ENTREVISTA COM FREI BETTO*
Pátria Distraída – Nos últimos 50 anos tivemos vários golpes, uns mais explícitos e outros menos, para que os empobrecidos continuassem à margem e a riqueza continuasse acumulada e se acumulando nas mesmas mãos… Em quais dimensões é real essa leitura de contexto?
Frei Betto – A democracia na América Latina é débil e incompleta. Ela é meramente delegativa para os eleitores (que a cada dois anos, no Brasil, votam em candidatos e depois nem sequer se lembram do nome deles); representativa para os setores da elite (como a bancada do B – boi, bala, Bíblia, bola e banco); e nada participativa para o povo. Nós votamos, o poder econômico elege.
Os golpes foram perpetrados a cada vez que a elite se viu ameaçada, e sempre com o apoio do governo dos EUA. Até se diz que nunca houve golpe naquele país porque não há embaixada usamericana em Washington…
A meu ver a saída, para a conquista da verdadeira democracia, é o fortalecimento dos movimentos sociais. Organizar e mobilizar o povo, o que não se fez em 13 anos de governo do PT, conforme analiso em meu livro “A mosca azul – reflexões sobre o poder” (Rocco).
Trata-se da máxima recorrente” façamos a revolução antes que o povo a faça?”
Não, trata-se da filosofia de Lampedusa – “É preciso tudo mudar para tudo permanecer como está”. A única revolução que a burguesia fez foi a francesa.
As várias redemocratizacões desse período não serviram para a educação e formação popular?
Infelizmente isso não foi feito. O PT deveria ter assumido a sua obrigação moral e política de promover, em todo o Brasil, a alfabetização política de nosso povo. Bem que tentei, ao organizar, no bojo do Fome Zero, a Recid – Rede de Educação Cidadã, que chegou a ter 200 educadores contratados pelo governo federal e mais 800 voluntários. Porém, não recebemos suficiente apoio. Resultado: em vez de o PT formar protagonistas sociais e políticos, formou uma nação de consumistas, ao favorecer o acesso da população, prioritariamente, aos bens pessoais (celular, carro, linha branca etc), quando deveria ter sido aos bens sociais (educação, saúde, transporte etc). Tudo isso analiso em meu livro “Calendário do Poder” (Rocco).
Em que medida os últimos governos terão contribuído para a desmobilização e quebra das esperanças?
Estamos colhendo o que plantamos, como assinalo no livro “A mosca azul”. Em 13 anos não promovemos nenhuma reforma estrutural. Nem a política, da qual agora somos vítimas. Procuramos assegurar a governabilidade “por cima”, em alianças, algumas delas espúrias, com os partidos políticos, quando deveríamos ter priorizado a costura da governabilidade “por baixo”, com o fortalecimento dos movimentos sociais, como fez Evo Morales na Bolívia.
De onde vem o ódio aos pobres e às minorias desse momento atual? Será reflexo da onda conservadora que assola o país e parte do planeta?
Agora a direita saiu do armário e a esquerda entrou… Esse ódio de classe, ao qual Marx se refere, sempre existiu. Faltavam eram redes digitais para propagá-los. O mundo é de direita! O capitalismo tem tanto êxito ideológico porque corresponde à nossa natureza egocêntrica. Seus valores são antievangélicos: competição, e não cooperação; acumulação, e não partilha; apropriação, e não solidariedade.
Só um intenso trabalho de educação popular, segundo o método Paulo Freire, é capaz de inverter esse processo.
Em que se diferencia o papel da juventude (em sua combatividade) nesses 50 últimos anos?
Eu gostaria muito que os jovens de hoje lessem meu livro “Cartas da Prisão”, relançado pela Companhia das Letras em dezembro de 2017. Ali é retratada a minha geração na sua luta contra a ditadura militar. A juventude é naturalmente combativa, por estar livre de vínculos institucionais, como casamento e educação de filhos, emprego fixo, ambições profissionais etc.
O capitalismo sabe disso e trata de idiotizar os jovens por meio da indústria de entretenimento, da leniência com as drogas, de propostas absurdas como “Escola sem partido” etc.
Hoje, muitos jovens são dependentes químicos. Em meus 20 anos havia drogas mas quase não havia drogados. Por quê? Porque éramos viciados em utopia. Não queríamos mudar apenas o cabelo. Queríamos mudar o Brasil e o mundo.
Estou convencido: quanto menos utopia, mais droga; quanto mais utopia, menos droga. O que é insuportável é viver sem sonhos.
- Frei Betto é religioso dominicano reconhecido em todo o mundo por seu trabalho em defesa dos Direitos Humanos. É autor de mais de 60 livros, lidos e premiados no Brasil e no exterior.