Por: Luiz Carlos Heleno

Numa tarde no Siciliana Café – ali na Dr. Faivre -, já então muito mais meu amigo do que meu orientador, Professor Pedro Bodê soltou uma daquelas gargalhadas saborosas enquanto comentava sobre os truques de seu avô para driblar a vigilância familiar durante dieta alimentar recomendada. Saboreando o seu lanche, Pedro descreveu os achados da família durante uma das internações do avô – pedaços de salame e chouriço foram encontrados nos bolsos de casacos e calças, ou sorrateiramente escamoteados atrás de louças graúdas. Quando conheci Pedro, tive a primeira impressão de tratar-se de um sujeito caladão, introspectivo, mas o tempo se encarregou de nos apresentar um cara com senso de humor formidável, somado à paixão e capacidade oratória no debate sociológico.
Trazer para a crônica a conversa com Pedro no Siciliana Café é mais uma maneira de louvar a leveza com que ele lidava com a vida e com assuntos espinhosos objetos de suas pesquisas e prática acadêmicas – o enfrentamento da violência, controle social, e possíveis horizontes que se pudesse vislumbrar a partir daí. Uma pincelada marcante de sua didática, em meio aos “erres” fricativos de sua fala carioca, era intervalar a exposição com a sempre e pertinente sondagem de clareza. Então ele dizia enfático: “e aí pessoal, tá legal isso pra vocês? Até aqui, como é que tá?”. Carregando mais uma vez nos “erres”, às vezes provocava: “a desorrrdem tem de ficarrr lá fora; aqui dentro a gente ‘orrrganiza’ um pouco, depois a gente se joga lá fora pra enfrentarrr a desorrrdem”. E de novo a gargalhada. Por excelência não era aula show, mas era um show de aula.
Lembrar a fala de Pedro sobre o avô não é por conta de querer aproximar as doenças e os dramas comuns aos dois personagens (cada qual no seu tempo e com sua história absorveram e lidaram de maneiras distintas), mas sim e muito mais aproximar os laços de afeto com que se busca organizar e encarar trajetórias e despedidas. Tendo deixado a Universidade há mais tempo, eu não soube do drama de Pedro, mas ao receber a notícia de sua partida, busquei no silêncio de uma caminhada os sons de suas palavras, a intensidade com que ele se envolvia nos debates públicos (fosse um desalentado, poderia ficar quieto numa torre de marfim acadêmica), e das vezes em que ria ao expiar e expor desavenças daquilo que ele identificava como a “fogueira de vaidades” entre os poderes que se digladiavam e se engalfinhavam do térreo ao último andar dos Edifícios Dom Pedro I e II, ali entre as ruas General Carneiro e Dr. Faivre. Por força de arremate, às vezes dizia de forma irônica: “ainda adquiro uns tridentes”.
Para além dos assuntos acadêmicos, somos gratos ao Pedro Bodê por ter topado participar de alguns debates promovidos pela equipe técnica da Secretaria Municipal de Assistência Social de Piraquara (a convite meu e de Ligia Martins), durante atividades referentes ao PRONASCI – Programa Nacional de Segurança com Cidadania, apesar de suas críticas ácidas com relação ao Programa, e talvez por isso mesmo, uma vez que a equipe também se posicionava reticente com alguns pontos megalômanos da metodologia. De certa forma, era uma confluência. Foi uma experiência avaliada como exitosa envolvendo o debate acadêmico e os resultados colhidos pela execução do programa.
Certa vez nos reunimos na casa de Pedro, e tão logo fechamos os pontos de agenda, a gente se largou numa prosa daquelas de recarregar energias, em que as amenidades do cotidiano dão o tom da conversa. Do carnaval às ideologias, da música ao futebol, das sensações às viagens mais inusitadas, o repertório saboroso de um dia que se iniciou sociológico e se prolongou de forma “ociológica”. Cogitamos de repetir a dose, mas não foi possível. Outros encontros acontecerão, e Pedro na certa estará sempre presente em nós. A última vez que vi Pedro foi durante a defesa de tese da Mariana Azevedo, uma amiga em comum. Mesmo atento à exposição de Mariana, me sinalizou como quem diz “precisamos continuar nosso café”.
Ao fim de minha caminhada pela estrada neste fim de ano amargo para tanta gente Brasil afora, em que a morte encontrou terreno fértil pra além do fim em si mesmo, desejei muito que Pedro tenha sofrido o menos possível, e que a gente tenha pelo menos confortado a sua passagem com alentadas lembranças de nossas convivências e afinidades, alcançando de alguma maneira seus familiares, com ecos de sua fala e leveza se espalhando pelos caminhos por onde ele buscou, plantou e colheu humanidades.
