe do contato. Mas não demora muito para que esse trabalho seja feito novamente, afinal, o consumo é frequente. O modo como se lida com o lixo pode ser uma metáfora do que o aparelho psíquico tende a fazer: a partir de um julgamento de valor o ego projeta as ideias desprezíveis para fora, designando outra pessoa como depositária deste material. Esse trabalho de projeção é ininterrupto e a princípio necessário para que o ego não precise se haver com um desagrado diante de um conteúdo supostamente inapropriado. Por exemplo, é favorável ao ego considerar que o outro seja o causador dos seus males, isso para não se haver com a própria responsabilidade diante de sua vida.
Um conteúdo residual expulso deve retornar dando noticias de sua existência, uma vez que nunca fora aniquilado, apenas rejeitado. Esse retorno faz com que o ego tenha que retomar seu trabalho de despejo tanto quanto considere necessário. Ao depositar no semelhante o que incomoda em si próprio, o ego aposta em uma autoimagem ideal. Essa operação inevitavelmente leva à segregação daquele que recebe o conteúdo da projeção egóica, movimento que tende a ser carregado de agressividade e potencializado de acordo com determinados contextos de uma sociedade. Algumas formas de exclusão social oriundas deste arremate egóico são bem ilustrativas: o racismo, os conflitos políticos e aquelas causadas pelos efeitos midiáticos. É importante notar que em qualquer forma de exclusão o outro é interpretado como uma encarnação do “mal”.
Observando a coligação mercado e cientificismo, por exemplo, é possível perceber como a previsão de Lacan é comprovada, já que o impacto segregacionista é produzido e alimentado pelo mercado. No neoliberalismo o cidadão é reduzido a consumidor, afinal, é a mídia quem dita como e com qual objeto as pessoas devem usufruir e esse imperativo convida à segregação, pois oferta-se mais uma satisfação via consumo, dentre outras tantas infindáveis, mas que não permite a inclusão de todos pelas vias monetárias. Resta a exclusão aqueles que não entram nessa lógica, pois aqueles que não podem consumir os mesmos produtos são considerados deficitários. A fantasia de uma superioridade causa ao consumidor uma compulsão de consumo tal como uma impossibilidade de dar ouvidos ao que de fato desejam além da demanda de mercado.
Pode-se também entender o racismo como outra via de segregação social. Conforme o contexto de época, determinado traço do ser humano pode ser um componente odiado se vier a representar algo diferente como raça, orientação sexual ou gênero. Se esse traço não corresponder ao padrão exigido pelo ego, ou seja, se de alguma forma tal característica vier a afetar o sujeito, certamente a segregação se apresentará como efeito. O racismo seria um paradigma desse rechaço, afinal, impossibilitado de exterminar o traço estranho que o acomete, o sujeito chega ao ponto de buscar o extermínio do outro cidadão correspondente a esse perfil. Pode-se supor como exemplo um homem comum, que ao se encontrar com características próprias supostamente femininas se incomoda a ponto de odiar as mulheres ou homens homossexuais, aqueles que são identificados como femininos. Não é à toa a quantidade de crimes misóginos e homofóbicos que certamente têm a gênese nessa questão.
Na política, a segregação egóica também é evidente. Baseando- se em discursos venais, os políticos que na sua candidatura se restringem a apresentar a imoralidade de seus adversários acabam revelando um conteúdo próprio segundo a lógica freudiana, também pela via da projeção. Por exemplo, o apontamento da corrupção do partido opositor costuma ser freneticamente citado em discursos políticos de direita, mais do que propostas em si. Há uma lógica utilitária nesta inferência inesgotável, as escolhas populares muitas vezes conjugam com esse discurso do ideal, do correto e de bem, novamente ilustrando que importa mais o que agrada ao ego e não o que é favorável à população. Por isso discursos falaciosos permeados por garantias utópicas repercutem ainda que compostos por estribilhos rasos, do tipo “vamos acabar com a corrupção”… Mas como reestruturar um sistema corrompido? O povo parece não considerar os métodos, tampouco a sua legitimidade. É como se bastasse apenas crer para acontecer. Irremediavelmente, a crença triunfa frente ao conhecimento em um país onde a educação virou a oposição e a fé se tornou a verdade. De qualquer forma, é indiscutível que a estrutura do ego continuará a fazer o mal ser depositado no outro, todavia, é preciso operar apesar disso em prol do bem comum. O sociólogo Zygmunt Bauman já nos alertou sobre as nossas opções: ou o bem-estar coletivo, ou a extinção em massa.