A crise da democracia liberal

Adalberto Fávero*

cSTELLSNestes tempos sombrios, enganosos e espinhosos em que as dúvidas e convicções sobre a fragilidade de nossa democracia são evidentes e imponderáveis, crescem as certezas de que esse modelo não nos representa e é fiel depositário de interesses alheios.

Há questões intransferíveis para quem ainda sonha com um mundo de iguais e no qual seja possível interferir como sujeitos de um novo tempo, justo e igual para todos os cidadãos e onde não existam cidadãos “mais iguais que os demais.”

A democracia, historicamente, nasce burguesa e propriedade de uma classe e do modelo capitalistas. Diante dessa realidade histórica qual a esperança desse modelo para nós brasileiros?

Nas perspectivas das questões acima mencionadas, quais seriam os princípios e as possibilidades de uma democracia para todos como iguais? No contexto atual, a ascensão de personagens com Trump, Le Pen, Bolsonaro, entre outros… são expressões do exaurir desse modelo atual de democracia? No contexto atual, a separação entre Estado e Nação não abre as portas para aventuras nazifascistas? Por que razão isso acontece?

A proteção mútua dos três poderes e as influências econômicas/políticas na composição desses poderes evidenciam a falência do modelo representativo? Será possível algum modelo de democracia que garanta acesso pleno a todos os cidadãos de uma nação?

A mídia tradicional comunga e faz parte da crise e do fim da Democracia liberal? Em que medida as novas mídias aprofundam esse cenário e/ou possibilitam alternativas de novas experiências de participação e ação direta para o bem-estar coletivo?

Não parece existir uma resposta única a estas interrogações e nem mesmo uma saída à esquerda, ao centro ou à direita na expressão organizacional tradicional.

Na busca por reflexões alternativas e análises desse momento obscuro, mas sempre aberto a possibilidades, pois é da tensão e conflito que historicamente têm surgido as inovações e saídas revolucionárias, apresenta-se (a seguir) trechos da análise de um livro ilustrativo para o momento e tais interrogações. Trata-se da Obra de Manuel Castells, Ruptura, a crise da democracia liberal, Zahar, 2018. Rio de Janeiro.

Destacamos alguns elementos para abordar o Tema, porém trata-se de obra indispensável para o momento. Não porque traga toda a verdade ou resposta, mas pela possibilidade de uma análise ilustradora e essencial para o momento presente do país.

“…Existe, porém, uma crise ainda mais profunda, que tem consequências devastadoras sobre a (in)capacidade de lidar com as múltiplas crises que envenenam nossas vidas: a ruptura da relação entre governantes e governados. A desconfiança nas instituições, em quase todo o mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum. Não é uma questão de opção política, de direita ou de esquerda. A ruptura é mais profunda, tanto em nível emocional quanto cognitivo. Trata-se do colapso gradual de um modelo político de representação e governança: a democracia liberal que se havia consolidado nos dois últimos séculos, à custa de lágrimas, suor e sangue, contra os Estados autoritários e o arbítrio institucional… Não é uma rejeição à democracia, mas à democracia liberal tal como existe em cada país, em nome da “democracia real”, como proclamou na Espanha o movimento 15-M…Dessa rejeição, em outros países, surgem lideranças políticas que, na prática, negam as formas partidárias existentes e alteram de forma profunda a ordem política nacional e mundial. Trump. Braxit, Le Pen, Macron (coveiro de partidos) são expressões significativas de uma ordem (ou de um caos) pós-liberal, assim como o é a total decomposição do sistema político do Brasil, país fundamental na América Latina. Ou de um México, vítima do Narcoestado. Ou de uma Venezuela pós-Chaves em quase guerra civil. Ou da democracia sul-coreana, com a destituição popular da corrupta presidente Park Geun-hye, entregue ao feitiço de Choi Soon-sil, a líder de uma seita ocultista. Ou do presidente da Filipinas que pratica a execução sumária como forma de resolver a insegurança…Dessas crises institucionais surgiram na última década algumas revoluções populares que procuraram articular uma nova relação entre representação parlamentar e representação social…” ( vide p.9s)

“…Contudo, após milênios de construção de instituições às quais possamos delegar o poder soberano que, teoricamente, nós cidadãos detemos, aspiramos algo mais. E de fato é isso que a democracia liberal nos propões. A saber: respeito pelos direitos básicos das pessoas e dos direitos políticos dos cidadãos, incluídas as liberdades de associação, reunião e expressão, mediante o império da lei protegida pelos tribunais; separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Eleição livre, periódica e contrastada dos que ocupam os cargos decisórios em cada um dos poderes; submissão do estado, e de todos os seus aparelhos, àqueles que receberam a delegação do poder dos cidadãos; possibilidade de rever e atualizar a constituição na qual se plasmaram princípios das instituições democráticas. E, claro, exclusão dos poderes econômicos ou ideológicos na condução dos assuntos públicos mediante sua influência oculta sobre o sistema político. Por mais simples que o modelo pareça, séculos de sangue, suor e lágrimas foram o preço pago para chegar a sua realização na prática institucional e na vida social, mesmo levando em conta seus múltiplos desvios em relação aos princípios de representação em que aparecem em letra miúda nas leis e na ação enviesada de parlamentares, juízes e governantes…Em teoria, esse desajuste se autocorrige na democracia liberal com a pluralidade de opções e eleições periódicas para escolher entre essas opções. Na prática a escolha se limita àquelas opções que já estão enraizadas nas instituições e nos interesses criados na sociedade, com obstáculos de todo o tipo aos que tentam acessar uma corriola bem-delimitada. E pior, os atores políticos fundamentais, ou seja, os partidos, podem diferir em políticas, mas concordam em manter o monopólio do poder dentro de um quadro de possibilidades preestabelecidas por eles mesmos. A política se profissionaliza e os políticos se tornam um grupo social que defende interesses comuns acima dos interesses daqueles que eles dizem representar: forma-se uma classe política que, com honrosas exceções, transcende ideologias e cuida de seu monopólio…Só resta o poder descarnado de que as coisas são assim, e aqueles que não as aceitarem que saiam às ruas, onde a polícia os espera. Essa é a crise de legitimidade.” (ps.11-14)

“A crise da democracia liberal resulta da conjunção de vários processos que se reforçam mutuamente. A globalização da economia e da comunicação solapou e desestruturou as economias nacionais e limitou a capacidade do Estado-nação de responder em seu âmbito a problemas que são globais na origem, tais como crises financeiras, a violação dos direitos humanos, a mudança climática, a economia criminosa ou o terrorismo…A desigualdade social resultante entre valorizadores e desvalorizados é a mais alta da história recente. E mais, a lógica irrestrita do mercado acentua as diferenças entre capacidades segundo o que é útil ou não às redes globais de capital, de produção e de consumo, de tal modo que, além de desigualdade,  há polarização; ou seja, os ricos estão cada vez mais ricos, sobretudo no vértice da pirâmide, e os pobres cada vez mais pobres…Contudo, quanto mais o Estado-nação se distancia da nação que ele representa, mais se dissociam o Estado e a nação, com a consequente crise  de legitimidade na mente dos cidadãos, mantidos à margem de decisões essenciais para sua vida, tomadas para além das instituições de representação direta. A essa crise da representação de interesses se une uma crise identitária como resultante da globalização sobre o Estado. Quanto menos controle as pessoas têm sobre o mercado e sobre seu Estado, mais se recolhem numa identidade própria que não possa ser dissolvida pela vertigem dos fluxos globais. Refugiam-se em sua nação, em seu território, em seu deus…” (ps. 17 -19)

“A crise dessa velha ordem política está dotando múltiplas formas. A subversão das instituições democráticas por caudilhos narcisistas que se apossam das molas do poder a partir da repugnância das pessoas com a podridão institucional e a injustiça social; manipulação midiática das esperanças frustradas por encantadores de serpentes; a renovação aparente e transitória da representação política através da cooptação dos projetos de mudança; a consolidação das máfias no poder e de teocracias fundamentalistas, aproveitando as estratégias geopolíticas dos poderes mundiais; a pura e simples volta à brutalidade irrestrita do Estado em boa parte do mundo, da Rússia à China, da África neocolonial aos neofascismos do Leste Europeu e às marés ditatoriais na América Latina. E, enfim, o entrincheiramento no cinismo político, disfarçado de possibilismo realista, dos restos da política partidária como forma de representação. Uma lenta agonia daquilo que foi essa ordem política. De fato, a ruptura da relação institucional entre governantes e governados cria uma situação caótica que é particularmente problemática no contexto da evolução mais ampla de nossa existência como espécie no planeta azul…”

“E já que a destruição de um Estado para criar outro leva necessariamente ao Terror, como já aprendemos no século XX, poderíamos experimentar e ter a paciência histórica de ver como os embriões de liberdade plantados em nossa mente por nossa prática vão crescendo e se transformando. Não necessariamente para construir uma ordem nova, mas sim, quem sabe, para configurar um caos criativo no qual aprendamos a fluir com a vida, em vez de aprisioná-la em burocracias e programá-la em algoritmos. Dada nossa experiência histórica, aprender a viver no caos talvez não seja tão nocivo quanto conformar-se à disciplina de uma ordem. ” (ps.144-148)

Após alguns destaques que julgamos vitais na obra de Manuel Castells, importa insistir que temos a oportunidade de viver um tempo de crise e transição profunda. O Brasil experimentou o fim de um modelo que já não responde às exigências dos cidadãos e condena as maiorias à miséria econômica, política, social e cultural.

Talvez mais que em qualquer outra nação, anuncia-se uma vida melhor sempre para o futuro, enquanto se mata a esperança do presente. Estado e nação distanciam-se com o profundo descrédito nos três poderes da República e com a tomada de assalto do futuro das próximas gerações. A coisa pública (res publica) historicamente tratada como propriedade de alguns ou de uma classe, hoje assiste à radicalização da posse dos destinos e esperanças.

É desse caos e do sonho de que um país melhor é possível que, talvez, possamos ousar o novo, praticar a pluralidade e diversidade, gestar esperança e um “novo modelo” no qual todos os cidadãos sejam sujeitos do seu presente e futuro.

*Adalberto Fávero é licenciado em Filosofia, Teologia e História. Mestre em Educação. Área de atuação: professor e gestão escolar.

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