O BÊBADO E A EQUILIBRISTA

Parte I

Vinícius Drechsel Fávero (Historiador/Professor

Volta pra dentro! – gritou Maria Rita para o irmão – Está o maior sereno, vai se resfriar!

            Lauro olhava a lua brilhando em meio às nuvens. Não era sempre que o grupo permitia que ele e a irmã mais velha o acompanhassem em uma empreitada noturna. Logo, seu entusiasmo era tanto que buscava absorver toda a atmosfera que os circundava, como se magia tivesse sido destilada no ar. E, de fato, havia sido.

             Quando ouviu o chamado, abaixou o olhar e virou-se em direção ao bar, de onde ela berrava. Chamado Sorriso Sincero, o botequim situava-se muito próximo aos arcos da Lapa, que se mantinham como uma entidade em frente às pessoas que bebiam e conversavam ali. Mesmo sendo plena madrugada, havia um grupo considerável de pessoas presentes. A alta sociedade da década de 1930 do Rio de Janeiro observava proscritas e proscritos, vagabundas e vagabundos, os mais vis e indesejáveis. No entanto, seu respirar era como os suspiros da própria cidade. Suas batidas (de todos os tipos) eram o ritmo de seu coração.

            Lauro começou a caminhar em direção ao bar, recebendo olhares curiosos daqueles que ainda questionavam o motivo de uma criança tão pequena estar circulando em meio a tal região, naquela hora da noite. Para ele, não importava, pois, apesar de sua estranheza, o garoto sabia que seriam poucos os que teriam qualquer preocupação real em relação a seu bem-estar. Em seu percurso, observou uma cena que conhecia bem.

Como em uma pintura ou em uma imagem de santo, um homem apoiava-se em um lampião afastado. Usava um paletó e calças brancas impecáveis, sapatos da mesma cor, muito bem lustrados. Trazia também uma bengala, longa e trabalhada. Tinha um chapéu também branco que escondia seu olhar, mas não parecia capaz de ocultar a fumaça que subia do cigarro em sua boca. Reluzia um lenço verde de seda em seu pescoço e uma fita da mesma cor circundava seu chapéu. Em seu peito estava preso um pequeno broche dourado, na forma de um arco com uma flecha posta.

  A figura, ao avistar o menino, o chamou prontamente. Como o homem lhe era conhecido, Lauro atendeu ao chamado. Logo que se aproximou, o olhar daquele, que já quase parecia uma entidade em sua postura, o trespassou.

            – Não devia estar correndo pelo sereno agora, Lauro – disse o homem com uma voz jovial e tranquila – Já encerramos o serviço. Talvez tenha polícia atrás de nós pela noite.

            Por mais que o medo o dominasse ao fazer aquela pergunta, Lauro não pôde conter-se:

            –  Deu tudo certo, Zé? No trabalho, quero dizer – disse, engolindo em seco.

            Zé Branco ficou em silêncio por alguns segundos, como se avaliasse se o garoto poderia, ou merecia, aquela resposta. Por fim, disse na mesma voz calma que sua juventude lhe permitia:

            – Deu sim, Lauro. Agora vai pra dentro, sua irmã vai acabar trazendo a polícia aqui de tanto gritar por você.

            Satisfeito e com um meio sorriso, Lauro Alves correu pela praça em direção ao boteco, de onde Maria Rita gritava por ele. Sentia o olhar de Zé o acompanhando por todo o trajeto, como se garantisse sua segurança apenas pelo olhar, o que realmente garantia.

  Ao chegar, a irmã o sacudiu da cabeça aos pés, estapeando todo seu corpo:

            – O que é que você está pensando? Ficou doido? Quer ficar doente, ser preso? Onde você acha que estamos? Pedro acaba com você se souber desses descuidos! Zé Branco brigou com você por estar ali? Ele vai levar para o conselho, com certeza, estamos fritos eu e você. Vamos para a rua! Aí eu quero ver, tudo por essa sua…

            –  Ei, menina! Deixe-o em paz. Tá tudo bem. Ele só queria dar uma volta. Deixa estar – cortou uma voz grossa que vinha de dentro do bar.

            Os irmãos se viraram, vendo um homem forte, sentado próximo a uma mesa com alguns outros. Sua pele escura contrastava com a camisa branca e o colete verde que a cobria. Segurava um cigarro com a mão, enquanto sorria de forma simples.

            – Agora sosseguem, venham para dentro.

            Obedeceram prontamente a ele, pois a palavra de Edivaldo Alpes não era de se desconsiderar. Sábio malandro que também integrava o grupo que apadrinhava Lauro e sua irmã, carregava no colete um broche dourado na forma de um arco com a flecha posta. Edivaldo tinha a voz potente, mas a fala mansa, parecendo um poeta nas diversas frases que tecia. Era um homem de paz, mas as circunstâncias de sua vida o colocaram em meio à guerra e à violência das Maltas de Capoeira, organizações que naqueles dias, em tese, eram proibidas.

            Junto com ele sentavam-se dois homens, também de branco e com adereços em verde. Um deles, de pele escura, portava um bigode ralo e um olhar de cão enraivecido. Pedro Paulo Silva era voraz em suas ações, mas mantinha-se sempre íntegro e fiel naquilo que acreditava. Poucos atuavam tanto na linha de frente das ações do grupo quanto ele. Além de forte, era sagaz em fala e mente, sempre sabendo se comunicar com a comunidade onde a gangue Ofá se inseria.

            O terceiro tinha o corpo mais mirrado e retraído do que os outros dois. Usando um óculos garrafal, Francisco Souza era um dos mais inteligentes de Ofá. Apesar de inseguro e introvertido, era o integrante que tinha mais estudo, tendo frequentado até mesmo a restrita Universidade do Rio de Janeiro. Francisco era de família muito rica, mas abandonou sua casa e antiga vida para viver no morro, sendo que poucos sabiam os motivos para isso.

            – Sentem com a gente! Já, já, o Pietro começa a tocar – disse Francisco às crianças.

            Lauro e a irmã puxaram pequenos bancos e se aproximaram da mesa com os mais velhos. Não bebiam, não fumavam, mas só de estarem ali as crianças se encheram de ansiedade.

            Tão logo se sentaram, escutaram ruídos e viram um homem, também com as cores do grupo, se aproximar com um pequeno banco e um violão em suas mãos.  Estava com o terno branco bem arrumado, cabelos penteados com goma e um olhar concentrado. Essa cena chamou grande atenção dos malandros que esperavam o companheiro se apresentar.

            – O que deu nele? Está todo arrumado – disse Edivaldo.

            – Normalmente, vem desgrenhado, cheirando a cachaça. Até parou de cambalear e andar torto – concordou Pedro Paulo.

            Pietro colocou o banquinho em um pequeno tablado mais elevado, próximo à parede esquerda do bar. Ao se sentar, os poucos que estavam no balcão e mesas se viraram para ouvi-lo.

            Testou as cordas de seu violão rapidamente. Olhava para o instrumento como se fosse um filho, dedilhando-o com carinho e apreço. Parecia que entrava em transe, prestes a entoar um mantra perdido. Após breve afinação, puxou o ar e entoou em voz melancólica, melodiosa:

Teve galo que cantou

Já teve sino que soou

Mas nem seu cheiro soprou pra cá

Hoje gato já miou

Já teve cria que chorou

Mas quem disse que eu sei lidar?

Um sapato meu sujou

Camisa minha furou

Nem te achei pra costurar

E assim, vai todo mundo vendo

O malandro se perdendo

Sem ter você pra guiar

Quando eu desci do morro

Quase gritei “socorro”

Pois não conseguia te encontrar

Por toda esquina corri

Em cada viela eu caí

Quase tentaram me adestrar

Me disseram que você largou

O barraco abandonou

Como é que eu vou me virar?

E assim, vai todo mundo vendo

O malandro se perdendo

Sem ter você pra guiar

E assim, vai todo mundo vendo

O malandro se perdendo

Sem ter você pra guiar

            Quando encerrou a canção, os presentes no boteco aplaudiram de forma calorosa. A canção, em sua melancolia, arrancou suspiros de alguns dos bêbados presentes. Evocou memórias, trouxe dores antigas e fez com que o dono do bar se sentisse satisfeito com seu músico pela primeira vez. No entanto, na mesa onde se sentavam Edivaldo e Pedro Paulo, o que trouxe foi estranheza:

            – O que o Pietro tem? – disse um boquiaberto Pedro – Nunca cantou bonito assim antes. Nem errou uma nota do violão. Não desafinou nenhuma vez.

            – Deve estar doente ou tá possuído! – concordou Edivaldo.

            – Será que ele tá sóbrio? – perguntou Lauro, recebendo um safanão de sua irmã como resposta por estar se metendo.

            Francisco olhava com os olhos semicerrados para Pietro, tentando ver algo que os demais não enxergavam. O cantor, que até o momento sorria e agradecia os elogios dos que o rodeavam, cruzou olhares com a mesa que o estudava meticulosamente. Seu sorriso sumiu rapidamente ao perceber a estranheza dos colegas.

            Levantou-se como um raio e, juntando suas coisas, se despediu do balconista furioso que exigia que ele cumprisse todo o horário da noite. Ao bater a porta dos fundos, Pietro levou consigo olhares de estranheza de todo o bar, mas nenhum foi mais consternado que os de seus comparsas, acompanhados pelas crianças.

            Enquanto permaneceram no bar, buscaram alguma solução para o mistério da performance de Pietro. O companheiro, que se metia a músico, era o membro do bando que mais bebia, mais comia mal e tinha menos vigor. Também não era tão sagaz quanto seus colegas, não era bom de conta, muito menos de lábia. Tinha as mãos pesadas, não servindo para roubos, além de seu coração mole, que o fazia não servir para certas crueldades. Logo, Pietro atuava no grupo como uma simples distração, participando de empreendimentos tocando suas péssimas músicas ou garantindo que algumas vítimas se embriagassem. Já que também cantava mal, servia como um chamariz do ridículo, infalível nesse aspecto. Todas essas potencialidades de sua personalidade faziam com que os comparsas estivessem ainda mais preocupados pelo que acabaram de ver. Pietro dedilhara o violão com maestria, cantara sem desafinar em nenhum momento.

Todos opinaram e deram hipóteses para o dilema, menos Francisco. Este permanecia de cenho franzido, pensativo e silencioso. No entanto, mesmo se fazendo intrigados, os cinco acabaram deixando o problema de lado, movimentando-se para deixar o bar. Edivaldo remexeu o colete, separando alguns trocados que deixou sobre a mesa, enquanto acenava para o homem que trabalhava no balcão.

Ao saírem pelo portal do bar, viram a Praça dos Aquedutos já vazia pela madrugada, marcada por uma brisa leve e fria que cortava o ar. Maria Rita e Lauro dispararam correndo e rindo pelo percurso rumo ao Morro de Santo Antônio. Francisco acendeu um cigarro e se afastou da dupla restante acenando com a cabeça, ainda pensativo.

Edivaldo e Pedro Paulo seguiram cruzando a praça calmamente, enquanto observavam as crianças de longe. Pedro se preparava para também para acender um cigarro, quando percebeu que a manga de seu paletó estava manchada. Resmungando frustrado, tentava limpar a mancha vermelha profunda, que marcava o tecido branco.

Edivaldo moveu seu olhar do amigo ocupado para as crianças despreocupadas. Com um suspiro, disse algo que gostaria que tivessem dito sobre ele, enquanto ainda era jovem:

– Não podemos deixar que levem nossa vida, nego.

– Antes temos que ver se nossa vida leva eles – respondeu um sombrio Pedro Paulo.

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