BOLETIMDE CONJUNTURANúmero 38 – Abril/Maio de 2023

DIEESE

Os difíceis primeiros 100 dias de governo e as perspectivas para os próximos anos
A tradicional trégua que é concedida aos governos, até completarem os primeiros 100 dias de gestão, acabou antes do prazo, para o presidente Lula. O governo tem se empenhado para apresentar resultados rápidos, numa corrida
contra o tempo, até pela percepção de que a economia e as ferramentas de intervenção estatal foram, em grande medida, desmontadas pelo governo de Jair Bolsonaro, na esteira destrutiva iniciada por Michel Temer.
Depois de enfrentar e derrotar as manifestações da extrema direita, apenas oito dias depois da posse, o governo fortaleceu a frente democrática que o elegeu, para conseguir iniciar a reconstrução a que se propõe. Nessa direção, relançou, com melhorias e ampliação de alcance, três programas sociais estratégicos: Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida e Mais Médicos. As dificuldades eram conhecidas. O governo recebeu uma economia programada para não crescer, travada desde o governo de Michel Temer, como no caso da Emenda Constitucional nº 95 (teto
de gastos), aprovada rapidamente, após o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. As ações de retirada de direitos dos trabalhadores e de desmonte da estrutura estatal, incontáveis no período Temer, foram aprofundadas na gestão de Jair Bolsonaro, que ficou responsável, inclusive, pela independência do Banco Central, obstáculo decisivo no conjunto de dificuldades enfrentado pelo governo Lula.
O governo sofre pressões de todos os lados, como seria de se esperar. As mais importantes decorrem das próprias necessidades da população: são nove milhões de desempregados, milhões de desalentados, cinco milhões de subocupados por insuficiência de horas, 35 milhões de trabalhadores sem proteção social e sem perspectiva de ter renda/aposentadoria na velhice, 10 milhões de pessoas morando em áreas de risco, 100 milhões sem coleta de esgoto, déficit de seis milhões de moradias e de cinco milhões de vagas em creches. O novo Bolsa Família inclui 20 milhões de famílias, cerca de 55 milhões de brasileiros, o que demonstra a magnitude da crise
social do país, onde 25% da população depende de auxílio governamental para poder se alimentar, situação que revela a urgência da retomada do crescimento econômico e do emprego.
Há também fortes pressões do sistema financeiro e dos formadores de opinião da grande imprensa, com previsões catastróficas para a economia e as contas públicas. Boa parte dos dilemas da sociedade brasileira depende da retomada do crescimento, com melhor distribuição de renda e riqueza. O Brasil vem de seis anos seguidos de recessão ou estagnação econômica, possivelmente o pior desempenho do PIB de que se tem registro nas contas nacionais, resultado da crise mundial e das políticas recessivas adotadas a partir de 2015.
Por outro lado, o Banco Central, autônomo e sem compromisso com o projeto eleito pela maioria da população, impõe ao Brasil a maior taxa de juros do mundo: 13,75% nominais, quase 8% reais, quando descontada a inflação esperada para os próximos 12 meses. A inflação brasileira, utilizada como pretexto para as mais altas taxas de juros do mundo, está longe das mais elevadas, na comparação internacional. Ao contrário, nos últimos 12 meses, até março de 2023, a taxa de inflação brasileira foi de 4,36%, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), índice oficial de inflação, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A inflação média na zona do euro é de 6,90% (maior que a brasileira). A taxa de inflação do Reino Unido está acima de 10%. E a taxa de juros do Banco Central Europeu é de apenas 3%. Cerca de 90% dos países do mundo estão com taxas de juros
reais negativa, ou seja, abaixo das taxas de inflação.
A inflação no Brasil diminuiu o ritmo de crescimento nos meses finais de 2022, devido à redução artificial do preço da gasolina, mas voltou a subir em fevereiro de 2023, com o impacto do gasto com educação e, em março, com a volta parcial do imposto dos combustíveis. Importa destacar que os juros altos pouco interferem na inflação no país, uma vez que a causa dos aumentos de preços não está na demanda. Os juros jogam a economia em recessão e reduzem a deprimida demanda interna. As causas da inflação estão muito mais ligadas à menor demanda
internacional por commodities e à queda do preço dos alimentos, à redução no preço Iinternacional do petróleo e à reorganização parcial das cadeias internacionais de produção e distribuição, desestruturadas pela pandemia de covid-19, entre 2020 e 2021.
Durante coletiva de imprensa, em 30 de março, para apresentar o Relatório Trimestral de Inflação, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse que “se fosse cumprir a meta de inflação em 2023, teria que ter juro de 26,5%”. Isso pode até ser verdade ao se considerar que a meta de inflação, de 3,25% para 2023, é irrealista1. Ela pressupõe derrubada do nível de crescimento do país, ou seja, implica que se lance a economia em brutal recessão, sem que se resolvam as causas reais da inflação.
As previsões de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para esse ano, feitas por diferentes institutos de pesquisa, estão abaixo de 1%. Crescimento nesse nível significa deterioração do mercado de trabalho, dificuldade de arrecadação e de financiamento do Estado e das políticas públicas. Dependendo do conjunto da política macroeconômica – no qual a política monetária (sob o comando do Banco Central) é essencial – o Brasil terá dificuldade para crescer também em 2024, o que significaria o comprometimento de metade do mandato do atual
governo, em termos de crescimento econômico.
Novo marco fiscal e gastos com juros da dívida
Sabidamente, o fim do teto de gastos é condição indispensável para qualquer projeto de retomada do crescimento e de melhoria de vida da população brasileira. O congelamento de gastos sociais por 20 anos, em termos reais, aprovado ao final de 2016, além de inusitado em qualquer parte do mundo, anula as possibilidades de retomada de crescimento econômico e social. Não surpreende que esse teto de gastos tenha sido ultrapassado nos últimos anos, especialmente para financiar as medidas de combate emergencial aos efeitos econômicos da pandemia de covid-19.
A nova regra fiscal, apresentada em 30 de março, prevê que os gastos do governo não podem ter crescimento acima de 70% do crescimento da receita, limitado a 2,5% do PIB, mais uma trava para o aumento dos gastos públicos, o que significa que qualquer aumento de despesas depende diretamente do aumento da arrecadação. A proposta estabelece também: Ainda que, mesmo com a elevadíssima taxa básica de juros de 13,5%, a inflação dos 12 meses terminados em março de 2023 tenha ficado abaixo do limite superior da meta do Banco Central, cujo centro é de 3,25%, commargem inferior de 1,5% e superior de 4,5%;
superávit primário: a ideia é que o governo tenha déficit primário zero, em 2024; superávit de 0,5% do PIB, em 2025; e de 1%, em 2026. A variação tolerável para essas metas seria de 0,25 ponto percentual, para mais ou para menos.
Caso a meta de superávit primário não seja atingida, em determinado ano, e o resultado fique fora da faixa de tolerância, o governo terá que limitar o crescimento de despesas, no ano seguinte, a 50% do crescimento da receita do ano anterior. Essa é uma regra bastante rigorosa, mesmo nos marcos de um programa de natureza fiscalista. Isso porque, se a meta de superávit primário não for atingida, possivelmente será por baixa arrecadação decorrente de baixo crescimento econômico. Nesse caso, a ação de governo deveria ser de expansão (e não de limitação) dos gastos, contribuindo assim para estimular a retomada do crescimento, em ação anticíclica própria de uma boa gestão pública. Limitar ainda mais os gastos, em caso de superávit abaixo da meta, significa uma ação pró-cíclica do governo, que tenderá a piorar ainda mais o desempenho da economia. Um mérito da proposta é estabelecer um piso mínimo de investimento, independente do aumento da arrecadação, e reestabelecer o cumprimento dos
pisos constitucionais para a educação e saúde.
A proposta centra-se no corte de despesas e na preservação de metas de superávit primário, não rompendo, assim, com os paradigmas estabelecidos no Brasil para as políticas fiscais. As margens de movimentação econômica do governo são muito limitadas. Buscam fornecer algum “oxigênio fiscal” a ele, mas mantém intocados os ganhos financeiros dos financiadores da dívida pública, que são os mais elevados do mundo.
A questão é que o programa do atual governo, de retomada do crescimento econômico e da necessária ampliação dos gastos sociais, pressupõe elevação significativa das despesas públicas, com vistas a recuperar a capacidade diretiva e operacional do Estado brasileiro, além de induzir um ciclo de retomada de produção e consumo. Uma política fiscal de restrições de gastos sociais, nesse momento, entraria em choque com a necessidade de recuperação das políticas públicas de inclusão social, devastadas pelos últimos governos. O Ministério da
Fazenda garante que esta inclusão está prevista no arcabouço fiscal proposto, o que será visto
mais adiante.
O orçamento dos “de baixo” e o orçamento “dos de cima” no Brasil
A proposta de novo marco fiscal mantém intocados os gastos com o serviço da dívida pública, em boa parte inflados pelos juros reais mais elevados do mundo, praticados pelo Banco Central do Brasil, que deveriam ser reduzidos para o vislumbre de qualquer meta de crescimento. As despesas com pagamento do serviço da dívida interna, em 12 meses, até fevereiro de 2023, chegaram a R$ 660 bilhões. Apenas no primeiro bimestre do ano, os gastos com juros da dívida interna acumularam R$ 116 bilhões, mais do que o dobro despendido no mesmo período de 2022 (R$ 47 bilhões).
Antes mesmo de assumir, a equipe de transição de Lula lutou para aprovar, em dezembro passado, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial, nº 32/2022, que garantiu ao orçamento de 2023 o montante de R$ 145 bilhões além do teto de gastos. Aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado, a PEC se tornou a Emenda Constitucional nº 126 (EC-126). O valor tem sido destinado ao Bolsa Família e a outras áreas sociais, como saúde, combate à pobreza, educação etc. Apesar da evidente imprescindibilidade da PEC, aqueles que a defendiam enfrentaram acalorado debate com economistas ligados ao sistema financeiro (especialmente aos bancos) e formadores de opinião dos grandes veículos da imprensa, que alegavam suposta irresponsabilidade fiscal. Para comparar, o gasto com o serviço da dívida, apenas no primeiro bimestre do ano, equivale a 80% de todo o montante de gastos sociais previsto pela PEC da Transição para 2023. A estimativa é que, se a taxa básica de juros (taxa Selic) não baixar rapidamente, o serviço da dívida nesse ano deve consumir mais de R$ 700 bilhões, equivalentes a quase o montante de cinco PECs da Transição. Notoriamente, o orçamento federal mantém intactos os pagamentos robustos aos detentores da dívida, alimentados pela alta taxa de juros, enquanto as políticas sociais lutam entre si pelos parcos recursos que sobram.
Os chamados gastos primários do governo, além de serem fundamentais para parcela expressiva da população, não são a causa do déficit público, que está muito mais ligada ao orçamento financeiro do que ao gasto produtivo e social do governo. O custo fiscal dessa política de juros do Banco Central é gigantesco. A dívida pública líquida foi de 73,5% do PIB, em 2022, com tendência a aumentar em 2023, apesar da fortuna que se transfere anualmente, sem qualquer constrangimento ou negociação, aos detentores dos títulos públicos (especialmente
bancos e fundos de investimento, mas também fundos de pensão).
Enquanto isso, a população trabalhadora sobrevive do jeito que é possível. O endividamento dos brasileiros alcançou o maior nível histórico já registrado: 77,9% da população, segundo dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). O último levantamento do Serasa (Serviços de Assessoria S/A) mostrou que 69,43 milhões de pessoas entraram em 2023 com nome restrito para a obtenção de crédito.
Nesse contexto, representa grande avanço a retomada da política de valorização do salário mínimo, que vigorou entre 2007 e 2019. Quase 55 milhões de pessoas têm rendimento referenciado nessa remuneração. O valor já foi reajustado para R$ 1.302,00, em janeiro, com ganho real de 1,41%, e aumentará para R$ 1.320,00 agora em maio. Um grupo de trabalho interministerial vai elaborar nova proposta para valorização do salário mínimo, em horizonte
de longo de tempo. A valorização do salário mínimo se mostrou fundamental para aumentar a renda da população, por afetar diretamente os salários mais baixos e os benefícios previdenciários e, indiretamente, os demais rendimentos do trabalho, fortalecendo o mercado consumidor interno e melhorando as contas públicas, via arrecadação de impostos. O salário mínimo é uma política pública de amplo alcance, com efeitos decisivos na redução da pobreza e da desigualdade e impactos positivos na ativação da economia nacional e das economias
regionais, a partir dos centros locais de consumo.
A reconstrução do Brasil passa por uma atuação decisiva do Estado
A experiência mundial e brasileira demonstra que a retomada do crescimento não pode prescindir de políticas públicas indutoras. O Estado deve ser o organizador de ações coletivas empresariais, o que deve começar com taxa de juros básica que estimule o investimento produtivo. No Brasil, ocorreu exatamente o contrário. O investimento público chegou, no período recente, ao menor patamar desde 1947: apenas 2% do PIB em 2019.
Entre 21 e 22 de março, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) organizou um seminário, no Rio de Janeiro, com o tema Estratégias do Desenvolvimento Sustentável para o Século XXI. Entre os convidados, além de integrantes do governo federal e economistas brasileiros, estiveram presentes vários economistas de outros países. Nas análises realizadas, a percepção geral foi a de que os juros praticados no Brasil são um “ponto fora da curva” em todo o mundo. No evento, chamou atenção a intervenção direta da professora indiana de economia da Universidade de Massachusetts Amherst (EUA), Jayati Ghosh.
Referindo-se à economia brasileira, a professora indagou: “Por que querem fazer isso com vocês
mesmos? Mesmo em países com orçamentos baixos, não investir na capacidade do Estado tem como consequência o enfraquecimento da economia. E os juros altos, claro, inibem esses investimentos”. A professora repetiu o que muitos no Brasil têm afirmado, porém sem voz na grande mídia: juros altos seguem orientação essencialmente política, apesar da retórica tecnicista. Para ela “isso não tem base econômica, beira o masoquismo. Bancos centrais e autônomos são suscetíveis a capturas políticas. O déficit público brasileiro está sob controle. Então, faria muito mais sentido expandir o Produto Interno Bruto do que implantar esta austeridade fiscal”. A professora criticou, ainda,
duramente, a estrutura regressiva de arrecadação de impostos no Brasil, na qual os pobres sustentam o Estado, pagando muito mais impostos que os ricos, como proporção das respectivas rendas.
Ação importante, já anunciada ao longo da campanha eleitoral, ocorreu em 6 de abril, quando o governo federal retirou sete empresas do Programa Nacional de Desestatização (PND) e três do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Foram deslocadas do programa de privatização a Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A. (ABGF); o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec) – fábrica de chips e condutores; a Empresa Brasil de Comunicação (EBC); a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT); a Nuclebras Equipamentos Pesados S.A. (Nuclep); Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro); e a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev).
No caso das empresas que integravam o PPI, o governo revogou as qualificações dos armazéns e imóveis de domínio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); da Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. – Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA); e da Telecomunicações Brasileiras S.A. (Telebras). A política econômica do governo vive situação inédita no Brasil, por conta da vigência da Lei Complementar nº 179/2021, que garante autonomia ao Banco Central. Como o presidente Lula tem acertadamente apontado, há equívoco na condução da política monetária pelo Banco Central, com a manutenção da taxa básica de juros básica da economia (Selic) em 13,75% ao ano, diante de uma inflação que, além de não ser provocada por excesso de demanda, tem se
reduzido nos últimos meses e está em queda também nas projeções futuras.
A política econômica do governo está fundamentada na retomada do crescimento econômico e este é também um dos aspectos fundamentais que o Banco Central precisa levar em conta, ao definir a taxa básica de juros, como previsto na Lei Complementar. É imperativo realinhar a política monetária e cambial, executada pelo Banco Central, à política econômica definida pelo governo democraticamente eleito, em prol de crescimento e desenvolvimento econômico. Para isso, além de retomar o controle sobre o Banco Central, talvez até com a
revogação da Lei Complementar nº 179/2021, é preciso democratizar o Conselho Monetário Nacional (CMN), hoje composto apenas pelo presidente do Banco Central, pelo ministro da Fazenda e pela ministra do Planejamento, para possibilitar a participação de mais atores sociais, entre os quais, representantes dos trabalhadores e do setor produtivo. Os rumos da moeda, do crédito e da política de juros precisam ser definidos por um grupo que retrate os interesses de toda a sociedade.
O governo acerta ao propor, na nova regra fiscal da União, a recomposição dos pisos constitucionais de gastos com saúde e educação, eliminados pelo teto de gastos, e ao preservar um mínimo de investimento público, mesmo se o resultado primário for negativo. O desempenho do governo dependerá de amplo e contínuo debate para superar o que se viveu entre 2016 e 2022 e do apoio da frente ampla democrática a ações que visem sustentar
políticas públicas sociais, financiadas por melhorias na arrecadação e mais justiça tributária.

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