DEBATE: FOME E INSENSIBILIDADE SOCIAL

SOBRE O TEMA

FOME E INSENSIBILIDADE SOCIAL

Valquiria Prochmann

Comer é um ato político. A expressão, já atribuída a autores diversos, foi incorporada por discursos ambientalistas, na abordagem e no convencimento para escolhas alimentares sustentáveis e saudáveis. Mas a contralógica da expressão também é verdadeira, já que uma sociedade é erguida e sustentada pelos modelos que adota para produção e distribuição de riquezas, entre as quais os alimentos.

Então, comer é igualmente um ato de poder. Certa vez, Dom Helder Câmara declarou em um evento que “em um mundo em que há fome, dividir o pão é uma forma de poder”. Afinal, alimentar adequadamente um povo é dar condições mínimas para o início da caminhada pela soberania, e assegurar parâmetros básicos de dignidade é garantir os primeiros passos para a justiça social. Não dividir o pão é uma forma de oprimir.

Por isso, a fome é um assunto difícil de tragar, e mais difícil ainda de tratar. Em 1993, o sociólogo Herbert de Souza criou o programa Ação pela cidadania contra a fome, a miséria e pela vida, diante de uma estatística absurda de 32 milhões de brasileiros sem comida nas mesas, em um país que trazia entre os relevantes procedimentos hospitalares os tratamentos para desnutrição, desidratação e suas consequências. A ação de Betinho escancarou para a sociedade brasileira que a fome estava aqui, na frente de nossas casas, e que não há eficácia em políticas de desenvolvimento econômico que não comece por debelar a fome. Mobilizou todos os setores e criou um movimento nacional de arrecadação e distribuição de alimentos, com o lema “Quem tem fome tem pressa”.

Em 2000, o governo Fernando Henrique criou o programa Bolsa-Escola, que consistia em conceder uma parcela financeira para as famílias de baixa renda com crianças em idade escolar, seguido do Bolsa-Alimentação e do Auxílio-Gás. Em 2003, o governo Lula instituiu o Bolsa-Família, incorporando em um único cadastro e em um único programa todos os benefícios, vinculando-os à frequência escolar e ao cumprimento das metas de vacinação e saúde. O Bolsa-Família foi composto como um programa de transferência de renda e de garantia de renda mínima, como efeito estimulou o consumo, e a pequena economia promoveu uma inclusão educacional invejável e qualificou para o trabalho milhões de brasileiros. Estima-se que, em janeiro de 2020, o programa atendia a, aproximadamente, 15 milhões de famílias, num total de 40 milhões de pessoas. O Bolsa-Família foi considerado pelo OIT (Organização Internacional do Trabalho) o maior programa de transferência condicionada de capital do mundo, apoiado pelo Banco Mundial e recomendado pela ONU. Foi adotado em dezenas de países, entre os quais Chile, México, África do Sul, Indonésia e Turquia, além da Cidade de Nova Iorque, que lançou o programa Opportunity NYC de transferência condicional de renda, modelado no Bolsa-Família e no equivalente mexicano.

Em 2014, o Brasil deixou o Mapa da Fome e tornou-se exemplo para o mundo sobre políticas públicas que podem ir além da assistência imediata e promover instrumentos ativos de transformação social e econômica. O governo Temer, em 2016, ao fixar o teto de gastos, congelou o programa e também as políticas públicas correlatas. Agora, em 2022, o governo Bolsonaro encerrou o Bolsa-Família e criou o Auxílio Brasil, o que nos impõe o dever cidadão de identificar as falsas premissas que, sem sombra de dúvidas, levarão o programa ao fracasso.

Porque é preciso considerar que o Bolsa-Família não era apenas um programa de distribuição de alimentos, mas trazia consigo políticas públicas integradas que lhe asseguravam uma rede de proteção social, entre elas a frequência escolar e outros programas de inclusão educacional nos ensinos profissionalizante e superior, atendimento às diretrizes básicas do sistema de saúde, a instituição de instrumentos de controle de qualidade da merenda escolar, controle fiscal dos itens da cesta básica, estímulos aos microempreendedores locais, inclusive no fornecimento de alimentos por pequenos agricultores, redes de restaurantes populares e sacolões de frutas e verduras. Somado a isso, havia uma política assumida de conceder reajustes anuais e aumentos reais progressivos ao valor do salário mínimo nacional.

Atualmente, no último 8 de junho, a Rede Brasileira de Pesquisa e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) divulgou nova pesquisa, com dados assustadores coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, que identificaram no Brasil 33 milhões de pessoas sem ter o que comer. Vale ressaltar que, em 2014, não havia mais índices estatísticos de fome no Brasil e, em 2021, eles já somavam cerca de 19 milhões de pessoas. Além disso, cerca de 58,7% dos brasileiros estão sofrendo algum tipo de insegurança alimentar nos graus leve, moderado ou grave. São 6 em cada 10 pessoas – ou 125 milhões, em números absolutos – com alguma forma de carência alimentar, aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% desde 2018. Na última semana, os economistas alertaram que a cesta básica completa já ultrapassava o valor do salário mínimo.

Sobre o que fazer com isso.:

Não adianta culpar o vírus, embora a péssima eficiência na gestão da pandemia tenha contribuído muito para esse quadro, também não são justificativas as guerras que explodiram pelo mundo, as quais sempre estiveram assombrando as vítimas dos imperialismos. Trata-se de uma postura política clara e evidente de excluir os pobres e miseráveis dos orçamentos públicos. É a isso que a sociedade brasileira precisa reagir, por sensibilidade social, justiça e solidariedade, o que já seria uma força transformadora essencial, mas também porque não há desenvolvimento que se erga sobre um povo faminto, adoecido e desassistido.

Fome em expansão, renda do trabalho em queda: síntese da atual política econômica

José Álvaro de Lima Cardoso (Economista)

No dia 8 de junho, foi divulgada uma nova pesquisa, da Rede Brasileira de Pesquisa em
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covidd-19, em apenas um ano, o número de brasileiros que não têm o que comer saltou de 19 milhões para 33,1
milhões. São mais 14 milhões de pessoas com fome, número superior à população da Bolívia.
Numa potência agrícola como o Brasil, quase seis em cada dez brasileiros (58,7% da
população), convive com a insegurança alimentar em algum grau (leve, moderado ou grave).
A pesquisa se baseou em dados coletados entre novembro de 2021 até abril, com 12.745
entrevistas domiciliares, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, nos 26 estados e no Distrito Federal. Segundo o trabalho o país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990. De cada 10 domicílios, apenas quatro conseguem manter pleno acesso à alimentação, os outros seis se dividem entre os que estão permanentemente preocupados com a possibilidade de não ter alimentos e os que já passam fome. Em números absolutos, são 125,2 milhões de brasileiros que passaram por algum grau de insegurança alimentar. Aumento de 7,2% desde 2020 e de 60% em comparação com 2018.
A fome atingiu 21,8% dos lares de agricultores familiares e pequenos produtores, ou seja,
quem produz alimentos também está passando fome. A pobreza das populações rurais associada ao desmonte das políticas de apoio às populações do campo, como o financiamento das pequenas propriedades, tem levado a essa situação. Segundo o estudo, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos – de 9,4% em 2020 para 18,1% neste ano. Além disso, a segurança alimentar está em mais da metade (53,2%) dos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclara branca, caindo para 35% nos domicílios com responsáveis de raça/cor preta ou parda, classificação usada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De 2020 a 2022, a fome quase dobrou (saiu de 10,4% para
18,1%) entre os lares cujos responsáveis são pretos e pardos.
Pela pesquisa, a fome quase que desaparece nos domicílios com nível de renda superior
a um salário-mínimo, dado que reforça a ideia de que a fome está muito relacionada ao nível
de renda e do acesso ao mercado de trabalho. Esse fato, por si só, revela o nível de exploração a que está submetido o trabalhador brasileiro. Com R$ 1.000,00 de renda mensal per capita, consegue-se resolver o problema da fome no País. A fome é maior nos domicílios em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%), trabalha na agricultura familiar (22,4%) ou tem emprego informal (21,1%).
Em seguida à divulgação do Relatório da Rede Penssan, o IBGE divulgou a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios), cujos dados se relacionam diretamente com as informações do referido Relatório. O rendimento médio mensal domiciliar por pessoa caiu 6,9% em 2021, de R$ 1.454 em 2020 para R$ 1.353 no ano passado. Esse é o menor valor da série histórica, iniciada em 2012. Apesar de comum aos vários segmentos de trabalhadores, a queda na renda foi maior entre as pessoas com menor rendimento. A pesquisa mostra que, entre os 5% de menor renda (R$ 39), o recuo foi de 33,9%. Entre os de 5% a 10% (R$ 148) caiu 31,8%. Já entre o 1% com maior renda (R$ 15.940) caiu 6,4%. Ou
seja, em 2021, o 1% da população brasileira com renda mais alta, obteve rendimento 38,4
vezes maior que a média dos 50% com as menores remunerações.
As regiões Norte e Nordeste registraram os menores valores, R$ 871 e R$ 843, respectivamente, e, também, as maiores perdas entre 2020 e 2021, de 9,8% e 12,5%, segundo o IBGE. Sul e Sudeste se mantiveram com os maiores rendimentos, de R$ 1.656 e R$ 1.645, respectivamente. A razão do rendimento médio per capita entre 1% mais rico e os 50% mais pobres chegou a 38,4 vezes, ou seja, o rendimento médio da pessoa que está entre o 1% mais rico é mais de 38 vezes o rendimento médio dos 50% mais pobres na população.
Entre 2004 e 2013, menos de uma década, as políticas públicas reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros, ficando abaixo do critério da ONU (5% da população), para participação no chamado Mapa da Fome. A saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, em 2014, mostra que o problema pode ser resolvido de forma relativamente rápida, se os detentores da máquina pública, tiverem interesse. Mesmo sendo a fome no Brasil um problema secular, em cerca de 10 anos, a partir de 2003, ele foi significativamente reduzido.
O que mostra que a manutenção de grandes contingentes de brasileiros passando fome, ou
em situação de insegurança alimentar, decorre de escolha política da burguesia. Enquanto aumenta a fome no meio do povo, o governo Bolsonaro concluiu no dia 13 de junho o processo de privatização da Eletrobras. A privatização da Eletrobras movimentou R$ 33,7 bilhões, incluindo a venda dos lotes extras de ações. Se tomarmos esse valor e fizermos uma continha de regra de três veremos que o governo está entregando a companhia por R$ 120 ou R$ 130 bilhões de reais. Mas num cálculo elementar se deduz que a Eletrobrás com suas 36 hidrelétricas, dentre as quais, Itaipu, que é a maior hidroelétrica do mundo, em energia produzida, vale cerca de um trilhão de reais. Com a piora de todos os indicadores sociais, a economia vai sendo esmagada, por ações tipo a entrega de uma empresa que vale um trilhão, por 10% do seu valor.
Enquanto os brasileiros dão duro o mês todo para obter um rendimento médio mensal
domiciliar de R$ 1.353,00, uma cesta básica alimentar, com 13 produtos, segundo o DIEESE,
custa, para uma pessoa, R$ 777,93%. Este valor representa 57,50% do rendimento médio
calculado pelo IBGE. A expansão da fome para largos contingentes da população brasileira é
uma síntese completa da natureza das políticas econômicas e sociais, que foram aprofundadas no Brasil após o golpe de 2016.

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