ELA, A MULHER

De história e de versos

Adalberto Fávero

A história da humanidade, em especial a ocidental, tem sido marcada pelo avanço estrondoso da barbárie, beirando a bestialidade. Este obscurantismo vive do excesso dos ricos e da carência dos pobres; assenta-se sobre o domínio dos fracos e tece narrativas estranhamente convincentes e capazes de fazer o oprimido achar-se culpado da própria desgraça; oportuniza  à classe média defender o capital que não tem; faz os abastados cuidarem para que aumente as suas  posses e garante a acumulação do desnecessário, sob o signo de causar miséria aos demais e levar o planeta ao colapso.

São abundantes aqueles que tentam justificar a pobreza e as diversas formas de opressão, tentam tornar trivial a tragédia que se abate sobre pobres, negros e mulheres. Os ricos e pós-modernos tentam análises com colchas de retalhos ou digressões autojustificáveis para explicar o inexplicável. Chamam a isso de “voz dos calados”, e assim vamos ficando cada vez mais órfãos de pensadores.

Neste caminho tortuoso, o antropocentrismo ocidental, além de tornar descartáveis e “usáveis” as demais formas de vida do planeta, constituiu-se, na verdade, como um androcentrismo, pois centrado no homem e excludente das mulheres, . Esse androcentrismo foi sendo tecido por narrativas da mulher submissa pela própria criação de Deus, como dizem os cristãos – já que foi feita da costela do homem, e o que deveria significar estar ao lado e ser companheira como igual, transformou-se em dependência, por ser feita da costela, da carne do homem.

Justificam-se, assim, o feminicídio, o domínio sobre o uso e abuso de seu corpo, a violência, a quem se atribui crença e justificação de seus atos e estruturas socioculturais. A mulher, na história, acaba sem voz e vez, juntamente como os demais “ninguéns”, sem nome da terra.

Sobre essas e tantas outras características de domínio e poder exercido pelo macho e varão que acabou exercendo sua supremacia pela força física, pelo dinheiro, pelas narrativas religiosas e culturais, e muito há ainda a ser dito (aqui eu disse quase nada), e muita luta ainda está a ser feita, tantas e significativas análises, questionamentos e projeções são e serão necessárias.

O presente, no entanto, é o futuro de nosso passado e o futuro será o nosso presente, por isso gostaria, neste texto, de buscar outro viés e cantar a religação da vida e a necessidade de perceber que é urgente mulher e homem serem iguais na diversidade para que a vida e a história sejam completas. Por isso, importa celebrarmos a vida juntos e iguais na diversidade, para que o mundo volte a sonhar e sejamos capazes de celebrar as interdependências entre eles e entre eles e todas as demais formas de vida.

A mulher e o homem são dois por um erro, por engano que a noite corrige. Os amantes são pecantes e picantes, amigos de violeiros, sanfoneiros e cantores da beleza do viver, pois o amor os faz poetas. A separação ou a dominação de um sobre outro faz acontecer uma solidão solitária como nunca se viu antes.

A Igreja diz: o corpo é uma culpa.

A Ciência diz: o corpo é uma máquina.

A Publicidade diz: o corpo é um negócio.

O Corpo diz: eu sou uma festa. (Eduardo Galeano)

Talvez seja por isso que muitos de nós gostemos de nascer, pois se continua a nascer cada dia, reconstruindo-se, enquanto os senhores do poder vivem de ensinar o medo. Igualmente, por uma dessas razões é que vale o ditado que diz: “melhor nos dar bem com as castanhas que com os castrados”. Vale religar a vida, combater a separação que domina e oprime e impede o reencantar do mundo.

As mulheres e os homens eram iguais na América encontrada pelos conquistadores, mas eles tratavam as suas mulheres como posse, sem direitos, a “civilização em nome de Deus” os separou e os fez ficar pisando tristezas e olhando sem ver, dando vontade de descaminhar.

Há uma estranha criatura, chamada ciência econômica, que vive nos levando a fazer contas, contar tudo em números, criar cenários aterradores de futuro, justificar a miséria do presente, calcular o custo da igualdade e provar estatisticamente que o homem produz mais que a mulher e outras “superioridades” injustificáveis. Faz esquecer que, como diz a tradição dos povos originários, mulher e homem não vivem sobre a terra, são um e parte da terra; não apenas cuidam de si e da terra, estão intimamente unidos a ela, de tal maneira que ferir a terra significa atentar contra suas vidas e sonhos de felicidade.

Os poetas, obras do amor, das dores, das saudades, do prazer e do sonho, costumam falar frases desconexas sobre este assunto e ininteligíveis aos políticos e economistas.

Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso a menos, sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos. A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica… A aceitação da inércia para dar movimento às palavras; vocação para explorar mistérios irracionais; percepção de contiguidades anômalas entre verbos e substantivos; gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras; amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes; mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra; mania de comparecer aos próprios desencontros. Essas disfunções líricas acabam por dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores. (baseado em A Disfunção, de Manoel de Barros)

Os poetas são pensadores da esperança, capazes de cantos de beleza que a racionalidade esconde ou tergiversa. Cometem a loucura de poetizar a amada como aquela mulher que era uma visão, como a chuva, feita para não caber nos olhos e que faz ficarem bêbados de alegria. Ou, como diria Galeano sobre a mulher que se foi, a saudade e os detalhes cheios de lembranças memórias e significados:

Levo comigo um maço vazio e amassado de Republicana e uma revista velha que ficou por aqui. Levo comigo as duas últimas passagens de trem.

Levo comigo um guardanapo de papel com minha cara que você desenhou, da minha boca sai um balãozinho com palavras, as palavras dizem coisas engraçadas.

Também levo comigo uma folha de acácia recolhida na rua, uma outra noite, quando caminhávamos separados pela multidão.

E outra folha, petrificada, branca, com um furinho como uma janela, e a janela estava fechada pela água e eu soprei e vi você e esse foi o dia em que a sorte começou.

Levo comigo o gosto do vinho na boca. (Por todas as coisas boas, dizíamos, todas as coisas cada vez melhores que nos vão acontecer).

Não levo nem uma única gota de veneno. Levo os beijos de quando você partia (eu nunca estava dormindo, nunca).

E um assombro por tudo isso que nenhuma carta, nenhuma explicação, podem dizer a ninguém o que foi. (A Mulher que diz tchau, Eduardo Galeano)

  O poeta rima amor(toda forma de amor), com saudade, com esperança, com igualdade no diverso, com diversidade no viver, com liberdade de ser, com compartilhamento de sonhos e com desejo de se tornar um sendo dois. Essa é uma história a ser reescrita, sem os vícios acadêmicos da erudição ou revisionismos autojustificáveis e fugidios; sem descafeinar as dores e terrores que se vive ou viveu. História que se faz com ousadia ou profecia de que importa ao corpo e à mente, a felicidade contente de se ter nas mãos a possibilidade de fazer o novo acontecer com prazer e dor como se faz para bem viver.

Adalberto Fávero (Beto, 2023)

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