Por Jorge C. (Historiador e Pesquisador
– Gira Mundo vem, Gira Mundo vem à terra! Quando ele vem todo mal ele leva! –Bradou o ogã Curimbeiro.
– Gira Mundo é exu trabalhador, vem à terra na linha de Xangô! – Respondeu toda a curimba.
– Em Aruanda trabalha com muito amor! Laroyê! Gira Mundo já chegou! – Finalizou o ogã.
João estava perdido em meio aos sons dos atabaques. Mal ouvia os pontos e mal via as entidades, chegando em terra durante a gira. Era quarta-feira, oito de maio, gira de Quimbanda, cerca de dez e meia da noite. Haveria consultas a exus e pombagiras, mas João mal pensava em qualquer coisa que acontecia no terreiro, só nas notícias e discussões que viveu na última semana na universidade.
– Gira, Gira, Gira, Gira Mundo! Mundo gira sem parar!
– Gira, Gira, Gira, Gira Mundo! Mundo gira sem parar!
– Ele gira na encruza, ele gira na calunga, gira em qualquer lugar!
– Ele gira na encruza, ele gira na calunga, gira em qualquer lugar!
Cortes de 30% no orçamento anual das universidades públicas aumentaram ainda mais os ataques à educação superior e básica no país. Mas não era só isso. Como se ainda fosse pouco, esses cortes poderiam impedir que a Universidade de João, a Federal do Paraná (UFPR), estivesse em condições de se manter em funcionamento. Houve notas de departamentos, pronunciamentos de autoridades da reitoria e diversas movimentações. Foi marcada, também, para o dia nove de maio, uma assembleia comunitária do Departamento de Ciências Sociais, do qual João fazia parte como discente. Os debates entre os alunos já aconteciam há dias e muitas falas de seus colegas o assustavam muito.
– Nunca tem porta fechada! Gira Mundo é exu! No centro da encruzilhada, Tranca Rua e Gira Mundo, corre e gira sem parar!
– No centro da encruzilhada, Tranca Rua e Gira Mundo, corre e gira sem parar!
Ouvira pessoas que achavam melhor esperar uma ação maior do movimento dos trabalhadores, alguma mobilização de professores ou até uma direção dada pela reitoria. Os próprios professores desencorajavam uma mobilização radicalizada por parte dos estudantes, afirmando que outra ocupação (como as vividas nas escolas secundaristas e universidades em 2016) pioraria ainda mais a imagem da universidade para a sociedade, que já se colocava contra ela tantas vezes.
Essa conta não fechava para João. A universidade (pelo menos aquela na qual ele acreditava) devia estar a serviço da sociedade. Deveria produzir por e para ela, com estrutura, acessibilidade e qualidade para todos que quisessem viver e se desenvolver com ela. João se perguntava se esses professores, em seus gabinetes, com seus currículos tão extensos e com suas pesquisas que parecem mais falar sobre seu próprio ego do que a sociedade contraditória onde viviam, pensavam da mesma forma. Eles tinham uma retórica que colocava nos estudantes essa responsabilidade de não afastar a universidade da sociedade. Mas onde eles a deixaram?
– Gira, Gira Mundo! Mundo gira sem parar! No terreiro tem porteira, pra passar pede licença! Gira Mundo está lá!
– No terreiro tem porteira, pra passar pede licença! Gira Mundo está lá!
É claro que João queria defender a universidade pública. Para ele, era claro que essa defesa devia ser radical. Mas todo esse debate o deixava incomodado. A UFPR vinha sendo sucateada há tempos e muito o movimento estudantil sofreu nas mãos de reitores que perseguiam e mapeavam estudantes organizados, para dificultar sua vida na universidade. João não era de nenhuma organização estudantil, mas vários de seus amigos eram e sofriam com essas ações. Agora, a reitoria queria adotar uma postura de defesa e liderança dessa mesma universidade.
E o que mais assustava João era o discurso de alguns dos estudantes: “Já somos taxados de vagabundos e que só fazemos zona na universidade! Se fizermos greve ou alguma manifestação radicalizada, só vamos reforçar isso! Melhor ir junto com a reitoria, eles sabem o que é melhor!”
Os cantos haviam parado, mas João não percebera. Sentado em meio aos bancos afastados da gira, ao lado de sua mãe, João também não ouvira o chamado.
– João André dos Santos! – chamava uma das médiuns em frente à área onde ocorria a gira e estavam as entidades, agora em terra.
– João André dos Santos! Seu Gira Mundo está te chamando! – Repetiu ela, sem resposta.
Foi sua mãe quem o tirou do torpor. Com um sacolejo, o rapaz percebeu que era ele quem a médium chamava, quem seu Gira Mundo chamava. João estranhou muito, pois não havia dado seu nome para uma consulta, fosse ela com uma entidade específica ou qualquer outra. Ainda assim, se levantou.
Foi caminhando entre as pessoas que assistiam à gira e, agora, o olhavam de modo estranho. Ao se aproximar da médium, uma moça de cabelos claros que não devia ser mais do que alguns anos mais velha do que ele, perguntou:
– Boa noite, moça, por que seu Gira Mundo me chama?
– Ele não falou, apenas disse que quer falar com você. Você vai até ele? – perguntou em resposta a médium.
Nervoso, João assentiu com a cabeça e a seguiu para a parte central do terreiro. Lá, diversas entidades já estavam encarnadas e interagindo entre si. Viu pombagiras, ouviu gargalhadas e saudações, mas o susto de ser chamado em meio aos seus pensamentos taciturnos não lhe permitia dar muita atenção aos demais. Logo, ele distinguiu para onde era levado. Em um canto do terreiro, um homem de capa preta sentava-se em um toco de madeira. Usava uma cartola e, a sua frente, estavam algumas velas e um ponto riscado. Seu rosto abaixado não permitia distinguir suas feições.
João ajoelhou-se na sua frente e cumprimentou o homem, vendo suas mãos. Sua pele era preta e suas mãos tinham algumas cicatrizes. Quando ele levantou os olhos, o rapaz pensou ver um brilho que vinha de dentro de seus olhos. Sua voz saiu seca quando ele falou:
– Que demora, seu João, pensei que não ia voltar dessa viagem que você estava na gira.
– Que viagem, Seu Gira Mundo? – perguntou João.
– A sua! Fica sonhando com outro lugar, outro problema e não escuta o que está na sua frente – com isso, gargalhou alto e forte, fazendo com que várias saudações lhe fossem rendidas em todo o terreiro.
– Mas eu te chamei pra falar. Me diz, João, qual a forma mais difícil para sair daqui e chegar do outro lado do terreiro? – perguntou Gira Mundo.
Após pensar por alguns segundos, João respondeu:
– Dando a volta por fora, Seu Gira Mundo?
– Não, João, – ele respondeu – é passando por cima dos outros. Pode parecer mais fácil e rápido no começo, mas é ainda pior no final.
João ficou em silêncio com a fala, sentindo seu peso, o que rendeu mais uma gargalhada de Seu Gira Mundo. Logo depois disso, o exu falou novamente:
– Não pense que o que você precisa aprender hoje acabou, João. Veja! – e apontou para outro lado do terreiro.
Lá, João viu. Um homem aos prantos, ajoelhado em frente a outra entidade. Parecia agoniado e perdido.
Era um de seus professores.