Por Adalberto Fávero
Os povos antigos costumavam fazer das festas um tempo de esperanças, celebrando, sempre, a vida e a realidade que os atormentava ou os alimentava no presente e futuro.
Em Mérida dos povos originários a festa era assim. “O povo põe Deus em pé e o povo sabe que Deus necessita dele para ficar em pé no mundo. Todos os anos o Menino Jesus nasce em Mérida e em outros lugares da Venezuela, cantam os cantadores, ao som de violinos, bandolins e violões, enquanto os padrinhos colhem em amplo lenço o menino jogado no presépio, tarefa delicada, coisa séria, e o levam passear.
Os padrinhos passeiam o menino pelas ruas, Seguem-no os reis e os pastores, e a multidão vai jogando flores e beijos, Depois de ter sido muito bem-vindo ao mundo, os padrinhos devolvem Jesus ao presépio onde ele está sendo esperado por Maria e por José. E ali o levantam.
Em nome da comunidade, os padrinhos levantam Jesus pela primeira vez, e erguido fica entre seus pais. Concluída a levantação, canta-se o rosário e oferecem aos presentes biscoitinhos dos antes, os doze gemas, e um vinhozinho de mistela.” (Memórias de Fogo)
Esta sabedoria é intransferível: o povo pode colocar Deus em pé ao se levantar e tecer seu presente e futuro, sem esperar que outrem venha lhe fazer justiça. Somente o povo pode reconstruir um tempo, que (se houve) se perdeu, quando o cervo-campeiro corria mais rápido que as flechas que o procuravam, quando pela terra passeava a serpente cascavelando festas da cabeça ao rabo, quando o canguru carregava feliz o filhote em sua bolsa marsupial e quando o grito do pavão chegava a todos os rincões da terra, pois o tempo da desventura calou o pavão, extinguiu a vida livre do veado-campeiro, fez do canguru folclore e preconceito e a cobra arrastar-se fugidia dos homens que a temem.
Importa sonhar com tradições ressignificadas e reinventadas, quando a criança seja batizada, recebendo um caracol para que aprenda a amar a água, soltando um pássaro preso para que aprenda a amar o ar, ganhando uma flor da roseira do quintal para que aprenda a amar a terra e, certamente, recebendo uma garrafinha fechada para amar o mistério e nunca transformar a vida em parte de uma caixa de pandora que é aberta para aniquilar a vida dos esquecidos e invisíveis pelo mercado e pela honra “dos homens de bem”.
Importa que ao final do ano seja possível fazer festas uns com os outros para que renasça e/ou sobreviva a possibilidade de sonhar e se colocar em pé pra tecer um presente sem dor, sem ódio, sem desigualdade, sem preconceito e sem separação por cor, gênero ou dinheiro.
Porque não se pode dormir com o silêncio sobre a dor dos esquecidos (aquela dor que não sai no jornal); porque nossos sonhos parecem ter fugido de dentro de uma sacola de supermercado que se abriu e desconectou ou deletou o endereço dos sonhos e, assim, tantos não têm sonho para sonhar. Já não se perde o sono e nem se fica desesperado numa segunda ou terça pela falta de sonho! E não basta sonhar com a vinda da sexta ou sábado. É muito pouco e pequeno!
Por que não se tem agonia por esta incapacidade vital para viver e se colocar em pé? Por que não falta o ar na ladeira comprida, quase sem fim, pela falta de esperança? Por que morrem os dias sem que tantos sonhem com a terra “pachamama” de todos e de cada um? Não será hora de perceber que o silêncio não existe, que se trata de não temer a morte ou de aprender os milhares idiomas da terra para não morrer em idioma desconhecido? Que o silêncio não pode ser nossa língua materna? Quantas vezes se terá de nascer e morrer para que todas as crianças nasçam e vivam com dignidade?
Final de ano com festa de Natal e augúrios de um novo ano melhor, deveria ser assim: tempo de nascer de novo, tempo de se pôr em pé em defesa da vida, tempo de ver no menino nascido e aquecido num/por um lar de animais um tempo de tecer sonhos e de desejar por herança e lembrança, apenas o fotografia de um povo que põe Deus em pé ao tecer um futuro de paz, justiça, esperanças e belos horizontes. É assim que se faz nascer os deuses, tecendo a própria história e a certeza de que um mundo sem fome, um planeta sem exploração/destruição e uma festa permanente pela vida de todos e de cada um seja possível.
Apenas e somente assim há Natal e possibilidade de um ano novo melhor que renasce e nos renasça! Apenas e somente assim se redescobre o jeito de “resonhar” o mundo! Assim se tece e se fazem deuses!
(Beto/2021)