Eleições e ingenuidade

ENTREVISTA COM IVAN SEIXAS

O jornalista Ivan Seixas foi preso político na ditadura militar – sem processo ou condenação – dos 16 aos 22 anos de idade, por ser militante guerrilheiro do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Participou das lutas pela redemocratização e reconstrução democrática do Brasil. Integra a Comissão de Familiares de Presos Políticos Mortos e Desaparecidos, foi coordenador da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo Rubens Paiva e assessor especial da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

ICTJ-Brazil-Ivan-Seixas-2015

FOTO EM https://www.ictj.org/gallery-items/ivan-seixas-brazil

 

PÁTRIA DISTRAÍDA – O Brasil sobrevivente da ditadura militar permanece dependente do mesmo modelo de desenvolvimento econômico, fundamentado na propriedade privada dos meios de produção e refém do mercado financeiro. Como conceber a democracia nesse contexto?

IVAN SEIXAS – No Estado liberal burguês, por definição, ditaduras acontecem quando um dos poderes subjuga os outros dois. Em 1964, o poder executivo foi assaltado e subjugou o judiciário e o legislativo. O mais importante quando se fala em ditadura é entender que não se está falando em alguma maldade cometida por pessoas malvadas. Ditaduras são expressões de poder da mesma classe dominante capitalista, que optou por um formato de poder radicalizado para garantir a exploração da classe trabalhadora com a retirada de direitos. Em 1964, a opção da burguesia atrelada ao imperialismo dos EUA foi usar as Forças Armadas para o assalto ao Estado e o exercício do poder com o uso da força das armas. No momento atual, a burguesia também retira direitos da classe trabalhadora com o uso do judiciário, que dá um verniz de legalidade aos atos de brutal retirada de direitos da população.

O retrocesso político em relação aos direitos fundamentais é uma realidade global. As guerras são justificadas por razões ideológicas, testes de vacinas e medicamentos em populações miseráveis, propostas de muros para impedir a imigração, gente amarrada em poste e tatuada na testa na criminalização da pobreza. Quais os caminhos para retomar a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, pautada pelos direitos humanos?

O capitalismo é essencialmente excludente e discriminador, pois essa é a “justificativa” para garantir a exploração capitalista. Não há como justificar a exploração do trabalho de uma pessoa em benefício de outra. Isso é básico.
Só uma transformação social completa, que retire o poder de discriminação dessa exploração capitalista, garantirá a possibilidade de termos uma sociedade justa e igualitária. Direitos Humanos são contraditórios com a exploração capitalista.
Quando se lê a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi o primeiro pacto da Humanidade contra a barbárie, pode-se constatar que Direitos Humanos são para garantir os direitos de moradia, de emprego, de salário e vida adequada, de direito à saúde, à educação, de não ser removido de seu local de moradia e os direitos ao lazer e férias remuneradas. No tocante à educação, está escrito lá que deve ser obrigação do Estado e deve ser gratuita até o ensino fundamental. Ou seja, não é uma invenção brasileira, mas uma exigência internacional. Tem também a exigência de proteção à criança e adolescentes, que deu origem ao ECA – Estatuto da Criança e Adolescente. E a direita fica esbravejando contra essas conquistas, que são exigências internacionais.
A reconstrução democrática deverá passar por recolocar os Direitos Humanos em um patamar mais elevado e conter a fúria exploratória do capitalismo brasileiro, que não reconhece direitos básicos e confunde direitos com privilégios.

Estamos em tempos de eleições gerais no Brasil e o avanço de propostas contaminadas pelo fascismo é assustador. Vivemos em uma sociedade adoentada pelo sistema de exclusão que nos oferece mínimas alternativas eleitorais. Como participar desse processo democrático sem perder os ideais de efetivas transformações?

Não podemos mais participar de qualquer processo eleitoral, em qualquer tempo, com a ingenuidade dos que acreditam que os inimigos da Democracia não existem ou não atuam contra os interesses do povo. Eles existem e atuam o tempo todo contra os direitos da população trabalhadora. Eles são machistas, racistas, misógenos, sexistas, elitistas e odeiam pobres. E, o que é pior, contam com a colaboração da classe média de nossa sociedade, que é essencialmente reacionária e tem os mesmos preconceitos e os reproduzem a todo o momento. Ou seja, devemos participar ativamente do processo eleitoral influenciando quem vota sem uma percepção democrática, tomando todos os espaços disponíveis na sociedade e elegendo, portanto, quem tem compromisso com a Democracia e com os Direitos Humanos.

A formatação do Estado Contemporâneo em três poderes constituídos, autônomos e soberanos em um sistema de “freios e contrapesos” já se evidencia falida como todos os conceitos da democracia liberal. Qual seria uma nova proposta estrutural de poder político que assegure os direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, não desfaça a mobilização social pela conciliação de classes?

Essa formalidade do Estado liberal burguês só interessa à classe dominante e perpetua as desigualdades e as injustiças que o próprio capitalismo usa para sua exploração contra a Classe Trabalhadora. Temos que construir uma Democracia participativa e com poderes revogatórios de mandatos. Não cabem mais esses mandatos imutáveis e sem limites, que existem hoje. Tanto governantes quanto parlamentares devem ter que prestar contas ao coletivo da cidadania e ser removido da função assim que o povo soberano assim decidir. E o poder judiciário não pode ser uma atividade vitalícia e imutável como é hoje. Isso levou à ditadura atual, que é exercida por esse poder judiciário impune e autocrático que vemos. Por outro lado, as consultas populares diretas devem ser corriqueiras e usadas a todo o momento que a população deseje. Os plebiscitos devem ser usados o tempo todo, incluindo os plebiscitos revogatórios de mandatos e de mudança de legislação obsoleta. Mas, para isso deve haver intensa participação popular em todo o processo democrático.

Para os novos eleitores, essa juventude que chega carregada das melhores energias e sem qualquer esperança em “tudo o que está aí”, quais as sínteses históricas que a ditadura militar nos deixou – pelos prismas políticos, jurídicos, econômicos – e como as forças de transformação devem atuar para combater o retrocesso?

A ditadura militar é um exemplo gritante de que não se pode delegar o poder para ninguém. É um fato inegável que a classe média de então foi bater às portas dos quartéis para pedir implantação da ditadura. Depois essa mesma classe média foi bater às mesmas portas dos mesmos quartéis para pedir informações sobre seus filhos, que haviam sido presos pela ditadura implantada.

Toda a propaganda feita pela direita para pedir o golpe e a ditadura foi baseada nos mesmos argumentos que hoje são usados. Alegaram que havia uma enorme corrupção, que a economia estava em frangalhos e que havia o perigo comunista. Todas alegações baseadas em mentiras. E fizeram isso para derrubar Getúlio Vargas, que se suicidou para evitar o golpe de Estado, fizeram isso contra JK e contra João Goulart para derrubar a Democracia que tínhamos.

Do mesmo modo que em 1964, quando a UDN, o partido da direita brasileira, não conseguia vencer eleições, atualmente o PSDB também não consegue vencer eleições e partiu para o golpe quando perdeu a eleição para Dilma Roussef. E do mesmo modo que naquela época, o golpe foi orientado e atendeu aos interesses dos EUA.

Nós não derrubamos a ditadura militar, mas a derrotamos. Usamos para isso todos os canais de denúncias dentro e fora do país. Principalmente, os canais de fora do país, pois havia uma censura brutal. Hoje também temos uma censura forte feita pelos meios de comunicação comercial das grandes redes. Mas, temos as redes sociais para furar o bloqueio. O caminho é por aí, pois a batalha da comunicação se mostra definitiva hoje na luta política. Mobilização, participação e comunicação efetivas.

Diga-nos, como profecia de um guerreiro sobrevivente da ditadura militar, que manteve a coerência política e ideológica e que nunca abandonou as lutas pelos direitos fundamentais, por onde começamos a caminhar para, efetivamente, mudar o mundo?

Não tem profecias. Precisamos retornar ao trabalho de conscientização das pessoas, que estão sendo enganadas pelos meios de comunicação, que são verdadeiros meios de manipulação da realidade. Temos que organizar a população e criar mecanismos de participação direta, mesmo que a legislação não preveja. Precisamos dar esperança à população e só com organização e luta se consegue isso. Essa é a luz no fim do túnel para nós.