Clóvis Gruner*

Como um caçador em um safári, em setembro o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, se referiu aos docentes das universidades federais como “zebras gordas” que precisavam ser “caçadas”. No mesmo mês, ao Estadão, afirmou que as “universidades são caras e têm muito desperdício com coisas que não têm nada a ver com produção científica e educação. Têm a ver com politicagem, ideologização e balbúrdia”. E emendou: “Vamos dar uma volta em alguns campus por aí? Tem cracolândia. Estamos em situação fiscal difícil e onde tiver balbúrdia vamos pra cima”.
O erro gramatical na frase – palavra latina, o plural de campus é campi – é o menor dos problemas em um ministro que, apesar da Educação, os comete frequentemente mesmo em português. A ênfase em “caçar” e “ir para cima” revela o que o governo Bolsonaro, desde a campanha, faz questão de não esconder: a face predatória de uma administração que decidiu fazer da educação, em todos os seus níveis, terra arrasada.
As falas de Weintraub, aliás, repercutem a postura de um governo que desqualifica dados e evidências científicas, mesmo as suas próprias. Em julho, o presidente Bolsonaro e o general Augusto Heleno criticaram o INPE, acusado de “estar a serviço de alguma ONG” após o instituto divulgar, em junho, relatório que revelava um aumento de 88% nos índices de desmatamento da Amazônia em relação ao mesmo período do ano passado.
A truculência e a irresponsabilidade caminham, pari passu, ao desmonte econômico. O orçamento para 2020, enviado pelo Executivo ao parlamento no final de agosto, prevê um corte de 18% nos investimentos em educação. Contrariando seu próprio discurso, todos os níveis serão afetados, do ensino básico à pós-graduação. A previsão de aumento de 6,2% no orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia é duplamente enganosa.
Primeiro, porque a pasta termina 2019 deficitária, e a verba a mais prevista para 2020 servirá para cobrir o rombo produzido pelos inúmeros cortes impostos ao longo desse ano. Além disso, o governo investe pesado e agressivamente em algumas propostas, como a fusão da Capes e do CNPq e o Future-se, voltado às universidades federais, com o objetivo claramente político de esvaziar algumas áreas do conhecimento e privilegiar aquelas que, de acordo com a lógica neoliberal vigente, garantem um “retorno imediato”.
O conhecimento como produto
Talvez a área do conhecimento que mais de perto vem sentindo as consequências desse duplo processo – de um lado, a desqualificação e a perseguição políticas; de outro, a mercantilização, resultado da submissão da educação e da ciência à razão neoliberal – sejam as chamadas Humanidades. Antes mesmo do corte de verbas, em maio, o ministro Abraham Weintraub já anunciava a pretensão de sua pasta em investir menos nos cursos de Humanas e destinar recursos às graduações que dão um “retorno social mais imediato”.
Segundo Weintraub, o fundamental da educação é o ensino de habilidades como “poder ler, escrever, fazer contas”, além de um ofício que “gere renda para a pessoa, bem-estar para a família, que melhore a sociedade em volta dela”. No horizonte de expectativas do atual governo, seremos uma sociedade de encanadores, formados preferencialmente nas escolas cívico-militares.
O ataque às Humanas não é novo. A ofensiva, que recrudesceu nos últimos anos, orientou e ajudou a dar forma a políticas públicas na área de Educação, tais como a nova Base Nacional Curricular e a Reforma do Ensino Médio. É ela também, principalmente, quem está na origem da sanha persecutória que mobiliza e sustenta ideologicamente movimentos políticos reacionários como o “Escola sem Partido”.
Um dos argumentos é de que nós, das Humanas, estamos em descompasso com as exigências do “mundo contemporâneo”, expressão usualmente empregada como eufemismo para “mercado”. Sob essa ótica, a produção e transmissão do conhecimento devem adequar-se, necessariamente, às exigências práticas de uma realidade em “constante transformação”. A tendência é replicar essa crítica argumentando que as Humanidades produzem um “pensamento crítico”, objeção legítima, mas insuficiente.
Entre outras coisas, porque se nos objetam que somos inúteis porque desconectados do “mundo prático” e incapazes de darmos “retorno social imediato”, me parece fundamental mostrarmos o contrário, entre outras razões, porque é preciso confrontar o discurso perverso que, atendendo a interesses não raro escusos, confundem utilidade com utilitarismo, e reduzem a educação básica e universitária ao papel de formar mão de obra para suprir as demandas do mercado.
Um projeto de país
Nas universidades, são principalmente os cursos de Humanas os responsáveis pela formação de novos docentes e por atividades de extensão, a principal responsável pela inserção da academia nas comunidades externas a ela. O conhecimento produzido também está disponível aos poderes públicos e à iniciativa privada, que nem sempre sabem, ou querem, fazer dele um bom uso.
Disciplinas como a Sociologia, a Antropologia e a História são fundamentais para o desenvolvimento e implantação de políticas públicas de saúde, segurança, cultura e, óbvio, educação, entre outras. A agricultura e o desenvolvimento urbano precisam da Geografia e das Ciências Sociais. A implantação e multiplicação de círculos de leitura, bibliotecas e outros espaços e aparelhos culturais serão precárias sem os profissionais de Letras e Filosofia. A preservação da memória e do patrimônio histórico e cultural não depende apenas de arquitetos, mas igualmente de historiadores.
Lemos pouco no Brasil, mas parte significativa do pouco que se lê é fruto da comunidade de leitores formada pelo trabalho de estudantes e profissionais de Humanas. Além disso, não é nada negligenciável nossa contribuição em áreas distintas como a organização de arquivos, públicos e privados; pesquisas e monitoramento da opinião pública; a produção e consultoria cultural e museológica; o mercado editorial; a comunicação; o turismo; o design; a moda; a produção audiovisual e o desenvolvimento de games, entre outros.
O professor de Filosofia da USP, Renato Janine Ribeiro, conta a história de um professor de uma escola técnica de Israel que, depois de ouvir os alunos reclamarem que perdiam tempo estudando ciências humanas ao invés de aprenderem coisas práticas, pediu que voltassem das suas férias com o seguinte trabalho: cada um deles deveria apresentar sugestão de um método eficiente, seguro e barato para transportar, do norte ao sul do país, cinco mil litros de sangue mensais.
Na volta às aulas, as soluções apresentadas eram as mais engenhosas: correios aéreos, caminhões refrigerados, sistemas de canalização, drones. O professor analisou uma a uma, com atenção, e declarou que como nenhum dos discentes perguntou para que serviria aquilo, eles teriam mais aulas de Humanas. A história revela o enorme abismo de intransigência e ignorância, mas também o alto grau de perversidade por trás das intenções de Bolsonaro e Weintraub.
Uma formação humanística é fundamental à formação de indivíduos autônomos e éticos, condição essencial ao exercício da cidadania, certamente. Mas também para inserir-se no mundo do trabalho de maneira crítica e criativa: não se responde aos desafios de um mundo cada vez mais complexo com habilidades mecânicas limitadas à uma formação tecnicista. O investimento em retornos imediatos no curtíssimo prazo terá um custo social e econômico altíssimo no longo prazo. O problema é que parece ser exatamente isso que Bolsonaro e Weintraub desejam.
*Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR)