A pá de karl e o vendedor ambulante

A DESPREVIDÊNCIA SOCIAL COMO PANO DE FUNDO

Luiz Carlos Heleno

Lá pelos idos de sua vida acadêmica, no século XIX, o jovem karl – filósofo e pensador alemão, atravessou uma rua na direção de uma loja de penhor onde, por falta de grana, deixou no prego o casaco que trazia dependurado no ombro esquerdo (ombro esquerdo, viu!), o que lhe possibilitou um saque em cash. E que sorte a de karl, pois naquela tarde estava até calorzinho. Tão logo se apossou dos trocados que lhe permitiram quitar algumas “continhas” (com o padeiro, o leiteiro, e o quitandeiro), ficou tão feliz que até entrou numa confeitaria para comprar umas tortas alemãs e levar para casa.

Já em 2019, findando o verão, um jovem de nome André, no sul do Brasil, contando com a mesma idade que tinha Karl por ocasião do penhor do casaco, dirigiu a palavra a um senhor nas ruas de Curitiba, perguntando-lhe se o mesmo não teria feito parte de um grupo de pessoas que coordenaram um projeto chamado “bibliotecas comunitárias”. O interlocutor respondeu afirmativamente, “fui um dos colaboradores”, e uma conversa se travou a partir daquele momento.

O leitor, com cócegas no seu “desconfiômetro”, perguntará o que há de relação entre os dois fatos acima relatados. Pois bem, sigamos.

Desde que penhorara o casaco, passando pelo seu resgate, o jovem Karl esperou mais uns seis anos para que alguns de seus escritos fossem publicados. Um perrengue para manter o pão de cada dia. Esses textos, que deram base para a elaboração de um livro chamado “O capital”, censurados na Rússia, puderam ser lidos aqui e ali, em fragmentos, oficial ou clandestinamente, a partir de 1844. As premissas e a tese, presentes na obra do jovem Karl, não demoraram em botar a Europa em alerta. Para espanto do velho continente, enquanto escrevia sua obra máxima, Karl, em coautoria com o amigo e intelectual Friedrich, escreveram um livreto de capa vermelha, chamado “O manifesto comunista”. Agora sim, de vez, um fantasma começava a se atrever pela região. Os meninos propunham, em síntese, o “comunismo”. O que seria isto? No português mais tupiniquim, seria uma espécie de “virada de mesa” na conjuntura social. Sem a necessidade de estender o debate nesta crônica, Karl e Friedrich estavam a fim de enlouquecer os governos da época com a proposta “ordinária” (segundo os governantes e poderosos de então) de derrubar a lógica da sociedade industrial perversa ainda na sua infância, e substituí-la (olha a “dos caras!!!) pelo inadmissível comunismo, restando aos resistentes apenas uma opção: a morte. Não a morte matada ou degolada ou guilhotinada (só se fosse necessário, claro), mas sim a morte da figura central do usurpador, do explorador, que dizimava famílias inteiras pela fome, pela doença, e pelas péssimas condições de trabalho. A tal virada de mesa apenas faria com que esses senhores preferissem a morte a qualquer corte em seus privilégios (segundo Karl). De onde os meninos tiraram essa ideia estapafúrdia? Só porque famílias inteiras trabalhavam um turno único de 18 horas? Ora bolas, perguntavam: o que há com Karl (às vezes esqueciam de Friedrich, pois Karl era mais contundente), Por que essa ira toda? Será que karl não vê que a morte faz parte da vida e a vida é apenas o oposto da morte? Ora, ora, ora…

André, deste encontro com o ex-colaborador do projeto, quer contar um fato que ocorreu com ele: iniciou por informar que anda todas as cidades da região metropolitana vendendo bugigangas, e que quando chega a cada uma dessas cidades, ele procura saber onde fica a biblioteca, e que nas poucas horas que se permite dar uma folga a si mesmo, gosta de ler um pouco de tudo. Contou ainda – e esse é o fato principal -, que ao ver uma caixa de livros encostada à porta de entrada de uma dessas bibliotecas, foi informado de que os livros seriam negociados com um reciclador. Então perguntou se ele poderia escolher alguns livros daquela caixa para levar para casa, o que prontamente foi permitido pela atendente da biblioteca. Disse ainda que estava muito contente neste dia, por dois motivos: vendera bastante mercadoria (coisas que ele comprava pra lá da Ponte da Amizade), e pelo fato de ter conseguido carregar com ele quatro livros que iriam desaparecer numa fábrica de reciclar papel. O homem com quem André conversava, e que se chamava Paulo, quis ver os livros, e lendo os títulos das capas surradas, enumerou mentalmente: um livro de Paulo Coelho, outro de Stephen King, um terceiro de Ignácio de Loyola Brandão e, pasmem!, um volume judiado de “O capital”, de Karl Marx.

Paulo perguntou a André se ele já havia lido “O Capital”. O jovem então explicou que havia folheado um exemplar lá na biblioteca comunitária, que era sobre o capital, e que se chamava Material de Apoio à Leitura D’O Capital”, de vários autores.

Disse ainda que achou bem difícil, mas que algumas coisas chamaram sua atenção durante a breve leitura que fez: por exemplo, o tal de “valor de uso”, ele explicou que usa sempre quando vai ao Paraguai. Esse negócio de que é o consumo que faz chegar no quanto vale o produto é bem interessante: tem época que ele vende bem e dá pra tirar uns bons trocados, mas disse também que tem vez que ele vende meio que “embuchado”; só dá pra tirar o que gastou, não sobrando nem para um bailinho de fim de semana. Já do “valor de troca”, ele até lembrou uma situação: disse que quando leu o tal livro sobre capital, dizia lá que um tanto de trigo pode ser trocado por um tanto de ferro. Bem pensado, afirmou, completando que concordava com isso até um certo ponto: é porque se a gente juntar dois objetos, e eles ficam igual em valor, a gente troca no “pau a pau”. Disse ainda que até faz isso de vez em quando, principalmente quando o camarada é lá um sujeito meio “na pendura” que nem ele; mas se o sujeito for meio metido, meio que querendo tirar proveito, aí é a lábia que entra na parada. Disse que não está escrito lá no livro que “a lábia entra na parada”, mas que isso ele aprendeu foi no “porta a porta” mesmo, ali no tete-a-tete, olho no olho do freguês.

Paulo, professor de história, riu do relato de André, achando mesmo que ele era uma “jóia” a ser lapidada. Mas não disse isso a ele. Convidou-o para um café com pão de queijo na Boca Maldita, e depois de conversarem por um bom tempo, André pediu licença para ir ao banheiro. Pelo fato de André ter falado da dificuldade com o livro sobre “O capital”, Paulo aproveitou sua ausência e lembrou-se de outras leituras em que Karl relata, por ocasião da publicação de “O capital” na Rússia em 1867, ter ficado surpreso que sua obra “concluída” não tenha sido censurada na terra dos czares, já que nenhum dos fragmentos (durante a escrita) recebera autorização de publicação por parte deste mesmo governo. Lembrou também que o censor justificou que o livro completo tornara-se um tratado de leitura difícil e densa, e que ele permitiu a publicação porque nenhum operário russo iria entender aquele “catatau” (claro que o censor não utilizou este termo). Como se um filme lhe viesse por fotogramas, Paulo disse a si mesmo que o mundo girou e o século XX trouxe às nações reviravoltas que saltaram da apoteose festiva às encruzilhadas de sobrevivência: a Revolução Russa de 1917, o “crash da bolsa” de 1929 a partir dos EUA, a revolução na China em 1949, os barbudos a partir da Sierra Maestra Cubana em 1959, a queda do muro de Berlim em 1989, a grande turbulência nas zonas de fronteiras já no limiar do terceiro milênio, que arrastou com ela uma onda de xenofobia nos países centrais da economia mundial, as conquistas tímidas, mas importantes, de um estado de bem estar social no Brasil de 1988 a 2016, e o susto que nos deixou quase todos catalépticos, com a ascensão ao poder, no Brasil, de uma figura que traz na bagagem uma ceifada geral em quase tudo que foi conquistado em termos de direitos sociais, com um discurso colado ao ódio e ao preconceito, com as bênçãos de um “pseudeus” pra lá de surreal. Não diria nada desta sua reflexão a André.

O tempo já ia tarde, e André precisava seguir caminho. Então se despediu. Paulo mandou abraços aos outros jovens que frequentavam a biblioteca comunitária, convidando-o para novos contatos para marcar outras conversas como essa de hoje, que ele achou muito interessante, inclusive a razão apresentada por André de o porquê ter iniciado a leitura daquele livro em que vários autores buscam maneiras mais acessíveis de interpretar “O capital”. A razão era simples: André fora orientado pelo próprio pai que lhe dissera, no jeito caipira dele, que para abrir qualquer negócio, primeiro era preciso “juntar capital” (Mais tarde, sentado no sofá de casa, Paulo riria deste fato curioso).

Paulo perguntou ainda a André se, com as vendas que fazia, recolhia algo para a previdência social, pensando em segurança no futuro. André respondeu que não valia a pena, porque já está com 27 anos, e só cinco de contribuição. Complementou ainda que prefere juntar capital e montar um negócio próprio nem que seja no quintal de casa. Dirigindo-se ao amigo e tratando-o por professor, André fez ainda uma última pergunta querendo saber se “Carli Marxi” (assim ele pronunciava o nome de Karl) tinha escrito mais algum livro na vida. Paulo riu e respondeu que sim, mas que André tinha razão: o cara ainda hoje continua meio difícil de ser lido, mas que isso não quer dizer que não vale a pena tentar. Nem tocou no assunto sobre “o manifesto…” (da parceria de Karl com Friedrich) diante de um menino que era o retrato da “desprevidência social brasileira”.

Ao voltar para casa, André acompanhou pelo noticiário do Jornal da Noite a notícia de que as autoridades federais estão definindo um novo teto de compra para os ambulantes sacoleiros que cruzam semanalmente a ponte para fazer compras no Paraguai, e que a reforma da previdência será apresentada ao Congresso Nacional na semana seguinte. Depois de ouvir os pontos principais da proposta, André, enquanto escovava os dentes, pensou: “bem capaz que eu me aposento um dia!”.