A lógica da linguagem, a autoverdade e o macaco Tião

Marcus Maia (UFRJ/CNPq)

 

“O valor da autoverdade está muito menos no que é dito e muito mais no fato de dizer. ‘Dizer tudo’ é o único fato que importa (…) Se o valor está no ato de dizer e não no conteúdo do que é dito, não há como perceber que não há nenhuma verdade no que é dito”.  Eliane Brum

 

A capacidade da linguagem é universal na espécie humana e nos iguala a todos ab origine. Somos humanos porque nascemos dotados de linguagem. A descoberta, na virada do século, do gene FoxP2, diretamente relacionado à capacidade linguística, demonstrou no âmbito do projeto científico internacional Genoma Humano, a universalidade da linguagem.  Nascemos todos os seres humanos com uma mesma predisposição genética para a linguagem. Por esta razão, desenvolveram-se no planeta Terra milhares de línguas, todas produtos da genética humana, o que nos democratiza de modo radical. Sendo produtos do mesmo cérebro, desenvolvido ao longo da filogenia da espécie, as cerca de sete mil línguas faladas hoje são, no fundo, muito parecidas. Não há “línguas primitivas”, todas as línguas sendo lógicas, articuladas, bem formadas, aptas a organizar o pensamento e a expressar plenamente os conteúdos psicológicos de seus falantes.

É esse mesmo design universal da linguagem que nos permite fazer referência a objetos do mundo, concretos ou abstratos, relacionando imagens acústicas ou gestuais a conceitos. É esse mesmo mecanismo universal que referencia, por exemplo, um mesmo animal, com o som ‘cão’, em português,  com o som ‘hund’, em alemão, com o som ‘dog’ em inglês, com o som ‘perro’, em espanhol, com o som ‘chien’, em francês, com o som ‘ijorosa’, na língua indígena brasileira Karajá… É esse mesmo design universal que nos permite fazer muitas coisas com a linguagem, em qualquer língua: pensar, murmurar, gritar, rezar, cantar, chamar, convencer, elogiar,  e mesmo mentir e xingar. Assim, que a linguagem possa ser usada com ímpeto de violência para depreciar e ofender não é novidade e não deveria causar espécie. Provavelmente, em tempos remotos, a violência verbal deve ter sido ainda maior do que hoje, no mundo dito pós-moderno. O que parece de fato assustadoramente novo e perigoso é a tentativa estúpida de violação do próprio design da linguagem pela chamada autoverdade, que ameaça ignobilmente explodir a tessitura do universo da referência linguística como se fosse capaz de fissão nuclear.

Diante da autoverdade, que almeja insensatamente desnaturar a própria lógica referencial da linguagem, impropérios e palavrões são trivialidades. Claro, há desde sempre o jogo manipulativo de palavras. Há, sim, o preconceito linguístico, os embates semânticos de dominação. Como já disse o professor Rajagopalan, provavelmente “lavabo fede menos do que latrina” ou “descansar no Senhor” parece doer menos a muitos do que simplesmente morrer. Mas são eufemismos que se dão no âmbito da referência linguística.

Em contraste, a autoverdade é violência contra a própria referência e parece capaz de gerar ameaça exponencialmente maior do que a mera manipulação verbal que pode sempre ser desmontada e denunciada, pois o jogo se daria na dimensão balizadora da referência. Se, na década de 1980, um jornal noticiou o início da guerra das Malvinas como “Inglaterra retoma as Falklands”, outro jornal contrastou a versão pró-Inglaterra, noticiando “Inglaterra invade as Malvinas”.  São visões opostas, mas estamos ainda no universo da referência.

Agora, quando o ato de enunciar parece ser só o que basta, sem referente ou referência, a violência é primal. É violência contra os próprios fundamentos da Lógica, da Semântica e da História. Na autoverdade, o ato de dizer é o que importa, danem-se referentes e referência.  Daí o desprezo ao saber e às universidades. É o paradoxo do ódio à cultura e às conquistas civilizatórias. Só o que parece valer nesse quadro absurdo em que nos encontramos é a enunciação perversa fundadora de autoverdades. Não importa se os enunciados são fakes ou não, explodam-se as referências. A terra é plana. Nunca houve ditadura no Brasil. Os portugueses nunca pisaram na África para traficar escravos. Não se estupra mulher feia. As universidades particulares é que fazem pesquisas no Brasil. Movimento político ideológico é escola sem partido. Menino veste azul, menina veste rosa. Na fronteira entre o risível e o ridículo, sem quaisquer critérios lógicos ou históricos, o que vale é se afundar na verdade fundamentalista e sensacionalista do dizer dogmático. Tenta-se demolir a História e a Lógica. Explodindo a semântica tudo passaria a ser possível. Só que não.

Só que não. A arquitetura universal da linguagem antecede seu uso e seu mau uso e a ignorantização em curso já dá mostras de que não se sustentará. Já nos primeiros cem dias do desgoverno da autoverdade, as pesquisas demonstravam o arrependimento dos que se deixaram seduzir. Sedução pela negativa, para mudar “isso daí”, código restrito incapaz de mínima análise coerente. O rei vai ficando nu aos olhos dos súditos. A lógica universal da semântica deverá ser restaurada, inexoravelmente. Os espertalhões de plantão, é claro, vão tentar sempre manter o cabresto do dogma e o butim grotesco até a última mala de dinheiro que lhes for possível assaltar. Por isso, o país verá ainda por alguns anos, cada vez mais envergonhado, o estertor nauseabundo da autoverdade. Haverá perdas irreparáveis para o país, sem dúvida. Não se desce tão baixo na ilusão da antilinguagem impunemente. Mas as perdas maiores serão mesmo para os atores canastrões da autoverdade e seu séquito macabro de “ungidos”, que estão fadados a figurar na História ainda abaixo do macaco Tião, o chimpanzé do Zoológico carioca que jogava suas fezes como autoverdade nos passantes e que, nos fins dos anos 80, recebeu inacreditáveis 400 mil votos “de protesto” na eleição para prefeito. Afinal, o destino das fezes é sempre o mesmo: o esgoto.