POLÍTICA NÃO SE DISCUTE!?

SERIA CÔMICO, SE NÃO FOSSE TRÁGICO.

Do rio que tudo arrasta se diz violento,
Mas ninguém diz violentas
As margens que o comprimem.
Bertold Brecht

Anos atrás, em tempos de férias escolares e juntamente com um grupo reunido ao improviso, estava na casa de amigos e onde, obviamente, havia pessoas de posicionamentos políticos e ideológicos diversos, Entre cantorias, comes, bebes e conversas descontraídas, um dos presentes comentou-me, assim ocasionalmente e sem compromisso: “Ainda bem que não se discute política, pois nós dois estaríamos em campos opostos, se é que conseguiríamos ficar aqui juntos.” Como vivemos nestes tempos cinzentos, nem sei se fiquei meio atônito, impassível, sem resposta imediata ou no meio das “conversas companheiras” isso era permitido se fazer ou pensar.
O fato é que esse tipo de convivência tem sido a prática de muitos que tentam deixar para segundo plano questões espinhosas e conviver como se tudo estivesse bem, ou não?
Acho, na verdade, que devo ter me calado por me sentir parte desse pacto tácito e inominável segundo o qual política, religião e futebol não se discutem. Trata-se de um certo jeito de viver como se as coisas não existissem, ou como se tudo estivesse bem ou, ainda, um credo de que estar com amigos ou família se coloca acima de qualquer outro valor ou demanda. Trata-se de um pacto (implícito ou explícito) que permite estar na mesma mesa (comum?), dividir a mesma comida (?) e manter as relações pessoais sem criar mal-estar (?). Costuma-se até repetir que “a política está separando nossa família”, ou que “a política não deve separar a família,” pois esse seria o resultado quando as discordâncias aparecessem, sejam quais forem as razões.
Tenho lembrado da sabedoria dos antigos (muitos também deviam detestar política) que costumavam repetir “de grão em grão, a galinha enche o papo”, pois é dessa pretensa não discussão ou debate que vai se alimentar (grão a grão) a situação cinzenta em que estamos mergulhados, em que anda faltando (inclusive) carne de galinha para alimento.
Na verdade, de tanto nos calar o silêncio já soa. Temos nos acostumado em comentar sobre as coisas públicas e da política, ou sobre elas calar-nos, como se fosse algo separado e abstrato em relação à vida, à fome, à exploração, à exclusão e ao purgatório cultural, social e ético em que estamos vivendo, ou não?
Não me parece possível falar em democracia política sem falar em democracia social e econômica, e vice-versa. Isso por que vivemos neste contexto, com tais interdependências (e dele dependemos) e é precisamente do totalitarismo do mercado, numa “democracia de mercado” que experimentamos, como se fosse campo tomado e irrefutável. Não se discute a democracia e política, sob os signos (desculpas) de convivência e se mantêm a desigualdade absurda no país (na frente de nossa cara), e nem sequer se analisa o absurdo da aliança histórica que mantém na miséria milhões de brasileiros, sobretudo negros. A escravidão está enraizada em nossa cultura, no trato com os demais, nas prisões cheias de negros e pobres, no medo de assalto ao ver um negro vindo em nossa direção, nas piadas ignóbeis, das quais se ri ao vê-las saírem da boca de uma autoridade.
É necessário discutir o que é comum, e isso se trata de política; trata-se de se importar com trinta e três milhões de brasileiros com fome e ouvir do representante do Estado que não é cozinheiro para resolver o problema, com seus seguidores deliciando-se com a resposta. Trata-se de se indignar com o fato de cento e dois milhões de brasileiros serem obrigados a viver com treze reais por dia nestes dois últimos anos. Isso é ter posição política, enquanto muitos defendem que não se discuta política. Porque não há democracia política sem democracia econômica. Porque a democracia representativa não basta mais para nos representar, pois ela tem “donos”. Porque se nega a liberdade de fala em nome das relações e costumes e se usa a força que impede milhões de sobreviver com dignidade. Porque já passou da hora de parte da classe média parar de sonhar com as benesses dos mais ricos e dos pobres agirem contra a si mesmos.
Política se discute, sim! É indispensável, que discutamos e que enfrentemos os que controlam os poderes, constituídos ou que estão na mesma mesa que nós, mas não se importam com a desgraça das maiorias e nem com a doação de nossas riquezas às corporações.
Trata-se de lutar pelo comum e pelas reciprocidades que possibilitam a realização do outro. Comum é um substantivo, o comum, e não adjetivo, coisa comum. Comuns são as práticas que “fazem os homens”, o que eles são. O Estado (nenhum Estado) tem monopólio sobre isso e nenhuma empresa pode ter a posse sobre a utilidade do comum. O atual capitalismo e as forças que tomaram de assalto o Estado, o imaginário de parte da população, a liberdade de reflexão crítica roubada do professor, o aprisionamento da liberdade da arte, a impossibilidade de discussão de gênero… privatizam tudo isso, roubam a esperança, assassinam a esperança.
Isso é política, e não discutir estas questões, incluindo que tipo de Estado ou democracia desejamos, permite que se roube o comum e a possibilidade de sonhar. Existirem maus políticos não pode significar criminalizar a política, nem servir de argumento para nossa aversão ou desculpa para a deserção.
Está em curso vertiginoso a destruição do planeta em benefício de alguns poucos e também nossos “representantes” colocam-se a serviço de outrem e de outros interesses. Mesmo as esquerdas democráticas não foram, historicamente, sempre esquerdas burguesas? Até onde elas têm ido com sua identidade social? Não discutir política, economia, religião, cultura e o futuro do planeta não é analfabetismo político? A direita tem se mostrado a serviço de que e de quem, mesmo aquela mais bem educada? Esse deus ou a tal família e pátria (alardeados) estão a serviço de quem? Os poetas e sonhadores, hoje caídos na desgraça, não são eles os buscadores do paraíso? Os chamados pós-modernos não são como um designer, capazes de se acharem críticos sem fazer crítica política ou econômica? Basta que sejam apenas antifascistas? Não acabam sendo antiquados, sem objetivos, em busca da identidade e sem consciência da crise ou de classe?
A democracia torna-se uma caricatura, quando os não rentáveis, os despossuídos, são dispensáveis no voto, na vida, na esperança, no não lugar ou na rua. É a barbárie, o fim do social, o não comum maximizado, a política descarnada, por isso a não política. Não tem sentido os ricos ou médios cegos ou caolhos espalharem seus gritos, ainda que com um chefe à frente a gritar “Tudo sob controle!”, pois o navio do país estará a pique, caso grande parte de seus cidadãos não tenham mais lugar ou se uma outra parte se faz insensível à dor das maiorias, entregando suas riquezas a outros em nome da falta recursos.
Penso que hoje em dia existam alguns costumes irônicos ou de mau gosto que se tornaram corriqueiros e assassinos das reflexões críticas. Premiam-se as grandes descobertas ou as inovações com prêmios ou comendas de destaque. O prêmio Nobel traz charme e reconhecimento da sociedade. O Nobel da Paz, por exemplo. Carrega uma certa ironia e despudor, próprio destes dias cinzentos. Isto porque Alfred Nobel (1833-1896) foi um vendedor de armas, inventor da dinamite, o primeiro a conseguir uma espécie de multinacional das armas e hoje o prêmio que leva seu nome é oferecido pelo Banco da Suécia. Seria cômico não fosse trágico!!!
No cassino global, no qual o dinheiro some num clique, haveria lugar para democracia plena? Existiria lugar para os ninguéns e “improdutivos”? Há um Brasil esquecido e humilhado a ser resgatado, cuja voz esquecida exige um caminho da participação coletiva pela efetivação da democracia política, econômica, social e cultural; que exige debate, discussão, embates, protestos, concordâncias e discordâncias. E esse caminhar passa pelo país inteiro a fervilhar de ação e intervenção de todos e de cada um… e não deixa de passar pelas mesas de nossas casas. Não é possível que três bilhões de pessoas no mundo vivam com menos de dois dólares por dia e isso seja apenas uma estatística, que não façamos nada, que não debatamos sobre o assunto ou que continuemos a achar que o econômico, o social e político sejam coisas separadas.
Não adianta pendurar uma coroa de advento em nossas portas próximo ao Natal ou à Páscoa do mundo capitalista neo. Não haverá nascimento da igualdade e nem ressurreição da justiça, pois este mundo é regido pela separação, exclusão, intolerância e enriquecimento de uma minoria restrita (muito restrita) que explora em detrimento dos dois terços mais pobres, ainda que tenha as bênçãos de uma parte da classe média enriquecida. Há que se discutir isso, pois a democracia passa pelo enfrentamento desse absurdo em que está mergulhado o planeta todo; passa pela tensão do debate e da discordância em favor da dignidade das pessoas; da tessitura do comum e a favor de todos. Isso é a mais clara, necessária e salutar das políticas.
Trata-se de não se contentar, no mínimo, com a existência de uma espécie de subclasse de sub-humanos que não é vista ou sentida e, por isso, sua morte ou dizimação não incomoda os bem alimentados e homens de bem, em sociedades que continuam escravocratas com seu jeito indigno de pensar e viver.
Como falar de moral, ou ética, ou pátria, ou família numa sociedade que se apoia sobre a violência, a morte e não vida de tantos brasileiros? Ou que paga salários de fome para os afazeres em que “não sujam as mãos” para os párias realizarem? Que impinge no próprio deserdado a culpa por sua exclusão? Como se dizer cristão ou humano de fato, sem a sensibilidade e compromisso com a mudança ou com uma democracia econômica, social e política?
Um mundo centrado no comum e na igualdade começará a ser tecido, entre outras possibilidades, quando acontecer a opção pela democracia popular direta, sem domínio das corporações; pela recuperação da função pública do Estado; pelos bancos públicos e cooperativos a serviço da produção e bem-estar coletivos; pela reforma tributária justa e crescente que não penalize os pobres; pela renda mínima nacional; pelo cuidado com o planeta e o desenvolvimento sustentável; pela possibilidade de vida decente a todos; pela jornada de trabalho mais reduzida e com proteção social; pela taxação das grandes fortunas e fim dos paraísos fiscais que sugam o esforço coletivo; pela estruturação de um orçamento que seja distributivo; pela reforma política que possibilite a ação direta dos cidadãos na tessitura de futuro decente a todos…
Enfim, é essencial discutir política, sim! Na verdade, é estratégico e necessário debater tudo com racionalidade, sensibilidade, adesão e sentido; mas importa discutir não só a política como entidade abstrata e espaço apenas de alguns. É indispensável debater política, economia, religião, cultura, arte e o direito à felicidade. Discutir tudo e com todos, ainda que esse proceder nos afaste de alguns e a mesa da casa se torne um muro aparentemente intransponível. Sem isso, não há futuro para todos e tessitura do espaço do coletivo e do comum, pois se torna propriedade privada “da minoria dos capazes”.
A narrativa da não discussão sobre política, sobre religião, sobre o planeta ou sobre a arte, faz parte da farsa bem montada da dominação, da exclusão e da barbárie instalada em nossas sociedades.
“Utopia!”, dirá você. Sim, pois é ela que nos faz andar e triste é um mundo no qual apenas se vive calculando e já não há sonhadores a nos arrastar a um paraíso.
Lembre-se de que para alguns sábios visionários, a leva (levedura) é feita de vinho. Por isso, não é errado dizer que sejam as palavras e os sonhos que contam o que a gente é. As palavras cantadas e contadas, por isso mesmo, podem ressuscitar os esquecidos e os mortos, as andanças, os amores do bicho humano, que vai dizendo e vai vivendo, vai sonhando e vai caminhando e abrindo caminhos. A palavra trocada entre nós precisa se fazer vida, protesto, reciprocidade, denúncia, profecia e esperança.

                           Adalberto Fávero (Beto), 2022

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