Ao enfrentamento

Aspectos da ofensiva do capital contra o trabalho no Brasil e pistas para resistir

Thomaz Ferreira Jensen*

Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada (…)

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.

Thiago de Mello, “Para os que virão”

A exploração do trabalho pelo capital constitui o principal fundamento das desigualdades sociais em uma sociedade capitalista. A riqueza criada pelo trabalhador é apropriada privadamente e acumulada nas mãos de poucos. A assimetria de poder entre capital e trabalho faz com que o primeiro tenha grande facilidade para impor unilateralmente as condições de exploração e gestão da força de trabalho que contrata.

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Para fazer frente a essa situação, os trabalhadores se organizam coletivamente e lutam pelo reconhecimento de direitos sociais e trabalhistas, cuja implantação foi fundamental para a redução das desigualdades ao longo do século XX. Dois atores se destacam nesse processo: os sindicatos e o Estado, que buscam, através da negociação coletiva e da legislação, estabelecer limites à exploração e à acumulação de capital.

A regulação social das relações de trabalho se desenvolveu de maneira diferenciada, apresentando particularidades nas sociedades periféricas, sobretudo naquelas marcadas por uma herança escravagista, como a brasileira. Aqui, o trabalho informal, os bicos e a precariedade sempre foram a regra, sobretudo no campo e na periferia dos grandes centros urbanos.

Em 2017, o trabalho informal alcançou 37,3 milhões de pessoas no Brasil, o que representava 40,8% da população ocupada, ou dois em cada cinco trabalhadores do país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Apesar desse legado estrutural, a legislação introduzida a partir da década de 1930 e consagrada na Consolidação das Leis do Trabalho em 1943 representou a melhoria nas condições de contratação do trabalhador industrial, assegurando-lhe certo nível de proteção social, o que apenas posteriormente foi estendido ao trabalhador rural. Isso não foi, porém, suficiente para superar características como o excedente de força de trabalho, os baixos salários, as excessivas e intensas jornadas de trabalho, a alta informalidade, a elevada rotatividade, a forte desigualdade de renda, as práticas discriminatórias de gênero, de orientação sexual, de raça/cor, de origem regional etc., que continuam presentes no mercado de trabalho brasileiro, distinguindo trabalhadores formais e informais, sindicalmente organizados e desorganizados, do campo e da cidade.

Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE,o rendimento médio mensal domiciliar per capita no país foi de R$ 1.511 em 2017. As menores médias foram no Nordeste (R$ 984) e Norte (R$ 1.011), regiões onde quase metade da população (respectivamente, 49,9% e 48,1%) tinha rendimento médio mensal domiciliar per capita de até meio salário mínimo.

Em 2017, os trabalhadores brancos (R$ 2.615) ganhavam, em média, 72,5% mais que os pretos ou pardos (R$ 1.516) e os homens (R$ 2.261) recebiam 29,7% a mais que as mulheres (R$ 1.743). O rendimento-hora dos brancos superava o dos pretos ou pardos em todos os níveis de escolaridade, e a maior diferença estava no nível superior: R$ 31,9 por hora para os brancos contra R$ 22,3 por hora para pretos ou pardos.

As transformações verificadas no capitalismo no final do século XX, com a ascensão da financeirização e da globalização, sob hegemonia do neoliberalismo, já incidiram, portanto, sobre condições historicamente precárias e situações bastante desiguais em termos de acesso a direitos. Por um lado, há uma reconfiguração da classe trabalhadora, com o avanço no número de empregados no setor de serviços e a diminuição relativa dos operários, ampliação dos pequenos negócios informais, dos falsos autônomos, bem como do trabalho precário. Por outro lado, as constantes inovações tecnológicas poupadoras de força de trabalho e as mudanças nas formas de gestão das empresas provocam processos migratórios e o deslocamento de trabalho para regiões que pagam menores salários e asseguram menos direitos.

Esse processo se intensifica por meio de alterações na legislação e nas formas de contratação a exemplo da terceirização, do trabalho temporário, em tempo parcial, do contrato intermitente, que aumentam a incerteza e a vulnerabilidade do trabalhador. Acentua-se, assim, a heterogeneidade e a segmentação da classe trabalhadora, o que dificulta a criação de identidade coletiva de classe e sua capacidade de ação coletiva.

Esse contexto desfavorável, porém, não é somente brasileiro, mas sim, mundial. Se até os anos 1970, houve uma progressiva ampliação de direitos e da proteção social, a partir dos anos 1980 parece ocorrer um período de vingança do capital contra o trabalho, em que há um nítido processo de regressão social, inclusive a partir de uma fragilização política da classe trabalhadora.

O movimento trabalhista perdeu força e seu protagonismo na arena política se reduziu, devido a profundas mudanças econômicas, políticas, sociais e ideológicas. Desde então e, de modo mais acentuado, nos anos 1990, a regulação social do trabalho vem se fragilizando, com uma tendência de fortalecimento da flexibilização das relações de trabalho, de redução de direitos, de substituição da lei pela negociação, o que amplia a liberdade do capital gerir a força de trabalho de acordo com as suas necessidades.

A atuação do Estado no campo social é combatida em nome da liberdade de contratação e de uma suposta eficiência do mercado; o direito é combatido e apresentado como privilégio; direitos universais são substituídos por direitos focalizados e rebaixados. Ao mesmo tempo em que se opera o desmonte de serviços públicos, servidores são considerados ineficientes e parasitas, empresas públicas são privatizadas, setores inteiros de atividade são transferidos ao mercado e convertidos em novas fontes de acumulação de capital. O resultado disso é o aumento sem precedentes da insegurança, da desigualdade e da exclusão social, verificando-se inclusive o crescimento do número de trabalhadores empobrecidos.

Dados do IBGE divulgados no final de 2018 mostram que a pobreza está aumentando no Brasil. Segundo a linha de pobreza proposta pelo Banco Mundial (rendimento de até cerca de R$ 406 por mês), são 54,8 milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza, um quarto da população em 2017. No Nordeste, 44,8% da população estava em situação de pobreza, o equivalente a 25,5 milhões de pessoas.

A proporção de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos que viviam com rendimentos até essa linha é de 43,4% no mesmo ano. Na extrema pobreza, ou seja, com renda inferior a R$ 140 por mês, vivem no Brasil cerca de 15,2 milhões de pessoas, 7,4% da população, quase 2 milhões de pessoas a mais do que em 2016.

Esse processo de privatização e exclusão ocorre concomitante a extraordinários avanços tecnológicos que, dada a atual correlação de forças, estão sendo utilizados para submeter os trabalhadores a uma maior precarização no trabalho e vulnerabilidade social. Neste sentido, a tendência é uma crescente polarização social, em que os segmentos médios vão sendo destruídos e uma parte importante das pessoas apresenta inserções mais precárias ou são simplesmente excluídas do mercado de trabalho.

No Brasil, esse processo foi parcialmente interrompido entre os anos de 2003 e 2014, período em que houve uma pequena reversão de algumas tendências históricas, como: o aumento da inclusão dos ocupados na seguridade social e no acesso aos direitos trabalhistas, a queda do desemprego, a elevação dos salários, especialmente para os que se encontravam na base da pirâmide social e a diminuição da desigualdade das rendas do trabalho. Ao mesmo tempo, a tendência de flexibilização das relações de trabalho, que havia sido introduzida com força nos anos 1990, continuou avançando, sendo possível observar: a proliferação de novas formas de contratação (tais como terceirização, temporário, parcial, pessoa jurídica, falso cooperativado); a despadronização da jornada de trabalho, o que subordina o tempo de vida do trabalhador às necessidades do capital, como o banco de horas, a liberação do trabalho aos domingos e feriados; o aumento da remuneração variável, que significa que parte crescente da remuneração advém do resultado da empresa ou do trabalho realizado pelo grupo ou pelo indivíduo (metas, resultados ou lucros).

Com a crise econômica e o golpe de 2016, as contradições se aprofundam. Os indicadores do mercado de trabalho mostram uma forte deterioração, especialmente com a elevação do desemprego e da informalidade. As medidas tomadas pelo governo Temer agravam a situação do trabalho e afetam a condição de vida dos trabalhadores, mesmo daqueles que se julgavam inseridos de uma forma relativamente mais estável e protegida.

Dois retrocessos se destacam nesse sentido. O ano de 2016 terminou com a aprovação de emenda constitucional determinando um teto ao reajuste anual dos gastos públicos da União pela taxa de inflação por um período de vinte anos. Com isso, despesas nas áreas que beneficiam a maioria da população, como saúde e educação, ficam seriamente comprometidas, enquanto os ricos mantêm seu privilégio, já que o pagamento dos juros da dívida pública segue sem nenhuma limitação.

O ano de 2017, por sua vez, terminou com a entrada em vigor da mais ampla alteração no sistema brasileiro de relações de trabalho desde sua constituição. A reforma trabalhista faz retroceder ao período anterior a 1930 a proteção aos trabalhadores, na medida em que retira direitos, fragiliza as instituições públicas e enfraquece os sindicatos. Ela é orientada por uma lógica neoliberal, que submete os trabalhadores a um processo de concorrência em um mercado autorregulado, e responsabiliza o indivíduo pela situação em que se encontra no mercado de trabalho.

Na perspectiva de ampliar a liberdade das empresas em determinar as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho, a reforma promove a descentralização da negociação coletiva, autoriza a derrogação da lei pela negociação, a prevalência de acordos individuais de trabalho sobre a lei e as negociações coletivas, além de oferecer um cardápio novo de possibilidades aos patrões para reduzir custos e explorar os trabalhadores, como o trabalho intermitente, o teletrabalho, os contratos sem previsão de jornada (tendo no limite o contrato “zero hora”), a terceirização nas atividades-fim, a extensão do trabalho autônomo. A reforma legaliza práticas predatórias já utilizadas pelo empresariado nacional, tais como a terceirização, e favorece a burla, já que amplia as possibilidades de contratação não assalariadas e sem reconhecimento de vínculo empregatício. Desse modo, ela dificulta o acesso ao seguro-desemprego, ao auxílio doença e à aposentadoria, destruindo as bases para a proteção social e fragilizando as fontes de financiamento da seguridade social, especialmente a vinculada à folha de pagamento. Dentre suas consequências perversas, os empregos tenderão a ser mais irregulares e as ocupações mais descontínuas, submetendo a população trabalhadora ao risco constante e a maior insegurança social.

É preciso colocar a riqueza do trabalho a serviço da população trabalhadora, compreendida aqui em sentido amplo, incluindo o pequeno proprietário no comércio, o prestador de serviços, o camponês que labuta na agricultura familiar e detém a propriedade de um pequeno lote de terra, o funcionário público, o desempregado, o informal que vive de “bicos”. Trata-se de um projeto para os 99% contra o 1% de privilegiados, a ser sustentado pelo movimento sindical, mas também pelo conjunto dos movimentos sociais que atuam junto aos trabalhadores precários e não sindicalmente organizados. Nessa perspectiva, os privilegiados são aqueles que vivem às custas da exploração do trabalho alheio, que se beneficiam de incentivos e subsídios fiscais, que não pagam imposto sobre sua propriedade e seus exorbitantes ganhos financeiros.

O enfrentamento das dificuldades aqui apresentadas passa por dois planos de atuação: um imediato e outro de longo prazo. O primeiro requer a luta pelo emprego, em favor da lei e das políticas públicas, o que passa pelo reconhecimento do papel do Estado como ator fundamental na redução das desigualdades. O segundo tem como pressuposto o fato de que as desigualdades socioeconômicas só desaparecerão em uma sociedade sem exploração, de modo que é preciso ter no horizonte um projeto de transformação social que supere o capitalismo. A “Revolução Brasileira” compreende a conjunção dessas duas perspectivas como parte de um mesmo processo.

Para reduzir as desigualdades e promover melhorias em favor da população trabalhadora aqui e agora, é imperioso reafirmar a perspectiva do direito universal contra a perspectiva contratualista, na qual a proteção social se baseia no poder de cada indivíduo ou do setor de atividade no qual se insere no mercado. O principal desafio é coibir a mercantilização da força de trabalho, pois o mercado é promotor de assimetrias, estimula a competição e naturaliza a desigualdade. Ao Estado cabe prover a proteção social e assegurar um direito que seja, ao mesmo tempo, universal, isto é, que seja válido para todos os cidadãos, independentemente de sua posição no mercado, e não residual. Ao Estado cabe também, além de legislar, fiscalizar os ambientes e a relação de trabalho para garantir a aplicação das normas. As instituições públicas do trabalho, especialmente a Justiça do Trabalho, são aqui atores fundamentais.

A lei deve estabelecer as condições necessárias para uma vida digna, para o bem-viver de todos os cidadãos, de modo a minimizar o impacto da heterogeneidade setorial e regional das classes trabalhadoras. Por sua vez, a negociação coletiva,por meio de acordos e convenções coletivas de trabalho celebradas pelas entidades de representação de trabalhadores e de empregadores, deve se dar em complemento a esse patamar necessário. Por exemplo, o salário mínimo federal está hoje em R$ 954. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) calcula, entretanto, que o valor necessário deveria ser de R$ 3.783 (ou quatro vezes o valor em vigor). E a base para esse valor do salário mínimo necessário é a própria legislação que instituiu e regula o salário mínimo no Brasil.

É também urgente a necessidade de colocar a tecnologia a serviço da sociedade, de modo que se promova o uso social e não privado dos ganhos de produtividade. Não é justo que, enquanto alguns se encontram sem ocupação, outros sejam submetidos à intensificação de seu ritmo de trabalho e ao prolongamento da jornada. Tanto o desemprego quanto jornadas extensas e extenuantes prejudicam a vida familiar e a saúde física e psíquica do trabalhador, provocando adoecimentos e desagregando laços de sociabilidade. O crescimento da produtividade desde a última redução da jornada de trabalho em 1988 gerou diminuição do trabalho socialmente necessário, e a perspectiva de novo aumento da produtividade do trabalho com a chamada “Revolução 4.0” torna urgente que suas consequências sejam enfrentadas. A diminuição do trabalho socialmente necessário pode se transformar em mais desemprego, aumentando o problema social, ou em diminuição do tempo de trabalho, conformando uma nova sociedade onde todos terão, simultaneamente trabalho e tempo livre.

O aumento da expectativa de vida, de um lado, e as novas tecnologias, de outro, permitem encontrar soluções socialmente mais justas para a questão dos ganhos de produtividade, que podem ser utilizados na redução da jornada de trabalho e na redução dos preços.

O controle social sobre o ritmo e a finalidade da incorporação do progresso técnico é central para que o uso das novas tecnologias não seja simples meio para a reprodução da estrutura de dominação que funda o capitalismo. Ao invés de dinamizar a introdução do progresso técnico poupador de trabalho, orientado meramente à modernização dos padrões de consumo das elites, trata-se de subordinar, através da ação do Estado, a incorporação de progresso técnico às necessárias transformações na estrutura social e produtiva do Brasil.

Assim, a Redução da Jornada de Trabalho é uma possibilidade de refundar a sociedade, redistribuindo o trabalho existente de modo que as pessoas possam viver todas as dimensões da vida para além de trabalhar, com o objetivo de promover uma sociedade do bem viver, que supere, ao mesmo tempo, a cisão entre os padrões culturais vigentes e as possibilidades de generalização do progresso na estrutura econômica, e o abismo, derivado dessa cisão, entre ricos e pobres.

A extensão e a profundidade da contrarreforma trabalhista e a forma pela qual foi implantada trás severos impactos sobre o ambiente da produção econômica e a vida social. Reparar os estragos pode ser demorado, problemático, mas é imperativo. Exigirá renovada capacidade de enfrentamento e a construção de um novo patamar de relacionamento no campo trabalhista. Aos trabalhadores e ao movimento sindical cabe a luta, na qual se inclui a resistência, para que se forjem novas possibilidades de avanços sociais e trabalhistas no futuro.

*Thomaz Ferreira Jensen é economista, graduado pela Faculdade de Economia da USP. Desde julho de 2007 trabalha como assessor técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), atuando atualmente na Escola DIEESE de Ciências do Trabalho. É membro do conselho consultivo da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e do conselho consultivo da Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU).
Ilustração: Montagem sobre foto de Leandro Melito Fonte / EBC.

 

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