Entrevista com o juiz de Execuções Penais João Marcos Buch
Em junho desse ano, uma decisão do juiz da 3ª Vara Criminal e de Execuções Penais de Joinville (SC), João Marcos Buch, interditou o Presídio Regional da cidade. A determinação proibia a entrada de novos detentos até que a lotação estivesse abaixo do limite estabelecido pelo magistrado, 840 presos para a ala masculina e 72 na feminina, números já acima da capacidade máxima do presídio, de 611 e 53, respectivamente.
Quando João Marcos Buch embargou a unidade – decisão revogada poucos dias depois pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) – cerca de 1.200 presos superlotavam suas celas.
A medida não é inédita nem estranha à atuação do magistrado. Natural de Porto União, cidade ao Norte de Santa Catarina, João Marcos Buch tem mais de duas décadas de magistratura. Sua atuação tornou-o referência nas discussões sobre segurança pública e sobre os inúmeros e crônicos problemas do sistema carcerário brasileiro. Nessa entrevista exclusiva ao Pátria Distraída, concedida por e-mail, ele fala das medidas anticrime do Ministro Sérgio Moro, da situação das prisões e penitenciárias no Brasil – tema recorrente nos inúmeros artigos que assina nas mídias periódica ou especializada – e de alguns dos projetos que coordena à frente da Vara de Execuções Penais.
Sua primeira apreciação do chamado “Projeto anticrime”, apresentado pelo ministro Sérgio Moro no começo de maio, foi bastante dura. Em artigo para o site “Justificando”, o senhor afirmou que o projeto “não sobrevive a uma análise acadêmica do primeiro ano do curso de Direito”, classificando-o de “atécnico”. Sua opinião permanece? Quais aspectos do projeto mais o preocupam?
- Permanece. O projeto, que eu chamo de embrulho anticrime, não veio sustentado em estudos acadêmicos, tampouco motivado por debates. Ele é projeto de um pequeno grupo, tendo à frente o ex-juiz e atual ministro de Bolsonaro, Sérgio Moro. Inicialmente, inclusive, o projeto não tinha exposição de motivos, o que foi acrescentado apenas um tempo depois. Isso é muito curioso.
Entre outras coisas, o projeto ofende a impessoalidade, pois nomina o PCC e outras facções, como que feito exclusivamente para esses grupos. O fato é que se o PCC mudar seu nome para PCCRenovado por exemplo, ele automaticamente estará fora da qualificação de organização criminosa. Há ainda o instituto do plea bargain, importado dos EUA. Ora, nosso sistema jurídico é romano-germânico, acusatório. Esse dispositivo não sobreviverá ao filtro constitucional.
Aliás, no aspecto constitucional, o projeto adentra em matérias já julgadas pelo STF, como a vedação de progressão de regime para determinados delitos. O STF já declarou que essa vedação é inconstitucional (lei dos crimes hediondos). Ou seja, há uma arrogância singular nesse embrulho.
Além da ineficácia dos resultados que promete alcançar, o projeto de Moro concede aos policiais, na sua opinião e de vários outros estudiosos, de dentro ou não do campo jurídico, “uma verdadeira licença para matar”. O senhor pode falar um pouco sobre isso?
- Infelizmente, Moro deseja inserir no ordenamento jurídico o que intitulo de legítima defesa vidente, intuitiva, premonitória, a licença para matar. A positiva legítima defesa é um instituto histórico em nosso ordenamento. Por ela é permitido o uso progressivo da força para conter um ato de violência e salvar uma vítima. Ela existe quando um crime está na iminência de acontecer ou está acontecendo. Então, para proteger a vida do inocente, pode-se chegar a tirar a vida do agressor.
Na nova modalidade desejada por Moro, o policial que em risco iminente de conflito armado prevenir injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem, agirá sob o amparo da legítima defesa, agora na modalidade vidente, intuitiva, premonitória. A premonição está no “risco iminente” e no “prevenir”, e é dessas expressões que a licença para matar virá. Quando o policial visualizar uma pessoa portando uma arma, especialmente numa favela – pois o foco do projeto é seletivamente a favela –, independentemente do sujeito estar apontando a arma contra alguém ou tiver intenção de cometer algum ato violento, o sniper o abaterá e para tanto se utilizará da legítima defesa vidente.
Talvez poucos percebam o perigo disso tudo. Primeiro flexibilizou-se a posse de armas ao cidadão, e agora pretende-se conceder ao policial licença para matar o cidadão que esteja portando uma arma! Aonde isso nos levará eu não sei, mas temo pela vida. A polícia deveria ser valorizada, com plano de carreira justo, melhores salários, amparo técnico. Mas sobre isso não se fala. Num discurso violador dos princípios básicos do Estado democrático de direito, o que o governo federal faz é empurrar o policial para um conflito letal, onde matará e, também, morrerá. É fato que quanto mais a polícia mata, mais ela morre. O Estado deve respeitar o ser humano acima de tudo. Não se faz segurança pública com violência pública.
A população carcerária brasileira deu um salto nas últimas décadas, passando de aproximadamente 200 mil presos no final da década de 1980, para quase 800 mil atualmente, tornando o Brasil, em números absolutos, a terceira população prisional do mundo. A que o senhor atribui esse aumento vertiginoso?
- As respostas são complexas para esse fenômeno. Tentarei pincelar algumas possibilidades. Primeiro, o Estado brasileiro não respeita a criminologia quando lança mãos de projetos envolvendo o Direito Penal. A partir de casos excepcionais de crimes violentos que ganham a mídia, o governo apresenta projetos de leis e os parlamentares os aprovam a toque de caixa, para atender ao clamor popular. Não se faz uma análise constitucional, não se ouve a academia, não se avalia o impacto econômico. São leis penais de emergência, pílulas milagrosas que visam satisfazer sentimentos paranoicos coletivos de vingança.
Se o Estado desse ouvidos aos expertos, à ciência, saberia avaliar melhor como reduzir os índices de violência (e aqui um parênteses: a redução do número de homicídios no país no último ano se deve muito mais ao fato de que o ápice, o teto, foi em 2017, com a guerra entre facções. Agora, houve uma acomodação desses conflitos. Essa redução assim é muito frágil e, de uma hora para outra, novos conflitos podem surgir, rebeliões podem estourar e os índices subirão muito novamente. Além disso, as mortes em confrontos com a polícia aumentaram).
O fato é que a violência segue o caminho da riqueza. Se desejamos um país não violento, precisamos criar políticas sérias de distribuição de renda e diminuição do abismo socioeconômico que carimba nossa sociedade. E se adentrarmos mesmo nessa questão, numa análise histórica, veremos que sofremos do resultado de séculos de escravidão, extermínio dos índios, violação do meio ambiente, violência de gênero, numa nação marcada pelo conflito e pela violência opressora de uma elite branca e machista que não arreda o pé da casa grande e nela não deixa ninguém entrar, uma elite que sempre teve todas as oportunidades e que nunca reconheceu que grande parte da população jamais gozou dessas oportunidades.
Essa é a causa da violência que enfrentamos todos os dias, só não vê quem não quer ou se fechou em sua bolha. Costumo dizer que a Bastilha está logo ali. No mais, seguindo na questão colocada, sobre a superpopulação carcerária, foi a partir da Lei Antidrogas, de 2006, que houve um incremento exponencial no número de presos. Isso já vinha ocorrendo desde a década de 1990, mas 2006 foi um marco importante. Pela nova lei, mais pessoas passaram a ser categorizadas como traficantes, porque o usuário não ia mais preso. Assim, se o intuito da polícia e do sistema era prender, então o negócio era autuar a pessoa como traficante.
Há estudos que apontam inclusive que o que passou a definir uma prisão e condenação por tráfico, e não por uso de drogas, é a localidade geográfica do fato. Se na periferia, a chance de se classificar o fato como tráfico é muito maior que se o flagrante ocorrer em bairros da classe média ou rica. É o processo de criminalização da pobreza a que me referi acima. Em resumo, a falta de políticas públicas sociais, econômicas e educacionais, aliada ao populismo governamental e à insana guerra contra as drogas resulta nesse superencarceramento sem precedentes na história.
Além da superlotação, os cárceres brasileiros enfrentam problemas crônicos, que se arrastam há décadas, sem perspectiva de solução a curto prazo. O que fazer para minimizar o problema carcerário? Projetos como o que prevê que os apenados paguem ao Estado por suas despesas na prisão, não agravam ainda mais a situação já precária em que vivem a esmagadora maioria dos presos? Se solução há, o que falta para resolver o problema?
- Ao mesmo tempo em que se recrudesceram as penas, que o tráfico de drogas passou a prever mais anos de cadeia, que se investiu nas forças policiais, não se construíram cadeias. O resultado é que a superlotação ultrapassou o limite da licitude há tempos. Vivemos um holocausto prisional, com extermínio de jovens em sua maioria pretos e pardos. E a solução não está na construção de cadeias. Qualquer governante que diga que acabará com a superlotação com a construção de presídios e penitenciárias, sejam públicas ou em parcerias público-privadas, mentirá.
O custo para manter uma pessoa presa, além daquele já despendido para construir a prisão, se for para atender os moldes legais, é de mais de R$3.000,00 mensais. Ou seja, numa país que precisa investir em educação e saúde, obviamente não haverá dinheiro para atender o déficit atual de mais de 350.000 vagas. E sobre o trabalho, é preciso esclarecer a população e especialmente o Senado Federal, que a Lei de Execução Penal já prevê que esse é um direito do preso, inclusive com retenção de 25% do seu salário para manutenção da unidade onde se encontra.
Ou seja, antes de se falar em projetos que obrigam o preso a trabalhar, recomendo aos senadores que visitem as prisões e constatem que todo preso deseja trabalhar, mas que o Estado não cumpre seu papel e não propicia oportunidades de trabalho. Assim, a solução, para resolver esse grave problema se encontra, além das políticas sociais antes mencionadas, nas alternativas penais, em medidas outras que evitem a prisão, ao tempo em que tragam o infrator para uma rede de atenção que enfrente os fatores prévios da sua vida e que o fizeram caminhar à margem.
A chamada “escalada da violência” foi umas das responsáveis por eleger o atual governo, que prometeu colocar um fim a ela. Mas para além da percepção alimentada e retroalimentada diariamente por parte da mídia e setores do governo, qual a dimensão da violência e quem ela atinge principalmente? Dito de outra forma: pode-se dizer que, em certa medida, o discurso sobre a violência, além de racial e classista, é parte também de um projeto político de manutenção das desigualdades sociais?
- Foucault e criminólogos críticos já alertaram para isso. Cada vez mais, entrando nas prisões por este país e sendo juiz de direito que atua perante o sistema de justiça criminal, tenho me convencido que o direito penal, como colocado, serve para encarcerar a pobreza e neutralizar o indivíduo que por um motivo ou outro não aceitou o papel que o Estado lhe destinou, de cordeiro.
Não significa que eu esteja justificando o cometimento de crimes, absolutamente; todo aquele que causar um mal a outra pessoa deve ser responsabilizado. O que digo é que nas prisões estão apenas pessoas economicamente vulneráveis. Em sua maior parte, são pessoas jovens e, num país racista, pretas e pardas. Então sim, na minha opinião, o Brasil está mais do que nunca seguindo as diretrizes estadunidenses a fim de, em um Estado neoliberal, encarcerar para manter as desigualdades sociais.
Sua atuação como juiz de Execução Penal tem se pautado pela observância dos direitos e garantias dos presos. Sob a sua tutela, bons projetos de ressocialização vêm sendo implementados, incluindo o acesso à leitura e à escrita de presos que integraram um projeto que, inclusive, já deu à luz dois livros: “Contos tirados de mim” e “Prisioneiros e juízes: relatos do cárcere”. Como é a experiência de ser um juiz preocupado com os direitos humanos de apenados em um país onde prevalece a cultura da violência e a desqualificação desses mesmos direitos, e onde o próprio governo faz coro ao senso comum segundo o qual “bandido bom é bandido morto”? O que o move e inspira? Há outros projetos semelhantes em andamento?
- A experiência de ser um juiz de execução penal que luta pelo respeito às garantias constitucionais e aos direitos humanos dentro das prisões é muito difícil. Há momentos em que penso que por mais que eu faça, por mais que insista, não há solução. O sistema é muito forte, ainda mais agora sob o novo governo, onde autoridades lançam manifestações como essas, de que bandido bom é bandido morto, que é só não roubar, não estuprar, não matar, que não vai preso.
Ora, essas temerárias e fascistas manifestações, quando advindas de uma autoridade, servem como ressonância para, no chão da prisão, se cometerem mais abusos e mais violência contra quem está preso. Tenho consciência de que sou parte do sistema, mas tento muito, todos os dias, fazer com que esse sistema se renda à Constituição. Não saberia agir diferente. A forma como faço isso é através da jurisdição, onde aplico os ditames constitucionais e os tratados de direitos humanos internalizados em nosso país.
Também fomento projetos de remição da pena pela leitura e oficina literária (há ainda projetos de teatro, de jogos de xadrez, música).
Acredito que, pela literatura, todos nós nos ressignificamos. Ela nos permite ampliar nosso universo e compreender um pouco mais de onde viemos e como chegamos até aqui. Aos presos essa experiência literária talvez seja ainda mais impactante, pois eles não têm como viver as experiências do mundo que as pessoas libertas vivem. Além disso, aqueles que fazem parte das oficinas literárias têm demonstrado um crescimento humano impressionante.
Sobre esse projeto inclusive foi lançado um curta chamado “Licença Poética”, que conta um pouco a história de um leitor detento, do livro lido e do autor do livro, com o encontro entre os dois. A cineasta Ilaine Melo, quando do lançamento, afirmou muito claramente que a literatura tem mostrado que talvez nós, pessoas livres, é que estamos presas e que eles, os presos, estão se libertando, pois estão lendo, estão fazendo literatura.